terça-feira, 4 de julho de 2017


No avião, viaja bem quem vai na jaula ou no caixãoAngelo Abu de 04.jul.2017.


João Pereira Coutinho 


Houve um tempo em que viajar de avião era uma experiência divina. Vem nos livros: assentos espaçosos, aeromoças civilizadas, refeições dignas de um casamento real.

Lamento. Nunca conheci esse tempo. Em quatro décadas de vida, foi sempre a piorar. Hoje, regressado de uma viagem de dez horas, pergunto: vale a pena o duplo investimento? Falo do dinheiro para ir e do dinheiro para voltar. "Voltar", aqui, é no sentido ortopédico do termo: haverá fisioterapia para eu voltar a caminhar sem dores.

Tudo começa antes da viagem propriamente dita. O mesmo mundo que conseguiu enfiar um desgraçado na Lua é incapaz de encurtar os tempos de espera. O dia começa cedo, obscenamente cedo, porque é preciso estar duas ou três horas antes no lugar de embarque.

Cumprimos a tortura (de despertar) e depois cumprimos a outra (de carregar): são malas de 20 kg, nunca menos, que arrastamos pela madrugada até o táxi chegar.

O aeroporto se ergue no horizonte. Entramos. O cenário é Ellis Island, nos idos de 1900: filas quilométricas que se mexem com velocidade paquidérmica.
Nós, ensonados, já cansados, vamos empurrando a mala a pontapés. Às vezes ela cai sobre o companheiro da frente. O companheiro nem reage. Somos como os animais que caminham para o matadouro sem a energia suficiente para fugir ou chorar.

Segue-se para o controle de segurança. Removo o laptop. Descalço os sapatos. Tiro o cinto. Baixo as calças. O segurança diz que as calças não são necessárias. Passamos pelo detector de metais. Algo apita.

Os guardas aproximam-se com cara de caso e revistam-nos como se fôssemos criminosos potenciais. Nada encontram e nós suspiramos de alívio. Temos a vaga impressão de de que não cometemos nenhum crime, mas nunca se sabe: como dizem os médicos, um paciente saudável é alguém que não foi devidamente analisado.

Caminhamos para a porta de embarque. Nos aeroportos modernos, isso significa que, a meio do percurso, pensamos seriamente se não é preferível esquecer o voo e continuar a pé até ao destino. Desistimos. Felizmente, só faltam 50 quilômetros para a porta de embarque.

Na porta, ninguém embarca. Mas já existem filas de passageiros que preferem esperar em pé porque se esqueceram que o voo tem lugares marcados. Sempre contemplei esses infelizes com caridade cristã: duas horas no aeroporto e eles já não pensam; seguem o rebanho e torturam-se sem necessidade.

Entramos no avião. Ou melhor, eu entro, sempre em último, e os companheiros lançam-me olhares de desprezo, só porque eu tive a desfaçatez de esperar sentado.

O meu lugar está ocupado com bolsas, livros, comida, às vezes uma criança de colo. Quando informo que o lugar é meu, a luz que existia no olhar do parceiro do lado extingue-se de imediato. Como é fácil destruir a esperança de um ser humano.

Sento-me. Melhor: encaixo-me. E ali fico, um corpo embalsamado: se me jogassem numa vitrine do Museu Britânico, eu seria mais uma múmia esperando pelo seu retrato.

Vem a comida. É o melhor momento da viagem. Nunca entendi aqueles que reclamam do produto. Eu provo, aprovo e até peço para embrulhar: tenho dois cães em casa que esperam ansiosos pelo manjar.

Cansado, esfaimado e delirante, sonho com lugares paradisíacos. No meu caso, esse lugar é sempre o mesmo: a parte de trás de uma ambulância, onde vou finalmente deitado na maca.

Acordo na aterrissagem, levanto-me e uma estranha sensação invade o meu corpo. Por momentos, penso que é a alegria de ter sobrevivido. Afinal, é apenas a minha circulação sanguínea a regressar.

E no futuro? A coisa promete. Leio em algum lugar que a Boeing tem um novo modelo na praça: é o 737 MAX 10. Com 230 lugares (o primeiro Boeing 737 tinha 124 assentos), o avião tenciona transportar mais gente em menos espaço. Creio que isso só será possível quebrando as articulações dos passageiros, mas prometo investigar. Quando partilhei a informação com um colega viajante, ele rosnou: "Melhor ir no porão".

Pobrezinho! Como é inocente! O porão! Será que ele não sabe que o porão não é para a gente? É para animais ou cadáveres, duas classes que estão ligeiramente acima dos passageiros regulares? Digo mais: na aviação comercial moderna, só viaja bem quem vai na jaula ou no caixão. Razão tinha o poeta: quando viajar é preciso, viver não é preciso.

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