Mario Corso*
O gaúcho pilchado e a cavalo faz uma figura elegante,
o pala o protege do minuano, mas não dos
ventos inclementes da história atual
.
A história não poderia ser mais triste. No distante século 13, o príncipe Llywelyn sai de casa e deixa seu filho pequeno sozinho. Por sorte, seu cachorro Gelert cuida da casa. Voltando, não encontra o filho. Apavorado, observa que o cachorro está com a boca, o focinho e o pelo empapados de sangue. Num impulso de raiva, mata o cão assassino. Pouco depois, encontra o filho que estava escondido e, a seguir, um lobo morto. Desolado se dá conta que entendeu tudo ao avesso. Matou o fiel cão que salvara a vida de seu filho. Cheio de remorsos, enterrou com honras o cão para reparar seu erro. Quem visita o condado de Caernarvon, no País de Gales, ainda pode ver o marco funerário.
A história é boa, nos ensina a pensar sempre com calma, não se deixar levar pelas aparências. O único problema dessa história é que, com pequenas variações, é conhecida por vários povos do mundo todo, e claro, sempre contada como verdadeira, com local e personagens definidos. Essa coincidência nos coloca uma pulga sobre a autenticidade do relato. De fato, a placa existe, mas a história é mito. A lápide foi feita por um hoteleiro proprietário do Royal Goat Hotel em Beddgelert e dizem que a lenda (adaptada) também seria de sua autoria. Os turistas adoraram a história que ganhou até um poema famoso em que se conta o incidente. Esse fato diz muito de nós, sempre tendemos a acreditar mais nos mitos, que são mais ricos, mais sábios, mais elevados, do que na triste e pálida história. Entre o mito e a histórias, tendemos a preferir o mito.
Creio que qualquer pessoa medianamente informada já sabe que ontem, dia 20 de Setembro, a data gaúcha por excelência, celebramos um mito que inventamos para nosso deleite. Saudamos uma revolução que não foi revolução, cantamos uma vitória que foi uma derrota (forçando muito, um empate em casa), e assim por diante. Criamos uma mitologia gaudéria com elementos díspares, geralmente com pouco contato com a realidade vivida. Mas qual seria o problema? Afinal, tantos povos fazem isso, o folclore é sempre uma criação a posteriori que edita para melhor nossas mazelas históricas.
E existem micos maiores, Eric Hobsbawm no seu livro A Invenção das Tradições demostra, com exaustiva pesquisa histórica, que o kilt, o saiote que é o símbolo da identidade escocesa, nunca fora usado antes de ser “descoberto” como traje típico. Toda aquela arenga de cada tecido (tartan) lembrando um clã é pura farofa. Portanto, o que perderíamos cultivando a nossa pequena pátria imaginária, que pelo menos usa bombacha para tapar as pernas? Há quem vá mais longe nesse argumento do mal menor, ou do fato inofensivo, quando lembra do imaginário caipira atual do interior de São Paulo. Lá se copia o pior dos caubóis texanos. Logo, dizem, poderíamos estar pior, tendo que aturar rodeio com chapéu de vaqueiro americano. Isso sim seria o fim da picada.
Portanto, mito por mito, lorota por lorota, melhor contar com algo feito em casa, certo? O problema é que a questão é um pouco mais complexa. Não vivemos sem um relato histórico, tanto que, se não o temos, inventamos. Precisamos de origem, de pais fundadores, de raízes que não nos deixem soltos no rio da história. Aqui entra o gaúcho, como nosso ancestral primitivo, simples, franco, rude, mas leal e honrado.
Na sociedade tradicional, o mito era o horizonte do pensamento. Mais do que uma coleção de histórias, como hoje nos chega, o mito era uma forma de interpretar o mundo, portanto uma forma de pensar e de processar informações. No mundo moderno, o mito adquiriu a função oposta: ele é uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos. Impede que possamos ver o nosso passado diferente das formas fixas que os tradicionalistas elegeram.
