Miguel Sanches
Neto*
A
gaveta sempre foi uma grande aliada da literatura. Escrito, um texto
passava necessariamente por uma quarentena, para ganhar aquele tempero que só o
tempo concede às coisas feitas para durar. Muitos não resistiam a uma leitura
posterior e eram descartados. A maioria acabava submetida a uma revisão
criteriosa ou a uma reescrita total. A gaveta assim produzia um efeito
profilático na produção literária.
Sua grande auxiliar era a máquina de escrever.
Depois de uma escrita lenta, fazia-se necessário passar tudo a limpo, e mexidas
mais profundas nos originais impunham nova datilografia. A cada cópia, feita
muitas vezes por datilógrafos profissionais, o livro ia se ajustando,
modificando-se, ganhando mais musculatura de linguagem. Se esse processo por si
só não garantia a qualidade literária, havia ao menos um senso maior de
acabamento.
Facilidades tecnológicas e uma percepção mais
imediatista da criação literária modificaram completamente os meios de produção
de literatura. Ainda em meados dos anos 80, o grande debate era sobre o inocente
uso do computador. Puristas de todos os credos defendiam que a escrita
eletrônica tirava o peso da palavra, tornando-a algo muito volúvel, facilmente
cambiável e, por isso, inadequada como prova material. O símbolo da adesão, no
Brasil, a essa nova temporalidade talvez seja o baiano João Ubaldo Ribeiro, que
traduziu para o inglês o seu romanção "Viva o Povo Brasileiro!" (1984), usando
pela primeira vez (e desde então sempre) o computador. Aos poucos, a escrita
digital se fez uma constante entre os ficcionistas, embora alguns ainda
escrevessem tudo à mão para só depois passar para os arquivos.
Nos Estados Unidos, e antes do advento dos
computadores pessoais, Jack Kerouac foi o responsável pela grande revolução na
forma de escrever. Para produzir o seu "On the Road" (1957), colocou um rolo de
papel contínuo na máquina, dando à datilografia um fluxo ininterrupto. Ele não
queria perder tempo ao trocar a folha. Estava, sem querer, inaugurando a escrita
em computador, no qual a tela tem a extensão contínua dos formulários, com a
vantagem adicional de ser infinita.
A urgência toma de assalto a literatura. Uma
velocidade na produção determina a velocidade da leitura, transpondo para o
estilo uma percepção outra de tempo. As máquinas de escrever foram banidas para
o museu e para os depósitos de quinquilharias e as gavetas assassinadas - do
ponto de vista da criação literária -, dando lugar aos arquivos eletrônicos. Com
isso, todo um ramo do pensamento sofreu uma brutal obsolescência. Não há mais
lugar para a crítica genética, pois o conceito de original eletrônico tornou
inviáveis estudos de modificações, uma vez que essas são apagadas
imediatamente.
A geração que estreia hoje na literatura não
reconhece a experiência da maturação do texto. Assim que é escrita (seja um
poema, um conto, uma crônica, o capítulo de um romance etc.), a obra vai
diretamente para os nichos digitais. A distância entre a escrita e a publicação
se desfez, e essas atividades acontecem de forma concomitante em blogs, nos
quais se escreve on-line, interagindo com um discurso contínuo (último
descendente dos formulários usados por Kerouac) e coletivo.
O que se experimenta nas redes sociais, nos
seus infinitos tentáculos, é algo que poderíamos definir como literatura
instantânea. Produzida e consumida num agora nunca antes tão urgente, a
literatura nasce e fenece ao mesmo tempo. Uma postagem no Twitter é atropelada
por outra no ato da sua escrita, e a fila cronológica das produções anda numa
espécie de velocidade da luz. Os formulários de que nos valemos nesse espaço
digital sofrem tal aceleração que pouco permanece para ser retomado. Somos
empurrados para a frente, vivendo na verdade um presente sem fim, versão
tecnológica do velho sonho de eternidade. Somos eternos, nesse território,
porque só temos o precário presente, que nos é roubado e logo devolvido numa
mecânica sem fim. A internet funciona, assim, como um rio corrente, que nos
obriga a inscrever nele alguns signos passageiros, que aumentam as suas águas e
se perdem nelas.
Em espaços menos velozes do que o Twitter, como
os sites e blogs, o texto recentemente produzido e imediatamente publicado
recebe uma atenção um pouco maior. Estão lá de forma mais disponível para os
leitores e para os autores. Assim que publica algo na rede, o escritor mais
profissional passa a modificar o texto. Dessas modificações não restam
vestígios, pois o texto vai se alterando num jogo de escrita e apagamento. A não
ser que o internauta grave os textos logo após a leitura, esses vão sendo
rearranjados, assumindo um corpo outro, como num processo de operação plástica,
em que a pessoa, radical ou lentamente, se redesenha por meio de cirurgias. O
que fica indicado como postagem de um dia do passado sofre interferências
posteriores. Pertence em verdade a um momento mais recente, mas continua
remetendo o leitor àquele tempo pré-histórico. (Nota: todo passado para os
habitantes da internet é um tempo pré-histórico.)
Se há uma trajetória textual omitida numa
postagem on-line, o processo traz uma possibilidade nova de fruição. Vemos o
escritor gerando a própria obra. Escrever também se rendeu à lógica do making
of. Acompanhamos passo a passo a construção do texto, a sua revisão, o diálogo
com os leitores. (Em boa medida, um romance escrito na rede aperfeiçoa o
processo colaborativo próprio das telenovelas e seriados, que levam em conta a
aprovação ou reprovação do público.)
O leitor passa a frequentar o blog do escritor
com uma intimidade própria de velhos amigos. Conversa com ele, olha fotos,
acompanha a rotina ao mesmo tempo em que vai lendo os originais maleáveis, que
crescem de forma fragmentária e tumultuada.
A escrita se faz assim um museu on-line, no
qual se mitifica ou se desmitifica, permitindo que os leitores leiam não só o
texto, mas a sua produção, com todo o material humano heteróclito que o
alimenta. Embora ainda pouco comum, os originais on-line de romances podem ser
uma forma de publicação totalmente focada no escritor, que dispensaria os
equipamentos editoriais - as editoras, livrarias etc. - e os suportes
tradicionais. Todos seríamos aeroamigos dos grandes escritores do presente, em
cuja sala passaríamos alguns instantes.
Imagino, por exemplo, Paulo Coelho - uma das
personalidades literárias mais conectadas às redes sociais - escrevendo um
folhetim na internet, com um capítulo a cada semana. Esse livro poderia
continuar infinitamente, até a morte do escritor, e se confundiria com a sua
vida. Cada escritor teria, num sistema assim, um único livro, um livro em
formulário contínuo, e não haveria mais distância entre escrever e viver.
Os livros impressos, esses seriam destinados
apenas às obras dos escritores de ontem, habitantes de um país remoto.
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* Miguel Sanches Neto é ficcionista,
autor, entre outros, de "Chove Sobre Minha Infância", "Um Amor Anarquista" e "A
Primeira Mulher"
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