sexta-feira, 20 de setembro de 2013

" O enigma urbano "


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"A arquitetura deve ser secundária. O urbano deve vir em primeiro lugar, com a preocupação voltada para transporte, infraestrutura, densidades", diz Mayne,
que participa do Arq.futuro
Somos incapazes de entender o funcionamento das cidades gigantescas que construímos, mas elas são tão complexas e tão importantes que estão se tornando o principal tema da arquitetura, e é preciso compreendê-las. Esse é o grande desafio do urbanismo, segundo o arquiteto americano Thom Mayne, vencedor do Prêmio Pritzker, o mais prestigiado da área, e membro do Comitê Presidencial sobre Artes e Humanidades, grupo multidisciplinar de estudos criado por Barack Obama.
Uma das atribuições de Mayne em seu trabalho para o governo é avaliar projetos de edificações públicas. Mayne sublinha o caráter icônico da arquitetura, que expressa valores sociais, culturais e econômicos de uma coletividade. Numa era em que grandes edifícios corporativos se tornaram muito mais chamativos do que as marcas do poder público, o arquiteto argumenta que a sociedade precisa se perguntar quais são os símbolos sociais que pretende expressar em suas maiores cidades.

Fundador, em 1972, do escritório Morphosis, Mayne propõe uma arquitetura inspirada em processos biológicos e profundamente ligada ao terreno da construção. Ele define a arquitetura como "uma extensão da superfície da Terra" e trabalha com noções de aleatoriedade, complexidade e paisagismo, para produzir obras como a residência de estudantes da Universidade de Toronto, a escola de arquitetura Cooper, em Nova York, e o tribunal de Eugene, no Oregon.

Ao citar o livro "Cidades Invisíveis", de Italo Calvino, o arquiteto, que vem ao Brasil na próxima semana para participar do Arq.futuro, afirma que arquitetura e urbanismo se encontram na conjunção de ciência, lirismo e arte, integrando numa mesma criação material os aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais que orientam a vida no espaço comum. Para isso, sempre é necessária uma "negociação" entre o lado público e o privado de uma cidade.

A seguir, os principais trechos da entrevista com Thom Mayne.

Valor: As cidades ganham papel cada vez mais central na economia, principalmente as metrópoles. Como o urbanismo responde a esse movimento?
Thom Mayne: Algumas cidades, hoje, são maiores do que países. Los Angeles é do tamanho da Holanda e duas vezes maior que a Áustria ou a Suíça. Cerca de 17,5 milhões de pessoas vivem na região metropolitana. Precisamos tentar entender de novo o que são as cidades. É um fenômeno completamente novo. Não existem mecanismos para entender a natureza de uma cidade do tamanho de São Paulo. Esse vai ser um dos campos de pesquisa mais interessantes na próxima década. Cada vez mais pessoas estão se interessando por entender e definir o que isso significa. A principal ideia, quando eu era estudante, no fim dos anos 1960, era planejar as cidades, que acreditávamos entender, e por isso era possível fazer escolhas conscientes sobre como intervir nelas. Isso não é mais possível. Não dá para entender a cidade. É o problema mais interessante da arquitetura, hoje. Quando entendermos o problema, a pergunta vai ser: como lidar com ele? Muito se discute sobre isso, mas muito pouco trata de soluções. E o problema não é mais entender a cidade no sentido físico, mas no contexto econômico, social, político, cultural, ecológico.

Valor: Depois de Le Corbusier, Lucio Costa, Robert Moses, o urbanismo planejador que o senhor estudava na faculdade, veio a crítica a isso, em figuras como Jane Jacobs e Marshall Berman, nos anos 1970 e 1980. O que vem em seguida?
Mayne: Rem Koolhaas foi dos primeiros a rearticular o sentido do problema. Ele não propõe uma solução, mas se propõe reinvestigar a determinação da escala de uma cidade. Algumas escolas nos Estados Unidos estão mudando da arquitetura entendida como um ato singular para um urbanismo que enxerga os problemas de articulação. Mas ainda estamos em um estágio bastante preliminar. Um caminho é o urbanismo paisagístico. Mesmo a expressão "planejamento urbano" faz cada vez menos sentido. Não se pode mais pensar de maneira unificada uma cidade como São Paulo.

