Paulo Ghiraldelli Jr*
Em 1989, com a Queda do Muro de Berlim, houve quem escreveu que após vinte ou trinta anos poderíamos ler Marx de um modo melhor, mais filosófico que político.
Bem, o tempo realmente passou e o comunismo como política não existe mais. No entanto, o marxismo como filosofia,
é alguma coisa útil hoje?
A lição filosófica de Marx não deve ser avaliada como verdadeira ou falsa. Ela não deixa de ser inteligente e criativa e, de certo modo, convincente. É difícil ser filósofo e não reconhecer esses seus dotes. Qual e essa lição?
Marx resolveu olhar para os produtos que vão para o mercado, que se transformam em mercadoria, como que deixando de ter um valor segundo o uso, e adquirindo um valor típico de mercadoria, ou seja, o valor pelo qual se pode trocá-los. Uma vez tendo valor de troca, ou seja, valor em geral, ele seria trocado não por outro produto, mas por dinheiro. Este nada seria senão um elemento de equalização para a facilitação do trânsito das mercadorias. Sendo um número, imporia sua condição de abstração a todos os produtos, a todas as mercadorias. Ora, uma vez que na sociedade tudo pode ser mercadoria, ou seja, tudo pode ser trocado por dinheiro, por uma abstração, teríamos então uma sociedade em que nada mais teria rosto próprio. Todos os rostos se igualariam uma vez igualados ao número, ao elemento abstrato. O reino da abstração daria suas ordens para tudo à medida que tudo que conhecemos pode ser posto no mercado e trocado por dinheiro. A mercadorização do mundo geraria pessoas incapazes de distinguir qualquer coisa pelos antigos valores universais platônicos, como o Belo, o Verdadeiro e o Bem. Os universais desapareceriam subsumidos por um só universal: a abstração enquanto abstração, o rosto sem qualquer formado do número que se ergue ao lado do cifrão.
Analisado isso, Marx postulou que quando a globalização da sociedade de mercado avançasse por todos os poros da sociedade mundial, teríamos o império dessa abstração comando nossas mentes e, de quebra, nossos corações. Seríamos incapazes de olhar para qualquer coisa de modo a enxerga-la sob outra marca que não a marca da abstração, ou seja, o rosto sem rosto, o rosto sem rugas, sem marcas do tempo ou espaço. O rosto sem geografia e história. Os rostos, de tudo e de todos, nada seriam senão rostos de manequins de vitrine ou, pior ainda, apenas uma massa cinzenta incapaz de promover qualquer imaginação.
Não à toa, portanto, poderíamos trocar, não só no trabalho, mas também no amor, mulheres e homens por outros homens e mulheres com facilidade. Mas isso num primeiro passo. Em um segundo passo poderíamos trocar no trabalho esses humanos por robôs, e no amor, pelas bonecas e bonecos acoplados ou não a vibradores.
Haveria uma alteração profunda na capacidade nossa de apreciar coisas e amar pessoas. Apreciamos coisas e amamos pessoas por suas características específicas. Todavia, se tudo e todos não são assim mais mostrados, mas se transformam em dinheiro e este em possibilidade de exibição, temos aí uma “sociedade do espetáculo” – tudo é feito apenas para ser mostrado para o outro. Mas para impressioná-lo não no sentido de despertar nele a velha inveja ou o carcomido ciúme, mas a submissão. Desse modo, não importa que eu tenha uma bolsa feia e inútil, o que importa é que ela seja de uma grife que me faz ser notado como alguém que transita no mercado com desenvoltura, alguém com poder de fazer e acontecer. Pois quem compra uma bolsa daquela marca tem dinheiro para comprar homens, mulheres, políticos, capangas armas e pastores. Trata-se de participar de uma sociedade do espetáculo que não gera narcisistas, como alguns teóricos afoitos vomitam por aí, mas que gera agentes intimidadores que se acham, por sua vez, também intimidados por outros mais intimidadores ainda.
Quando olhamos para o mundo que nos cerca, quando andamos nos shoppings e vemos a TV, quando notamos tudo que é o mundo contemporâneo por olhadelas rápidas na Internet, é difícil não valorizar esses brilhantes insights de Marx. Só então, podemos ver o quanto Marx é atual.
Todavia, se o marxismo realmente é atual, então também ele se torna um elemento a mais na sociedade do espetáculo nesse sentido. Deixo de usar do marxismo para entender a sociedade, e ele próprio, como teoria, passa a ser um dote que apresento no contexto intelectual em que vivo para me mostrar senhor do mercado educacional ou editorial ou mesmo midiático. Pude ter uma educação que me permite dissertar sobre Marx, e desse modo, também eu tenho lá algum poder, e capacidade intimidar e ser intimidado – é o que faço com o meu marxismo. É o que posso estar fazendo agora, neste momento, e poder confessar isso não diminui o efeito perverso, de certo modo até o amplia! Mostro-me como tendo um plus poder ao ser capaz de falar do marxismo criticamente, diferente dos que não poderiam agir assim.
Isso torna o marxismo, nesses aspectos filosóficos, algo bem plausível, pois ele se confirma no momento mesmo que perco a minha consciência crítica na posse do próprio marxismo, como ele disse que ocorreria comigo, nesse mundo em que estou entrando desde meados do século XIX.
---------------------------------------------
* Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ – http://ghiraldelli.pro.br Autor do recente Filosofia política para educadores (Editora Manole).
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/a-licao-interessante-do-marxismo/25/09/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário