domingo, 2 de fevereiro de 2014

" Mais baixo , por favor " !!!

                                         Artigo ZH


Sou de um tempo
em que se
escreviam cartas
e as pessoas não
se tratavam
por algarismos
mARCELO rOCHAMARCELO ROCHA *
Caro vizinho do 709: escrevo-te para dizer que pouco entendo de gêneros musicais.
Sou professor e, por razões de ofício, destino muitas horas do meu dia à leitura e escrita.
 Mesmo assim, acabo, sem querer, por prestar atenção às músicas que o senhor deixa em volume bastante audível, por certo, para que eu, minha esposa e meu bebê, de 10 meses, possamos fruir.
 
Nesse sentido e por deter-me naquilo que invade, de modo insidioso, meus ouvidos, chego à conclusão de que as músicas que o senhor tenta partilhar conosco correspondem ao que os especialistas designam como sertanejo universitário, axé, além de um extenso repertório nativista. Seu gosto musical, senhor 709, é bastante eclético.
Infelizmente, tenho a dizer que não aprecio nenhum destes estilos. Sou mais antigo. Sou de um tempo em que se escreviam cartas e as pessoas não se tratavam por algarismos, mas, hoje, com a nossa privacidade invadida e desrespeitada, esse tipo de relação tornou-se quase uma imposição.
Os ruídos, senhor 709, além de perturbadores, têm um efeito narcótico. Nas grandes e pequenas cidades, há uma verdadeira fobia ao silêncio, evitando que os indivíduos pensem sobre si ou sobre a circunstância em que vivem.
 A paz sonora leva à reflexão e esta prática, em nosso mundo tão utilitário, soa anacrônica. Repare que entre uma pessoa em silêncio e outra, gritando ao celular, nossa tendência é sempre pensar que a segunda é mais ocupada e possui tarefas de maior relevância a serem realizadas. Ledo engano.
Na realidade, sob a lógica produtivista de uma sociedade de discursos retóricos, tagarelas e vazios, o silêncio não serve para nada, ou seja, é apenas um espaço a ser preenchido. O ruído, de outro lado, como já disse o neurocientista Iván Izquierdo, autor do livro Silêncio, por favor! , faz parte da cultura em que vivemos. Contudo, a miríade de sinais linguísticos, visuais e auditivos que percebemos, diariamente, acaba por atrapalhar a nossa compreensão da realidade. Tornamo-nos, portanto, cegos, como as personagens de Saramago, e surdos com tantas informações.
 
Paradoxalmente, a publicidade valoriza cada vez mais o conforto acústico. O consumidor é atraído pelo silêncio do motor de um carro de modelo mais recente, bem como dos aparelhos de ar-condicionado mais potentes. Os pacotes de férias nos prometem lugares paradisíacos em ambientes cujos únicos sons que nos farão companhia serão os da natureza. Os equipamentos tecnológicos estão cada vez mais silenciosos e, nós, mais barulhentos.
No entanto, quando fui à sua casa, senhor 709, motivado por sua expansividade sonora, percebi que nem tudo está perdido. O senhor compreendeu meus argumentos. Talvez tenhamos ali iniciado uma nova sociabilidade, fundamentada na conversa civilizada. Talvez seja este o caminho para uma vida além dos algarismos e dos ruídos invasivos.
 
Quem sabe, da próxima vez, vizinho, eu o visite com a minha esposa e filha e lhe entregue a crônica “Recado ao Senhor 903″, do Rubem Braga, para que possamos ler juntos, rir e partilhar a nossa nova e respeitosa convivência, mas com discreta alegria _ para não incomodarmos o 713!
*                                                           Professor universitário e escritor

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