Valor: Uma expressão que o senhor usa ao descrever suas obras é "ativar a cidade". O que está por trás dessa noção?
Mayne: As cidades são feitas de sequências de edifícios, que vão se somando. Às vezes, um edifício pode ter uma força e uma importância que sobressaem. Por exemplo, a escola de arquitetura e engenharia Cooper Union, no coração de Manhattan. Ao fazer o projeto, discutíamos como aproveitar seu potencial de energia criativa. A ideia era fazê-la bem aberta sobre a rua, visível e transparente. Ela representa o que Nova York realmente é, a atividade humana hiperdensa. Isso ativa a cidade e a faz única. Construções, por meio da transparência e pela conexão que podem ter com a cidade, são parte disso, conferindo energia e vibração à cidade. É uma definição do urbanismo. Todo edifício é inextricavelmente conectado ao entorno. Sejam projetos de habitação popular, edifícios públicos, escolas, sedes de empresas, todos têm potencial de contribuir para a vibração da cidade e ativá-la. É uma questão de diálogo, interação, conversa. O diálogo é a base da sociedade civilizada e democrática.

Valor: Outra expressão sua é a construção como "ampliação da superfície da Terra", como se as cidades não devessem ser implantadas no chão, mas contínuas a ele.
Mayne: As pessoas pensam que construir é algo que se faz sobre o chão, um terreno neutro ou inerte. Construir de modo a ampliar a superfície da Terra tem a ver com a maneira de relacionar o formato do terreno e o do edifício, que podem mesmo se unir. Nos grandes projetos urbanísticos, nada mais é natureza, tudo é aumentado, é feito pelo homem. Temos uma responsabilidade nisso. O terreno é tão importante quanto o projeto. Deve ser pensado não como algo dado de antemão, mas como parte do projeto. Devemos começar por desenvolver o terreno como ideia. Construímos o terreno também. A edificação é parte disso.
Arquitetura e urbanismo se encontram na
conjunção de ciência, lirismo e arte, numa
"negociação" entre o público e o privado

Valor: Hoje, constroem-se muitos prédios quase inteiramente autossustentáveis. Já é possível pensar nessa noção estendida para a cidade como um todo?
Mayne: É essencial. Qualquer prédio que sai de nosso escritório é assim. Somos como quatro ou cinco escritórios trabalhando juntos. Um grupo dedicado à fachada, outro à tecnologia, outro à energia. Em termos de desempenho, tudo está se movendo na velocidade da luz. Com mais de 7 bilhões de pessoas no mundo e o principal desse crescimento acontecendo na classe média de países emergentes, não é mais possível pensar em construir com grande consumo de energia, água e material. Acabou aquele mundo loucamente abundante. Nessa perspectiva, a arquitetura deve ser secundária, em relação ao urbanismo. O urbano deve vir em primeiro lugar, com a preocupação voltada para transporte, infraestrutura, densidades, tipos de construção. Uma descoberta recente, que surpreendeu muita gente, foi o fato de que as cidades mais sustentáveis são as mais densas. Há alguns anos, li um artigo com o título "Quer Defender a Natureza? Mude-se para Manhattan". Em Nova York, tudo está próximo: o padeiro, o barbeiro, o metrô. Mal gasto com calefação, porque o calor dos apartamentos em volta esquenta o meu. Los Angeles não é assim.

Valor: Nesse novo urbanismo, como entra a noção de "smart city", a cidade monitorada?
Mayne: É preciso entender a complexidade das forças por trás das enormes metrópoles. Então, desenvolvem-se formas de monitoramento, para que tenhamos algum controle. Estão fazendo isso também com o corpo humano. Tenho uma pulseira que toma vários dados meus e faz uma espécie de diagnóstico em tempo real. Entendemos cada vez melhor o funcionamento dos sistemas complexos, a partir de informações conseguidas em todas as partes, ao mesmo tempo.

