Nos 21 anos entre o ataque a Lennon e o ataque às torres um mundo destribalizado, ou transformado numa tribo solidária e sensata, ficou inimaginável
Eu estava em Nova York quando mataram o John Lennon, em 1980. Estava em Nova York quando a cidade fechou para enfrentar a fúria de um furacão que, mesmo chamado “Hugo”, prometia ser o mais destrutivo de todos os tempos. Nos recolhemos ao nosso quarto de hotel com um bom sortimento de água mineral, preparados para o pior. “Hugo” chegou com vento e chuva fortes e, que se saiba, não derrubou uma árvore ou carregou uma velhinha, mas durante um dia inteiro manteve a cidade acuada. E estávamos hospedados no mesmo hotel quando destruíram as torres do World Trade Center. Antes que você tire a lição óbvia desta sequência — nunca ir comigo a Nova York — devo esclarecer que estive muitas outras vezes na cidade sem que nada de anormal acontecesse, pelo menos que saísse nos jornais. De qualquer maneira, se as coincidências não valeram para mais nada, valeram para me dar assunto. Já escrevi muitas vezes sobre o fato de estar em Nova York quando mataram o Lennon e depois, quando derrubaram as torres. E lá vou eu de novo.
Uma das músicas cantadas num concerto em benefício das famílias das vítimas dos atentados em Nova York foi “Imagine”, do John Lennon, justamente a música em que ele pede à sua geração que imagine um mundo sem países e sem religião, ou nada pelo qual lutar e morrer irracionalmente. Cantar “Imagine” foi uma maneira de evocar outra tragédia da cidade e o assassinato de um novaiorquino por adoção que certamente estaria ali se estivesse vivo. Mas não foi exatamente uma escolha adequada. Se o fanatismo religioso era parcialmente responsável pela loucura suicida dos que atacaram o World Trade Center, foi ao patriotismo rasgado, abençoado por Deus, que uma nação ultrajada apelou na sua resposta.
Não sei como o público reagiu à música. O tamanho do ultraje não deixava muito lugar para o racionalismo hipotético de Lennon. A maioria dos jovens presentes na cerimônia, realizada pouco tempo depois dos atentados, estava disposta a lutar, matar e morrer imediatamente para vingá-los. Nos 21 anos entre o ataque a Lennon e o ataque às torres um mundo destribalizado, ou transformado numa única tribo solidária e sensata, ficou inimaginável. E “Imagine” transformou-se, com o tempo, de um hino a uma utopia possível a um réquiem pela ingenuidade...
------------------------------- * Luis Fernando Verissimo é escritor
Fonte: Jornal o Globo on line
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