segunda-feira, 17 de novembro de 2014

" Bebe, Corre, Mata e Morre "

Artigo Zero Hora 

FLÁVIO TAVARES
Jornalista e escritor

O que conto aqui é real, ocorreu na madrugada de domingo passado a 75 quilômetros de Porto Alegre, mas é tão brutal e dolorido que soa a tragédia inventada, como num filme de terror em que os absurdos se amontoam no horror.

Dois jovens namorados, ele de 33 anos, ela de 26, retornavam tranquilos de Santa Catarina, de carro pela autoestrada quando (20 km após Tramandaí) foram esmagados por um bólido enlouquecido caído do alto, como se despencasse das nuvens. A máquina de matar não era um meteoro nem arma militar. Era tão só outro automóvel em alta velocidade pela pista contrária (no sentido oposto) e que, desgovernado, capotou, saltou o valo de separação e caiu sobre o casal de namorados, como se buscasse inocentes na sanha de matar a esmo.
Um acidente a mais na chamada “free way”?
Não! Um crime preparado pela associação de fantasias incontroláveis. A bebedeira ritual de fim de semana se juntou à alta velocidade numa rodovia que predispõe a “pisar no acelerador” e sentir a volúpia de voar em terra. No carro que cruzou a pista e provocou a tragédia, a polícia encontrou latas vazias de cerveja e investiga se houve algo mais.
Em plena madrugada, isso era sinal de festa e cansaço. Basta dormitar um segundo ao volante para deparar-se com o caos!

***
O motorista que capotou e matou, morreu também. Não sei quem era, mas conheci os sonhos e projetos dos jovens namorados Ramiro Silva Cassou e Daniele Rosa. Ele, recém formado como piloto aviador, dias antes tinha aterrissado pela primeira vez no aeroporto Salgado Filho. Como aeronauta, preparou-se para enfrentar perigos no ar, não a ilógica fatalidade em terra. Fora educado para respeitar a vida. Os vitrais do pai, o pintor e escultor Raul Cassou, adornam centenas de prédios. A mãe, a ambientalista Maria Elisa Silva, integrou o grupo de advogados que fez a Justiça gaúcha proibir a chamada “caça desportiva”, que mata pelo prazer de matar. A namorada Daniele trouxera de São José do Norte o estilo tranquilo do litoral sul gaúcho. A cadela Amy sobreviveu no banco traseiro, mas não late desde então.
Acidentes em estradas são comuns. Automóveis são feras disputando espaço, cada qual tentando chegar antes e “ganhar” alguns minutos, como se o mundo e a vida morassem nos ponteiros do relógio. Quase sempre, os dois lados têm alguma responsabilidade ou culpa. Aqui, porém, os dois namorados foram inocentes absolutos. Sem qualquer participação, foram, apenas, o alvo casual da estripulia do álcool e da alta velocidade, que mata sem saber a quem. E, assim, surge o absurdo de que os pais enterrem os filhos, invertendo a lei natural de que os filhos sepultem os pais.

***
Esse desafiar o abismo, pé no fundo e cerveja na garganta (ou, às vezes, droga na cabeça), é uma das faces da violência silenciosa gerada pela sociedade do lucro pelo lucro. A educação não-formal, propagada pela TV e pela internet, faz do alcoolismo um gesto heroico. Os melhores talentos da publicidade mostram sabores e qualidades de diferentes cervejas. E a frase “se beber, não dirija” vira cínica advertência sobre um perigo latente.
Em tudo, há uma exaltação subliminal à violência. Nos desenhos infantis da TV ou dos DVDs, os personagens (bichos ou pessoas) são “maus que viram bons” e, no percurso, empurram, batem, gritam ou matam até. A bondade solidária e o amor pelo amor em si, raramente aparecem. Tudo leva à disputa, nunca à compreensão.
Por que essa luta pelo nada? A vida não é um jogo eletrônico em que se volta atrás para recomeçar. Por isto, no mundo atual, em que o automóvel é um sedutor amante metálico, se queres semear o infortúnio, bebe, corre, mata e morre!

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