CELSO
LAFER*
A
justiça é o tema dos temas da Filosofia do Direito por conta da força de um
sentimento que atravessa os tempos: a de que o Direito, como uma ordenação da
convivência humana, esteja permeado e regulado pela justiça. A palavra direito,
em português, vem de directum, do verbo latino dirigere, dirigir, apontando,
dessa maneira, que o sentido de direção das normas jurídicas deve ser o de se
alinhar ao que é justo.
O acesso ao conhecimento do que é justo, no
entanto, não é óbvio. Basta lembrar que os gregos, para lidar com as múltiplas
vertentes da justiça, valiam-se, na sua mitologia, de mais de uma divindade:
Têmis, a lei, Diké, a equidade, Eirene, a paz, Eunômia, as boas leis, Nêmesis,
que pune os crimes e persegue a desmedida.
No mundo contemporâneo o Direito tem uma
complexa função de gestão das sociedades, que torna ainda mais problemático o
acesso ao conhecimento do que é justiça, por meio da razão, da intuição ou da
revelação. Essa problematicidade não afasta a força das aspirações da justiça,
que surge como um valor que emerge da tensão entre o ser das normas do Direito
Positivo e de sua aplicação e o dever ser dos anseios do justo. Na dinâmica
dessa tensão tem papel relevante o sentimento de justiça. Este é forte, mas
indeterminado. Daí as dificuldades da passagem do sentir para o saber. Por esse
motivo, a tarefa da Teoria da Justiça é um insistente e contínuo repensar o
significado de justiça no conjunto de preferências, bens e interesses
positivados pelo Direito.
Nestas variações sobre justiça vou inspirar-me
no ensinamento de Bobbio, para quem o Direito se constitui como ordem
pacificadora, aperfeiçoa-se como igualdade e completa-se com a liberdade. Paz,
igualdade e liberdade, pondera ele, não são valores idênticos ou contrapostos.
Têm esferas próprias, porém a realização da justiça, na sociedade, requer sua
integração, num sempre desafiante compromisso teórico-prático.
As dicotomias paz/guerra, ordem/caos estão na
raiz da natureza constitutiva do Direito como uma ordem asseguradora da paz. O
Direito não elimina os conflitos. Administra sua solução por meios não
violentos. É a antítese da guerra e do caos, condição da possibilidade de
igualdade e da liberdade, inclusive a de viver sem medo. O que está acontecendo
na Síria e o que representa a ameaça à ordem da atual violência da criminalidade
organizada do PCC em São Paulo esclarecem a afirmação. Por isso, uma das
clássicas acepções de justiça é a da conformidade das condutas com a lei.
Num Estado de Direito a exigência de que as
leis sejam gerais e impessoais atende a outro requisito da ordem jurídica como
paz: o de garantir, na convivência coletiva, a segurança da certeza do Direito,
que afasta a indeterminação do agir discricionário.
Ir além da justiça como legalidade é uma
exigência da Teoria da Justiça, porque qualquer ordenamento jurídico não é
necessariamente justo. Requer o exame do conteúdo da lei. Nesse contexto, na
lição de Aristóteles, é a igualdade que norteia a averiguação, cabendo, no
entanto, lembrar que existem afinidades entre os conceitos de ordem e igualdade.
A igualdade perante a lei é uma expressão dessa afinidade, porque se contrapõe à
desordenada desproporção entre as partes e das partes em relação ao todo. O
Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do mensalão, ao afirmar a
igualdade perante a lei, está assegurando justiça ao não diferenciar a conduta
dos poderosos da do cidadão comum.
A igualdade é um conceito complexo, porque
existem vários critérios para aferir a igualdade. Esta não se confunde com o
igualitarismo, que postula que todos devem ser iguais em tudo, rejeitando, dessa
maneira, a diversidade da condição humana. Numa sociedade pluralista e
democrática não cabe aplicar, para se realizar a justiça, um único critério de
igualdade. Todos têm sua validade no âmbito de determinadas esferas. Assim, por
exemplo, cabe aplicar o critério da necessidade para a concessão da
Bolsa-Família; o do mérito para o da concessão, pela Fapesp, do financiamento de
projetos de pesquisa; o da capacidade contributiva para nortear a tributação. A
busca da igualdade dos pontos de partida norteia o critério de justiça das
políticas afirmativas. É por esse motivo que o recorrente desafio para a Teoria
da Justiça é o da síntese e da conciliação das várias vertentes da igualdade,
voltadas para aperfeiçoar, numa sociedade, a dimensão do Direito como
ordem.
A justiça, numa sociedade, tende a se completar
quando o Direito, como a paz da ordem aperfeiçoada pela igualdade, ensejadora de
um viver sem miséria, permite a fruição da liberdade. A liberdade, como a
igualdade, tem muitas vertentes, mas é uma aspiração das sociedades
contemporâneas que se contrapõe às excludentes dicotomias senhor/escravo,
rei/súdito. A justiça, como liberdade, parte da asserção kantiana de que a
pessoa humana não tem preço, mas a dignidade de ser um fim em si mesma, não
redutível à natureza ou ao todo sociopolítico. Existe a dimensão da liberdade
como não impedimento, ou seja, como uma esfera de atividades do ser humano não
controlada pelo Estado e pela sociedade, assim como a liberdade de participação
nas deliberações coletivas, que está na raiz da democracia. São desdobramentos
da liberdade, por exemplo, a liberdade religiosa, que postula a tolerância, a
liberdade de associação, a liberdade de pensamento e de sua expressão não
censurada, a liberdade de iniciativa. O Direito assegura a justiça como
liberdade quando constrói as condições apropriadas para a coexistência das
liberdades, ou seja, quando cria a moldura para que a liberdade de um não se
transforme em não liberdade para os outros. É nesse sentido que se pode falar em
igualdade na liberdade, numa ordem jurídica alinhada com as aspirações do
justo.
O mundo não é uma realidade necessária, mas um
conjunto de possibilidades. É o que permite afirmar o papel e o valor de uma
Teoria da Justiça que integre, de maneira pluralista, no Direito Positivo, a
ordem, aperfeiçoada pela igualdade e pela liberdade.
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* CELSO
LAFER - PROFESSOR EMÉRITO DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA USP - O
Estado de S.Paulo
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