Valor: Quem deve adorar tanta informação é a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos...
Mayne: Estamos só começando a discussão sobre as fronteiras da privacidade e da transparência. Todo mundo está interessado nos diagnósticos do próprio corpo. Sabemos cada vez mais o que acontece em nível molecular. Isso pode ser muito útil para o indivíduo, mas é fácil ver como pode ser um problema se a informação é coletada pelo governo ou por empresas. No caso das cidades, ninguém se incomoda com a coleta de informações sobre trânsito e iluminação. Mas pense em livrarias on-line: pelos livros que uma pessoa comprou, é possível conhecer a história de sua vida.

Valor: O senhor descreve o trabalho do arquiteto como uma negociação entre um universo privado e um público. Hoje, como consultor de edificações públicas, como vê essa negociação?
Mayne: Muita gente pensa que a arquitetura é campo exclusivo do arquiteto, que chega com uma ideia e constrói. Mas há outros fatores em jogo, principalmente em edifícios públicos: é o mundo coletivo, estão presentes mentalidades conservadoras. O arquiteto lida com múltiplos clientes. Não é a mesma coisa que lidar com uma pessoa e uma visão. O que está em jogo é todo o contexto público. Isso pede um processo educativo. É uma negociação bastante ativa e é uma parte fundamental do trabalho. É fundamental fazer as pessoas entenderem qual é o raciocínio por trás do projeto.

Valor: Arquitetos reclamam, no Brasil, de licitações em que se exigem soluções de menor custo, deixando de lado projetos mais ousados.
Mayne: Esse é um exemplo da importância das circunstâncias para o arquiteto. Mas é um exemplo extremo, não há chance de mudar o resultado final se não mudarem primeiro as circunstâncias. O mais importante é que o ponto de partida da arquitetura é o desejo. A sociedade, a comunidade de negócios, o poder público, todos precisariam desejar algo significativo para o projeto. Teriam de considerar que a arquitetura é significativa socialmente, culturalmente, politicamente, urbanisticamente.

Valor: Historicamente, os edifícios com finalidade política e religiosa foram os mais grandiosos nas cidades, seja na Grécia, na Renascença, em qualquer época. A partir do século XX, edifícios comerciais, sobretudo sedes de grandes corporações, tomaram esse posto...

Mayne: A arquitetura reflete as mudanças de valores nas sociedades. Na segunda metade do século XX, o poder das corporações, o status do mundo dos negócios, se acentuou. Grande número dos novos símbolos são símbolos desse capitalismo. Nos Estados Unidos, o maior representante disso é provavelmente o edifício feito por Mies van de Rohe para a Seagram. É uma questão de transferência de status, já que o mundo privado ficou mais poderoso e desenvolveu seus próprios ícones. O poder público está cada vez menos interessado em expressar sua condição de poder. Esforços mais recentes, nos Estados Unidos, para revalorizar a construção pública vêm do desejo de algumas pessoas que afirmam: "Se queremos representar iconicamente a cultura, isso deve envolver a arquitetura, a começar pelos edifícios públicos". O status das religiões esteve fortemente baseado em arquitetura e pintura. É uma questão do poder da religião ao longo de muitos séculos. Estamos em um ciclo em que o status da política e o dos negócios, em sentido cultural, estão em estágios diferentes. Os negócios parecem ser uma força maior no momento. É onde o poder está.
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Edifício do Perot Museum of Nature, em Dallas, Texas: Thom Mayne propõe uma arquitetura inspirada
em processos biológicos e profundamente ligada ao terreno
Valor: Isso se reflete na maneira como as pessoas percebem o mundo em que vivem.
Mayne: A diferença é que o governo representa as realizações coletivas de uma população. O mundo privado só faz isso, eventualmente, por meio do altruísmo. Mas, basicamente, funciona na lógica do lucro. Não tem interesse em representar a cultura, só a si próprio, seu status econômico. É um projeto completamente diferente. Pergunte a um prefeito: Como você quer ser lembrado daqui a 50 anos? Qual vai ser o status da sua cidade? Você deixou alguma coisa como legado, durável? A arquitetura é algo durável e o símbolo de alguém que você foi. É um ícone e um símbolo daquilo que foram seus interesses. Se não, o que você deixou como legado? Se não for capaz de responder, provavelmente não está preocupado em mudar a sociedade.

