J.J. Camargo: "O médico de verdade tem obrigação de penetrar no sentimento de quem atende"
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
O ritual se repetia em cada quarto daquele andar do hospital. Entrávamos em grupo, ouvíamos as queixas do paciente, nos revezávamos em perguntas objetivas, coletávamos todos os dados e voltávamos para o posto médico para revisar os últimos exames e definir a estratégia terapêutica a seguir.
A manhã parecia normal até que entramos no quarto do Augusto, um homem de uns 50 anos, com câncer avançado de pulmão e metástases na coluna que lhe causaram o colapso de vértebra lombar e uma dor de muito difícil controle, mesmo com doses maciças de morfina.
A intensidade do sofrimento impunha que propuséssemos alguma coisa objetiva para aliviar o martírio. Quando anunciei que o pessoal da neurocirurgia recomendara a secção de umas raízes nervosas para conseguir a analgesia, ele tinha uma ponderação.
Lúcida, realista, dolorosa. “Doutor, eu só tenho uma questão: esse procedimento vai melhorar a imagem atual que a minha mulher tem de mim? Porque agora eu não consigo nem virar na cama para tomar um banho no leito sem gritar de dor, e hoje ela encheu os olhos de lágrimas quando percebeu que eu fedo!
E eu amo tanto essa mulher que tenho mais pena de morrer por ela do que por mim. Então, se não houver a possibilidade de mudar esta droga de vida, eu gostaria muito de pedir que vocês me deixassem morrer em paz!”.
A maioria dos estudantes debandou, soterrada pela incapacidade de controlar a emoção. Quando sentei no leito para lhe segurar a mão e lhe oferecer parceria, única coisa que me ocorreu naquele mar de impotência, tinham restado dois estudantes, de olhos marejados, aos pés da cama.
Uns 10 anos depois, enquanto despachava malas no aeroporto de Barajas, em Madri, fui abordado por Ricardo, um ex-aluno na faculdade. Depois da troca das mentirosas amabilidades habituais (“professor, como o senhor faz para não envelhecer?”, seguida do revide “você também não engordou.
Nada, nada!”), ele me contou que fizera oncologia e agora estava voltando para o Brasil depois de uma pós-graduação em tratamento da dor, em Milão.
A revelação surpresa aguardou a vez na hora do café: “O senhor provavelmente não se lembra, mas eu fiquei no quarto do Augusto até o fim naquele dia e, ali mesmo, decidi ser oncologista, e agora estou pronto para tratar melhor a dor dos meus pacientes.
Nunca esqueci quando o senhor nos reuniu para explicar que a doença é só uma abstração da realidade e que ela está presente nos livros, nas tomografias, nos laudos anatomopatológicos. Porque para o paciente, a única percepção da doença é o sofrimento, e cada pessoa tem uma maneira própria e diferente de sofrer.
Eu queria, mesmo que com atraso, lhe agradecer por ter me ensinado que o médico de verdade tem obrigação de penetrar esse sentimento”.
Receosos de que a sobrecarga de emoção implicasse excesso de bagagem, nos despedimos. Muito bom guardar a imagem do olho agradecido do Ricardo como uma reserva de afeto a compensar as desilusões. Essas que não conseguimos evitar.
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