terça-feira, 27 de novembro de 2012

" Eu me acuso " de Marcelo Zorzanelli

 


O que um texto clássico que pouco ou nada tem a ver com
relacionamentos amorosos pode nos ensinar?
É sobre isso o texto de hoje do redator
Marcelo Zorzanelli, na seção
Homens de Segunda.

Tem uma frase que me motiva muito, talvez até a viver mais tempo. Parece que está em “As Neves do Kilimanjaro”, de Ernest Hemingway, mas eu não me lembro bem. Vai mais ou menos assim: “Quero viver o bastante para aprender a contar as coisas que vivi”. Permanecer vivo, lutando, para escrever as canções sobre as batalhas. A história é contada pelos vencedores.

Não sei por que estava pensando nisso. Ah, claro. Tive uma espécie de febre literária ontem à noite, no aeroporto. Deparei com o J’Accuse, num livrinho de bolso da LP&M, e comprei. É a coletânea dos artigos do caso Dreyfus editada pelo próprio Émile Zola, um ano antes de morrer. Para quem não sabe, capitão Alfred Dreyfus, de origem judaica, foi condenado por alta traição pela corte francesa, acusações estas baseadas em documentos falsos. Há, na bela introdução, feita por um estudioso francês de quem não me lembro o nome — embora o livro esteja bem aqui ao lado, e bastasse abri-lo na página 2 para saber — bom, como ia dizendo, há ali uma narrativa que contém todos os elementos da melhor literatura, a paixão, o ódio, a intriga e o ritmo da melhor literatura, e tudo era verdade e era lido nos jornais, dia após dia, no ritmo fulminante das grandes comoções públicas. Foi quase tudo escrito de chofre, às vezes na oficina do jornal. (Quer se surpreender? Veja a tiragem do jornal que publicava os textos de Zola: 300 mil cópias diárias; e não era o Figaro, que, imagino, embatumava ainda mais leitores). Tudo publicado ali por volta de 1888, 89.

O capitão de origem judaica Alfred Dreyfus era acusado do crime de lesa-pátria mais aviltante para um francês, a entrega de segredos de guerra, de um dossiê que ficou conhecido como “o borderô” aos alemães, vizinhos e inimigos naturais. Forjou-se até um documento para que Dreyfus fosse logo culpado e se calasse a grita nos jornais. Assim permaneceu a situação — o inocente preso e humilhado — até que uma prova identificasse o verdadeiro culpado; uma prova que ricocheteou em meia dúzia de oficiais do exército sem sair de dentro da caserna. O caminho que levou essa prova até Zola é interessantíssimo, uma verdadeira esteira de heróis em marcha. O nome do livro, aliás, é “A Verdade em Marcha”. Mas ficou mesmo conhecido pelo petulante título “J’Accuse!”, “Eu Acuso”, um título que Zola não escreveu, e sim o editor do jornal que primeiro publicou a carta. O texto chegou à redação com o título “Carta ao Sr. Félix Faure, Presidente da República”, e convenhamos, o editor tinha razão em colocar lá em cima o “Eu Acuso”.

(Embora eu passe longe do sentimento que certos intelectuais brasileiros nutrem pela prosa francesa, e apesar desse ser um texto recheado de parágrafos imaginados em francês — e portanto maneirosos ao extremo — de fato é uma das leituras mais empolgantes que faço em bastante tempo).

Antes de assumir a defesa pública de Dreyfus, Zola já se sentia um membro da Academia, sagração máxima de um homem de letras na terra de Victor Hugo. Embora jornalista, Zola cavou no paço literário uma trincheira de onde lançava romances, polêmicos e de muito sucesso.

Mas Zola tinha outros defeitos, além do de ser jornalista. O parecer de um médico vazou ao público, e o fato de que Zola era “excessivamente emotivo” tornou-se motivo de troça.
E é aqui que interrompo o caminhão desenfreado desta minha apreciação para uma pequena, mas vital, constatação. Zola, o intelectual a quem foi negado quase tudo em vida, atirou-se na mais perigosa das campanhas ao descobrir que sua amada pátria havia cometido o crime do antissemitismo e aprisionado um homem justo.

Quantos de nós serão capazes de fazer o mesmo em nome da verdade?
O que os nervos de Zola dizem sobre suas atitudes?

Há no meio do texto uma descrição terrificante dos cacoetes de Zola enquanto ouvia sua sentença. (Como para isso preciso ter o livro em mãos, aproveito para passar o nome do autor da introdução: Henri Guillemin).

“Ele morde o bastão da sua bengala, passa a mão no pescoço, afasta ou sacode os dedos à maneira dos pianistas que temem cãibras, enxuga o monóculo, agita a perna esquerda, ajusta o colarinho, olha no ar, alisa o bigode, bate os joelhos, sacode a cabeça, crispa as narinas, vira-se para a direita e a esquerda”.

Zola foi condenado a um ano de prisão e três mil francos de multa. Além da liberdade, perdia também (para sempre) a chance de ser um membro da Academia. Mais tarde escreveria que Dreyfus era “um judeu crucificado”, em alusão ao Cristo, e que um cristão não poderia abandoná-lo.

No fim, a persistência de Zola fez com que Dreyfus fosse libertado.

Ele entrou para a história.

Não preciso dizer que certos casais mantém, um do outro, terríveis segredos, sob a justificativa de preservar algo maior. Não existe algo maior que a verdade.

A alguém, a verdade sempre interessa. Por isso ela precisa ser dita. Sejamos nossos próprios Zolas. Manter segredos, cultivá-los como orquídeas no escuro úmido de um canto da memória, fingir ser o que não se é, em última análise, manter as aparências — isso é um crime grave.

Sejamos os acusadores de nós próprios. Que nossos ataques emotivos nos levem até a verdade, seja ela qual for.

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