sábado, 27 de setembro de 2014

" Palavra de Médico "


                             Dr J.J. Camargo

: Por que a história de Henrique - e de outros transplantados - emociona mesmo 15 anos depois 
Edu Oliveira/Arte ZH

J.J. Camargo: Por que a história de Henrique - e de outros transplantados - emociona mesmo 15 anos depois Edu Oliveira/Arte ZH

Ao ocuparem o moderno teatro do Centro Histórico e Cultural da Santa Casa, para a sessão comemorativa dos 15 anos do primeiro transplante de pulmão com doadores vivos feito fora dos EUA, os convidados já tinham sido alertados pelo convite de que seria uma experiência comovente. Quando Ivo Stigger, o mais emotivo dos mestres de cerimônia, relembrou o gesto em "V" de vitória de Henrique, numa escadaria da instituição, como a mais bela imagem da inesquecível primavera de 1999, todos tiveram certeza.

O garotinho chegara à Santa Casa em situação desesperadora. Com apenas 12% de capacidade pulmonar, usava oxigênio o tempo todo e dormia ajoelhado há dois anos porque sufocava ao tentar deitar.

A necessidade de um transplante era evidente, mas a chance de um doador com pulmões de tamanho compatível com sua caixa torácica de criança parecia muito remota. O imprevisível tempo de espera por esse doador improvável era o seu maior inimigo. Oferecida a possibilidade de transplante com partes dos pulmões dos pais, isso soou como um delírio, mas rapidamente passou a razoável depois que se entendeu que era a única alternativa, e os pais, como se sabe, estão sempre irresponsavelmente dispostos a ceder partes dos seus corpos inexpressivos para tentar salvar as suas crias. Mobilizados os parceiros mais competentes, marcamos a data: 17 de setembro de 1999.

Lembro da manhã daquele dia, marcado pela ansiedade e pelo temor do desconhecido. Acordei muito cedo, mas demorei a sair da cama, como se fosse possível continuar deitado e afugentar o medo que me aguardava. Foi quando a família de Henrique entrou no bloco cirúrgico, para que todos fossem operados em sequência, que percebemos o tamanho da enrascada em que estávamos metidos.

Apesar da quantidade anormal de pessoas no ambiente, os únicos sons audíveis eram os bipes dos monitores entre ordens isoladas. Esse silêncio contido, quando há tanto por sentir e comentar, era o sinal mais evidente da ansiedade coletiva.

Sete horas depois, com a engenharia de dois pulmões novos funcionando perfeitamente, exausto pela tensão sustentada, sentei no chão para descansar. Quando o Felicetti sentou ao meu lado e choramos abraçados, tive a certeza de que tínhamos feito uma coisa realmente grande. Além do ineditismo daquele transplante, o desprendimento dos pais carregava um grande apelo emocional, e isso repercutiu intensamente na mídia.
Todas as noites, o Jornal Nacional encerrava sua edição com uma chamada à sucursal de Porto Alegre, que reportava os progressos de Henrique. Houve uma peregrinação de visitantes e, entre esses, vários jogadores do Grêmio, incluindo o Ronaldinho Gaúcho, que na época nem imaginava o ódio que a torcida gremista lhe reservaria no futuro.

Claro que a presença frequente na mídia rendeu alguns dividendos. Dias depois, fazia a grande curva da saída da freeway e fui parado por excesso de velocidade. Enquanto caminhávamos, o guarda e eu, pelo acostamento em direção à viatura onde seria documentada a multa, ele me perguntou: "O elemento faz o quê?".

Quando respondi: "Sou cirurgião". Ele deu mais uma olhada nos documentos e parou.

"O senhor, por acaso, não é o médico que trocou os pulmões daquele menino?"

"Eu mesmo!!" "Doutor, vá mais devagar, por favor, mas desapareça. Minha mulher chorou tanto ao ver aquela reportagem na TV! Se ela souber que lhe multei, ela me mata!". Ganhei um abraço inesperado e nos despedimos.

A cerimônia da semana passada relembrou aquele momento histórico do Hospital, e foi gratificante rever Henrique, recém-graduado em Direito, e vários de seus colegas, muitos deles com mais de 10 anos do transplante. Uma falta justificada foi a de Felipe, transplantado há cinco anos, e que escreveu lamentando não poder confraternizar porque, justo naquele dia, ia se casar em Criciúma. Como se vê, um tipo destemido, afeito a uma aventura de alto risco a cada cinco anos.

A exposição que estará aberta ao público, até 26 de outubro, no Centro Histórico e Cultural da Santa Casa, conta histórias emocionantes que rendem tributos à coragem, ao desprendimento, à qualificação tecnológica e ao amor incondicional.
E, nas entrelinhas, é perceptível uma rebeldia incontida pela inexorabilidade da morte.

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