Valor: Seus clientes conseguem acompanhar os aspectos filosóficos de seu trabalho? Para quem não entende de arquitetura, deve soar enigmático.
Mayne: Depende do cliente. Não são muitas as pessoas que querem discutir o teor da arquitetura. Mas, quando chegam a meu escritório, estão atrás de soluções inovadoras. A primeira coisa que procuro fazer é explicar o conceito, sem soar radical. O que queremos fazer é produzir uma arquitetura inovadora e relevante para o século XXI. Deve ser assim para o desempenho do projeto, no uso da energia, nas operações mecânicas, e também em termos de forma final. O uso dos materiais, os conceitos, o aproveitamento do espaço. Isso é parte do meu trabalho como educador. Sentar com o cliente, envolvê-lo. Em mais de 40 anos de carreira, minha experiência é que, se você explica abertamente o que está propondo, as pessoas são bastante abertas a ideias novas, desde que entendam por que essas ideias existem. O processo criativo tem algo de intoxicante. Trabalhamos de forma intuitiva, experimentando sem saber o que vai resultar. Vamos fazendo perguntas e desenvolvendo. Não é um processo linear. Sou fascinado pelo processo de criar um edifício, que responde à implantação, à paisagem, às demandas de quem vai usar, urbanismo, rede de transportes, tantas coisas. Os clientes costumam ficar interessados, até se divertem ao se envolver com toda essa complexidade.

Valor: O senhor também manifesta interesse por introduzir a aleatoriedade na arquitetura. E isso, em grande medida, com a ajuda de programas de computador.
Mayne: As cidades, à medida que se desenvolvem, produzem eventos aleatórios, inesperados, que reconfiguram a maneira como as coisas são planejadas daí por diante. Na vida das cidades, a aleatoriedade é fundamental, é o que as torna fascinantes e vivas. Procuramos encontrar maneiras de reproduzir parte disso em nosso trabalho, incorporando as possibilidades de eventos aleatórios que resultem em outras possibilidades inesperadas. Trata-se de introduzir noções próximas da biologia, a estrutura evolucionária das células. Se alguém for documentar um pedaço de uma floresta, não pode usar um plano cartesiano. Mas, olhando as partes, não há dúvida de que são coesas, baseadas em processos naturais. Todo o trabalho que temos feito consiste em repensar como organizamos as coisas. Isso é o que todos os arquitetos fazem. Colocamos ordem nas coisas, as fazemos coesas. Isso é uma definição simples da arquitetura. O que me interessa são novas formas de organizar as coisas, que ultrapassem a lógica clássica.

Valor: Juntando a ideia de aleatoriedade com a de aumento da superfície da Terra, temos quase a descrição do reino vegetal: a árvore organiza a Terra a partir da energia que absorve do sol.
Mayne: Exato, e os arquitetos usam cada vez mais conceitos tirados do paisagismo, caminhando para o mundo natural, com seus tipos de relação e complexidades naturais. A maioria das pessoas está muito acostumada com ordens estabelecidas pelo ser humano, o que remete ao classicismo. Os jovens arquitetos estão procurando se inspirar na biologia e no comportamento evolu
tivo, na complexidade. O ambiente digital permite isso. Estou com quase 70 anos e aprendi da forma antiga: a mesa de desenho. Eu tinha quase 50 anos quando a tecnologia digital invadiu os escritórios.

Valor: Seu escritório está construindo um edifício em São Francisco que não precisa de ar condicionado. Isso poderia funcionar num país quente como o Brasil?
Mayne: É sempre uma questão do clima local. Em São Francisco, o clima é ameno e com vento constante: só precisaríamos ter janelas abertas, com ar se movimentando no interior do edifício. Meu estúdio em Santa Monica tem turbinas de vento no teto e somos neutros em energia. Isso acontece graças à proximidade da costa e à moderação do vento e da temperatura. Em Nova York, a situação é diferente, com invernos rigorosos e verões secos. Não sei como é a condição do vento no Brasil, mas, conforme for, podem-se fazer adaptações para uso em parte do ano. (Viana de Oliveira)
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Fonte: Valor Econômico on line, 20/09/2013

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