sábado, 28 de novembro de 2015

" Resgate dos Afetos "

Palavra de médico

J.J. CamargoJ.J. Camargo: resgate dos afetos Arte ZH/Arte ZH

Sempre gostei do Congresso Argentino de Cirurgia, um encontro fraterno com muitos amigos conquistados ao longo do tempo numa troca aberta de experiências bem-sucedidas ou fracassadas. 
Nunca encontrei soberba nesse convívio. Afora o alto nível dos convidados estrangeiros, nos últimos anos, ainda tenho sido agraciado com o reencontro dos vários ex-residentes argentinos do nosso serviço. 

O abraço mais demorado e os olhos marejados não enganam: há saudade sobrando naquele círculo, ainda que não exista essa palavra no idioma espanhol. Entendo que eles não se sintam em desvantagem por isso, porque, para mim, ouvir-lhes confessar “Le extraño, profesor!” é muito bom e mais do que suficiente para expressar a falta mútua que sentimos.

No jantar obrigatório, todos falam muito rápido porque, afinal, sempre há muito o que relembrar, antes que o tempo acabe e as nossas memórias sejam varridas pelo esquecimento.

 Neste burburinho afetivo, são recuperadas histórias preciosas que, de outra maneira, se perderiam.

O Suarez, entre risos e pausas para se recompor, relembrou a primeira entrevista com um paciente de uns 80 anos, com a cabeça muito branca, e o quanto lhe pareceu amigável chamar-lhe repetidamente de “avôzinho”, que, aprendera fazia pouco, equivalia ao “abuelito”, que era como chamava seu saudoso avô.
Terminada a longa anamnese, o paciente pediu a palavra: “Meu caro doutor, gostei do seu carinho e tenho certeza que o senhor será um médico bem-sucedido, mas preciso lhe contar uma história da minha família: meu pai sempre dizia que todo o homem deve ter dois filhos para assegurar a sua continuidade genética. 
Ele teve dois filhos, e meu irmão e eu seguimos a recomendação, com dois filhos cada um. E outra vez a tradição foi mantida e cada filho meu teve igualmente dois filhos”. O Suarez confessou que não imaginava o desfecho quando o velhinho, depois de uma longa pausa, recomeçou: “Mas por que estou lhe contanto isso? Ah, já lembrei: eu queria que o senhor soubesse que eu já tenho todos os netos que planejei ter!”. 
Ele aprendeu naquele dia o quanto o uso de diminutivos é malvisto na maioria das relações com pacientes idosos.
O Aquino recuperou uma situação hilária. Tínhamos operado uma anciã e havia a natural preocupação de como ela despertaria da anestesia, que fora mais prolongada que o desejado. Quando ela finalmente abriu os olhos, lhe perguntei: “A senhora está me reconhecendo?” . Ela começou bem: “José”, ótimo. “Jesus”, perfeito. “Maria”.
Fácil imaginar o desespero ao descobrir que, em vez de reconhecer seu cirurgião, ela estava evocando a Sagrada Família!
O Chimondegui se deliciou com a lembrança de uma cliente do mestre Palombini, internada no Hospital Moinhos de Vento, e que ele queria muito que eu avaliasse a possibilidade de cirurgia apesar da idade avançada da paciente. Toda a apresentação do caso tinha esse viés de persuasão induzida pelo desejo de ajudar a paciente que o Palombini adorava e que, de outra maneira, morreria. “Camargo, tu vais adorar a dona Cleide! Ela é maravilhosa, mas é bem velha! Não lembro de um ecocardiograma tão normal nesta idade, mas ela é velhinha! Também vais te impressionar com a espirometria, mas eu sei que ela é velha!”. 
Ao abrirmos a porta do quarto, Chimondegui e eu estávamos preparados para encontrar a irmã de Matusalém, e deparamos com uma senhora, muito magra e frágil, sentada sobre as pernas, tricotando com mãos nodosas um pulôver de lã branca como seus cabelos.
 Quando lhe perguntei: “A senhora é a dona Cleide?”, o inesperado: “A mamãe foi fazer uma radiografia de tórax”.
Difícil conter a surpresa porque a filha já parecia bastante idosa para o projeto cirúrgico.

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