terça-feira, 18 de julho de 2017

 Lya Luft*
 Resultado de imagem para pinturas surrealistas enigmas
Impressionante nossa obstinação por entender, por resolver, por não ter dúvidas, por obter todas as explicações. Um mundo totalmente explicado seria como um deserto sem graça, sem desenhos de luz e sombra, sem vento levando areia, sem um oásis aqui e ali. Mas nós desesperadamente insistimos: “Como é que eu não entendo isso? Espera um pouco, ainda não entendi. Pode explicar de novo? O que significa isso? O que você, ou ela, ou ele, queria dizer?”.

A não ser em questões de ciência, isso me parece obtusidade mental ou delírio. Pior: mesmo numa obra de arte, nos espantamos se tudo não for de uma obviedade pobre e rala: o que significa? Como você explica isso? (E a obra de arte nem foi feita por nós...) Talvez a arte não se deva dissecar feito cadáver, mas nos fazer sentir, recriar, nos instigar? Mesmo alunos, até universitários, às vezes detestam aulas em que as coisas os levam a pensar, em vez de serem oferecidas mastigadas e regurgitadas na mesa... embora educar deva ser, sobretudo, ensinar a pensar.

Freud, o Velho, sorriu com aquele seu jeito de velho pai divertido com as maluquices dos filhos, respondendo à pergunta mais boba do mundo – se o seu inseparável charuto era um objeto fálico: “Às vezes, meus caros, um charuto é só um charuto”. Virginia Woolf, com seus enigmas e labirintos, pressionada, quase tentou se desculpar porque não era explicável: “Eu trabalho com símbolos e emoções. Se tudo for desvendado, não terei mais por que escrever”. Clarice, a Lispector, durante um evento literário no Rio, sentada na primeira fila enquanto doutores em Teoria Literária discorriam sobre sua obra, se levantou, segurou a bolsa nas duas mãos, virou-se para o público e disse naquela sua voz rascante com erres singulares: “Essa de que aí estão falando não sou eu”. Virou-se e saiu, acompanhada de dois ou três de seus jovens admiradores. Na calçada, disse laconicamente: “Quero comer camarão”. Ferreira Gullar, querido, sofrido, brilhante, sarcástico e sutil, diz essa maravilhosa frase, “a arte existe porque a vida não basta”. Não faltará quem proteste: “Mas o que ele quis dizer com isso?”.

E esta que aqui lhes fala escreveu há décadas: “Se digo flor é flor, se digo água é água. Mas pode ser disfarce de um segredo. Não me queiram prender como a um inseto no alfinete da interpretação”.

Mas nós queremos tudo claro, simples, fácil. Pensar cansa! Mil vezes escutamos ou afirmamos, em tom de protesto, quase indignação: “Não entendi. Não entendo mais nada. O que quer dizer isso?”. O obscuro, o nebuloso, por pouco que seja, nos ofende. Queremos sol batendo de chapa, nada de nuvens ou névoas. As bizarrices ou banalidades nos dão ímpeto de desmontar, examinar, esfolar, quem sabe roubar o que nos intriga, isto é, matar.

Pois eu começo a achar que nestes confusos dias pode ser melhor não querer explicar. Logo, tudo há de se complicar ainda mais, e se fundir, se confundir, se desfazer e desdizer: ações humanas, loucuras públicas, vexames pessoais ou enigmas transcendentes, andam mudando como a brisa, recuando como a maré vazante. Desistam de entender: ou tudo perde o restinho de graça e interesse que ainda nos ilude.
-----------------
* Escritora
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9842268.xml&template=3916.dwt&edition=31500&section=70 - Acesso 17/07/2017

Nenhum comentário:

Postar um comentário