Se o mito fosse só para dias festivos, não haveria problema algum. Assim é o Carnaval, e o 20 de Setembro tem algo dele, mas aqui com a fantasia única e regrada. Não uso Carnaval como metáfora, mas como conceito mesmo: como um tempo em que se suspende o presente para que se possa viver uma fantasia, e que se dilua, ao longo de seus festejos, a hierarquia social. No Carnaval, cada um vive seu personagem e adquire o valor que imagina que tem ou que gostaria de ter. Um tempo de exceção para sonhar em voz alta e esquecer a estreita e pálida realidade.
O problema, no nosso caso, é que nossa fantasia de origem gaudéria se desborda para o ano inteiro. O que seria uma festa, um mito fundador, torna-se ideologia. Usamos o mito para criar autoestima, mas também para pensar os fatos que se nos apresentam hoje. Mas fica a questão: como uma fantasia pastoril do século 20, idealizando o 19, pode nos fornecer chaves para entender a complexidade do 21? Tentamos, mas o fato de usar bombacha e idealizar nosso passado não nos poupa dos dilemas do nosso tempo. A aceleração da história nos coloca desafios constantes, o novo nos invade e pede que o decifremos para não sermos engolidos. Não temos opção de não viver nossa época. Todos esses movimentos de criação de identidades regionais fazem parte de uma tentativa de barrar a globalização, de se defender do novo. São reafirmações do local frente ao global, e do passado frente ao presente.
A questão não é abrir as portas do Rio Grande ao que vem de fora de modo a perder a identidade regional. Penso o contrário: em como fazermos nossa própria versão de modo a responder ao que a ocasião nos pede. Nesse sentido, a ideologia gaudéria não soma, na verdade nos deixa mais frágeis. Como todo mito, ideologia ou religião, seu aparato conceitual faz uma leitura simplória do mundo. Oferece boas soluções para um mundo que já desapareceu e não ajuda a enxergar melhor o presente multifacetado que é o nosso verdadeiro desafio.
O gaúcho pilchado e a cavalo faz uma figura elegante, o pala o protege do minuano, mas não dos ventos inclementes da história atual. Essa ideologia não nos ajuda, serve apenas como barreira imaginária ao que é estrangeiro e nos fornece armas ilusórias para uma batalha real, a de fazer desse Estado um lugar realmente melhor.
-------------------- * PsicanalistaA história é boa, nos ensina a pensar sempre com calma, não se deixar levar pelas aparências. O único problema dessa história é que, com pequenas variações, é conhecida por vários povos do mundo todo, e claro, sempre contada como verdadeira, com local e personagens definidos. Essa coincidência nos coloca uma pulga sobre a autenticidade do relato. De fato, a placa existe, mas a história é mito. A lápide foi feita por um hoteleiro proprietário do Royal Goat Hotel em Beddgelert e dizem que a lenda (adaptada) também seria de sua autoria. Os turistas adoraram a história que ganhou até um poema famoso em que se conta o incidente. Esse fato diz muito de nós, sempre tendemos a acreditar mais nos mitos, que são mais ricos, mais sábios, mais elevados, do que na triste e pálida história. Entre o mito e a histórias, tendemos a preferir o mito.
Creio que qualquer pessoa medianamente informada já sabe que ontem, dia 20 de Setembro, a data gaúcha por excelência, celebramos um mito que inventamos para nosso deleite. Saudamos uma revolução que não foi revolução, cantamos uma vitória que foi uma derrota (forçando muito, um empate em casa), e assim por diante. Criamos uma mitologia gaudéria com elementos díspares, geralmente com pouco contato com a realidade vivida. Mas qual seria o problema? Afinal, tantos povos fazem isso, o folclore é sempre uma criação a posteriori que edita para melhor nossas mazelas históricas.
