Digo que só consulto a internet duas vezes por dia -ao
acordar e ao deitar. Questão de higiene -mental
Há
um novo crime na praça. E eu sou culpado aos olhos de amigos, colegas, até
leitores. Não respondo a e-mails de imediato. Só passados alguns minutos -ou
algumas horas.
Defendo-me como posso. Digo, a sério, que só
consulto a internet duas vezes por dia -ao acordar e ao deitar. Questão de
higiene -mental. Curiosamente, quase sempre estou a escovar os dentes.
Ninguém acredita. E, quem acredita, diz que
isso não é desculpa: existem uns celulares que recebem e-mails em tempo real e
permitem respostas em tempo real.
Agradeço a informação, mas não era preciso: eu
próprio já recebi e-mails do gênero, que terminam com a declaração solene "esta
mensagem foi enviada por iPhone".
Nunca sei que responder: mostrar-me abismado
com a proeza e aplaudir a grande honra que o sujeito me concedeu?
Às vezes, há situações bizarras. Alguém envia
um e-mail. Minutos depois, envia outro, só para perguntar se eu recebi o
primeiro. Duas ou três horas depois, vem mais um -dessa vez, uma repetição do
inicial, para o caso de eu não ter lido.
Essa comunicação unilateral termina com um
quarto ou um quinto, em que sou acusado das maiores baixezas (indiferença,
preguiça, hostilidade etc.).
Em poucas horas, alguém iniciou e terminou uma
comunicação comigo sem que eu jamais estivesse presente para dizer "presente!".
Que se passa com o mundo?
Os especialistas no assunto, psicólogos e
sociólogos que pesquisam os paradoxos da internet, afirmam que estamos cada vez
mais ligados e exigimos respostas cada vez mais rápidas uns dos outros. Certo,
especialistas do óbvio, certíssimo.
A questão, porém, deve ser outra: que tipo de
gente a internet está a produzir no século 21?
Foi precisamente essa pergunta que o escritor
Stephen Marche formulou em artigo para a revista "The Atlantic" ("Is Facebook
Making Us Lonely?"). As conclusões não são otimistas: estamos todos ligados, mas
essa sensação de contato permanente não significa que o nosso isolamento (e a
nossa solidão) decresceu.
O Facebook é, inevitavelmente, um caso
clássico: que significa esse imenso continente virtual onde "existem" 845
milhões de pessoas, onde se publicam bilhões de comentários diários e onde se
postam 750 milhões de fotos por semana?
Stephen Marche não faz parte dos luditas
modernos para quem o Facebook é a "bête noir" da civilização ocidental. A
resposta dele, depois de ler os últimos estudos sobre o fenômeno, é de uma
sensatez que arrepia: a internet é um meio, não um fim. O que somos como seres
sociais depende da forma como usamos as redes sociais.
Que o mesmo é dizer: quem usa o Facebook para
substituir a realidade não aumenta o seu "capital social". Pelo contrário, pode
mesmo sentir o isolamento típico de um peixe que contempla o mundo através do
vidro do aquário. Paralisante. Angustiante.
No artigo, o autor cita um neurocientista da
Universidade de Chicago, John Cacioppo, que oferece uma metáfora ainda melhor:
podemos usar o carro para ir ao encontro de amigos; ou podemos dirigir sozinhos
pelas ruas da cidade. O mesmo carro, duas atitudes distintas.
A internet, e as redes sociais que ela
comporta, é apenas um instrumento para, não um substituto de. O desafio, leitor,
não está em quebrar o aquário. Está em sair dele de vez em quando.
Sair. Desligar. Não estar disponível. Ou, como
escreve Stephen Marche, "termos a oportunidade de nos esquecermos de nós
próprios".
Eis, no fundo, a observação mais luminosa do
ensaio: a nossa constante disponibilidade para os outros é apenas uma
manifestação mais profunda do nosso insuportável narcisismo. E o narcisismo,
como sempre, nasce de uma insegurança que procuramos preencher com o culto
doentio do ego.
Pensamos que somos tão imprescindíveis que
temos de estar presentes 24 horas por dia na vida alheia. E vice-versa: pensamos
que somos tão importantes que os outros têm de estar permanentemente disponíveis
para nós.
Lamento, amigos. Lamento, colegas. Lamento,
leitor. Os meus silêncios não têm nada de pessoal. Nem eu nem você somos assim
tão importantes.
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* Colunista
da Folha
jpcoutinho@folha.com.brFonte: Folha on line, 24/04/2012
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