JOÃO PEREIRA COUTINHO*
Campanhas nos dizem o que
devemos ser, pensar, comer, dizer,
como nos devemos comportar
OS MEUS amigos me abandonaram. Uns moram no Brasil. Outros partiram para o Brasil. Para passar o Natal e a virada do ano.
Que barbaridade. Haverá maior sacrilégio? Como
é possível viver a quadra natalícia, esse tempo arcádico que Charles Dickens
praticamente inventou no século 19, nas areias de uma praia? Alguém imagina o
Papai Noel de bermuda e chinelos, bebendo uma caipirinha? E as renas? Quem
acredita que esses pobres bichos sobreviveriam no calçadão de Ipanema? Natal no
Brasil é um erro de casting.
A Europa, pelo contrário, cumpre o papel.
Chuva. Frio. Neve. Atrasos nos aeroportos. Mortos nas estradas. Um Natal
tradicional. Exatamente como deve ser.
E, para além de tudo isso, até a chuva, o frio
e a neve têm direito a tratamento jornalístico especial. Não sei quando começou
essa moda. Talvez com a histeria ignara do aquecimento global. O que sei é que
não existe jornal ou programa de TV que não seja um longo show de
meteorologia.
Começa com coisas banais. É dezembro. Os
termômetros desceram em todo lado. E os repórteres europeus saem para as ruas
para noticiar o fato: faz frio, chove, cai neve. Os fatos são comunicados à
nação como se estivesse iminente uma invasão alienígena. A nação treme. Não de
frio, mas de medo.
Alguns jornalistas, não contentes com o medo,
apostam no pânico. E questionam o cidadão comum: "O que pensa do frio?" O
cidadão comum, perante as câmeras, não ri nem agride o jornalista. Inicia uma
longa dissertação sobre a problemática do frio.
Faz sentido. O frio é um problema. Só em
Portugal, o Instituto de Meteorologia tem por hábito lançar "alertas" de acordo
com o estado do tempo. Existem "alertas" para todos os gostos. E de todas as
cores. Vermelhos. Amarelos. Laranjas. Desconheço o que significam. Mas sei que
se multiplicam. Lisboa pode estar sob "alerta vermelho" e, horas depois, passar
para amarelo. Ou vice-versa. Aceitam-se apostas.
"Essa
infantilização absoluta dos cidadãos
não
é apenas praticada por autoridades democraticamente eleitas,
que
aconselham roupa quente
quando
faz frio ou guarda-chuva
quando
cai chuva."
Mas o melhor não é a cor dos "alertas", são os
conselhos que vêm atrelados. Se faz frio, por exemplo, as autoridades aconselham
o uso de roupa quente. Se chove, aconselham guarda-chuva. Parece óbvio, mas não
é: um povo infantilizado começa a perder a capacidade básica para distinguir
fatos básicos. Se não houvesse "alertas", desconfio que a população seria como o
Papai Noel brasileiro: pronta para enfrentar a tempestade de bermuda e
chinelos.
Porque a triste verdade é que estamos mais
infantis do que nunca. O jornalista britânico Michael Bywater, em livro sobre a
matéria ("Big Babies, Or: Why Can't We Just Grow Up?", grandes bebês, ou por que
não podemos simplesmente ficar adultos), já tinha alertado para o fato: a todas
as horas, em todos os lugares, são infindas as campanhas que tratam o parceiro
como criança.
Campanhas que nos dizem o que devemos ser,
pensar, comer, dizer, como nos devemos comportar, vestir e até se despir, ou não
fosse o sexo o prato principal das sociedades adolescentes em que vivemos.
Essa infantilização absoluta dos cidadãos não é
apenas praticada por autoridades democraticamente eleitas, que aconselham roupa
quente quando faz frio ou guarda-chuva quando cai chuva.
Encontra-se na quantidade obscena de
publicações que determinam "estilos" e "tendências" como se um ser adulto
precisasse de ter um "estilo" e cultivar uma "tendência". Escreve Bywater, em
frase primorosa: "O meu pai não tinha estilo de vida. Ele tinha uma vida."
Curioso. O meu também. E o seu, leitor?
No Ocidente balofo e pós-ideológico, ninguém
tem uma vida para viver em paz. Porque só é possível ser adulto quando somos
deixados em paz: nós, confrontados com as nossas escolhas e responsabilidades,
sem uma mão paternalista a guiar as nossas existências.
O circo em volta impede essa autonomia ao
prolongar perpetuamente a infância. Quando somos tratados como crianças,
dificilmente deixaremos de ser crianças.
Hoje é o frio. Amanhã será a forma correta de
inspirar e expirar o ar, conhecida antigamente como "respiração". Um dia, quem
sabe, haverá uma autoridade qualquer para aconselhar o uso de fraldas 24 horas
por dia. É mais seguro e, além disso, nem sempre existem banheiros ao virar a
esquina.
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* José João Pereira Coutinho- escritor Português,de Porto
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