E existem micos maiores, Eric Hobsbawm no seu livro A Invenção das Tradições demostra, com exaustiva pesquisa histórica, que o kilt, o saiote que é o símbolo da identidade escocesa, nunca fora usado antes de ser “descoberto” como traje típico. Toda aquela arenga de cada tecido (tartan) lembrando um clã é pura farofa. Portanto, o que perderíamos cultivando a nossa pequena pátria imaginária, que pelo menos usa bombacha para tapar as pernas? Há quem vá mais longe nesse argumento do mal menor, ou do fato inofensivo, quando lembra do imaginário caipira atual do interior de São Paulo. Lá se copia o pior dos caubóis texanos. Logo, dizem, poderíamos estar pior, tendo que aturar rodeio com chapéu de vaqueiro americano. Isso sim seria o fim da picada.
Portanto, mito por mito, lorota por lorota, melhor contar com algo feito em casa, certo? O problema é que a questão é um pouco mais complexa. Não vivemos sem um relato histórico, tanto que, se não o temos, inventamos. Precisamos de origem, de pais fundadores, de raízes que não nos deixem soltos no rio da história. Aqui entra o gaúcho, como nosso ancestral primitivo, simples, franco, rude, mas leal e honrado.
Na sociedade tradicional, o mito era o horizonte do pensamento. Mais do que uma coleção de histórias, como hoje nos chega, o mito era uma forma de interpretar o mundo, portanto uma forma de pensar e de processar informações. No mundo moderno, o mito adquiriu a função oposta: ele é uma forma de congelar a história para não pensar. Portanto, o mito do gaudério nos distancia de nós mesmos. Impede que possamos ver o nosso passado diferente das formas fixas que os tradicionalistas elegeram.
Se o mito fosse só para dias festivos, não haveria problema algum. Assim é o Carnaval, e o 20 de Setembro tem algo dele, mas aqui com a fantasia única e regrada. Não uso Carnaval como metáfora, mas como conceito mesmo: como um tempo em que se suspende o presente para que se possa viver uma fantasia, e que se dilua, ao longo de seus festejos, a hierarquia social. No Carnaval, cada um vive seu personagem e adquire o valor que imagina que tem ou que gostaria de ter. Um tempo de exceção para sonhar em voz alta e esquecer a estreita e pálida realidade.
O problema, no nosso caso, é que nossa fantasia de origem gaudéria se desborda para o ano inteiro. O que seria uma festa, um mito fundador, torna-se ideologia. Usamos o mito para criar autoestima, mas também para pensar os fatos que se nos apresentam hoje. Mas fica a questão: como uma fantasia pastoril do século 20, idealizando o 19, pode nos fornecer chaves para entender a complexidade do 21? Tentamos, mas o fato de usar bombacha e idealizar nosso passado não nos poupa dos dilemas do nosso tempo. A aceleração da história nos coloca desafios constantes, o novo nos invade e pede que o decifremos para não sermos engolidos. Não temos opção de não viver nossa época. Todos esses movimentos de criação de identidades regionais fazem parte de uma tentativa de barrar a globalização, de se defender do novo. São reafirmações do local frente ao global, e do passado frente ao presente.
A questão não é abrir as portas do Rio Grande ao que vem de fora de modo a perder a identidade regional. Penso o contrário: em como fazermos nossa própria versão de modo a responder ao que a ocasião nos pede. Nesse sentido, a ideologia gaudéria não soma, na verdade nos deixa mais frágeis. Como todo mito, ideologia ou religião, seu aparato conceitual faz uma leitura simplória do mundo. Oferece boas soluções para um mundo que já desapareceu e não ajuda a enxergar melhor o presente multifacetado que é o nosso verdadeiro desafio.
O gaúcho pilchado e a cavalo faz uma figura elegante, o pala o protege do minuano, mas não dos ventos inclementes da história atual. Essa ideologia não nos ajuda, serve apenas como barreira imaginária ao que é estrangeiro e nos fornece armas ilusórias para uma batalha real, a de fazer desse Estado um lugar realmente melhor.
FONTE: ZH ON LINE, 21/09/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário