MIGUEL REALE JÚNIOR*
Seria verdade que o homem, ao ser expulso
do paraíso, sofreu como condenação ter de trabalhar? O trabalho é um castigo?
Seria o ócio uma dádiva? Independentemente da necessidade de trabalhar para
ganhar o sustento, muitas vezes enfrentando tarefas enfadonhas e repetitivas,
impondo-se o deslocamento de casa até a fábrica ou o escritório, com horas de
sacrifício dentro do metrô ou do ônibus, penso que o trabalho dá sentido à
vida.
Somos condenados a viver. A não ser a
instigante hipótese reencarnacionista, pela qual o espírito concorda em voltar
ao mundo para passar por novas experiências e novos desafios, nas demais
religiões ou no ateísmo se reconhece que não fomos consultados se queríamos
nascer ou não. Nascemos e nas condições que se apresentam, devendo enfrentar a
situação de filho de beltrano e de sicrana, rico ou pobre, brasileiro, suíço ou
angolano. Viver é uma aventura que de plano enfrenta o barulho depois do
confortável silêncio do útero materno. Inicia-se o percurso e cabe a cada qual
afirmar sua individualidade.
Para preencher o dia a dia que se impõe, a
criança, pobre ou rica, brinca na rua ou em casa, vai à escola, faz os deveres
escolares, cumpre obrigações a pedido da mãe. Brincar e estudar constituem o
trabalho desejado e obrigatório até os 14 anos, visando a construir a formação
de uma pessoa. Formação para quê? Para, em sendo adulto, ter uma profissão, em
suma, trabalhar.
Cada qual se põe na vida diante desta
empreitada: obter sua realização pessoal. Mesmo na Idade Média, quando se
dividiam, como diz Le Goff, as pessoas nas categorias dos que lutam e defendem
com armas o feudo, dos que oram, rezam para enaltecer a Deus e obter sua
proteção e dos que trabalham com as mãos, não deixava de haver afazeres para os
diversos estamentos.
Pela via do trabalho a pessoa marca sua
individualidade, assinala sua passagem por esta vida, ocupa as horas do
cotidiano visando a construir sua autoestima e a conquista importante do
reconhecimento dos demais. Não é por acaso que ao se conhecer alguém a primeira
pergunta que assoma dirigir-lhe é: o que você faz?
Ao se perceber o que o interlocutor faz,
desenha-se no espírito a sua imagem, o seu universo de interesse, sobre o qual
pode haver nossa curiosidade, nosso respeito ou até mesmo nosso desdém. Mas
surge uma definição de quem é o novel conhecido ao se saber sua profissão ou seu
afazer.
O trabalho atua em duas frentes: permite, de um
lado, que as pessoas se afirmem perante si mesmas, motivando a busca de
realização, podendo trazer orgulho no sucesso ou dor diante de eventual
fracasso; e, de outro lado, faz surgir entre os consorciados o reconhecimento de
uma condição própria como sapateiro, mecânico, médico, professor, cozinheiro.
Esse espaço na sociedade causa satisfação ou desilusão, se reconhecido como o
melhor sapateiro do bairro ou como o pior cozinheiro da região.
Discípulo de Habermas, Axel Honneth (Luta por
Reconhecimento, ed. 34, 2011, reimpresssão) bem assinala que se imbricam a
autoestima e a aprovação social, pois a autorrelação bem-sucedida depende do
reconhecimento dos demais acerca de suas capacidades e realizações, de forma a
se abrir uma falha no indivíduo caso não tenha tido, em momento algum,
assentimento social, com o consequente surgimento da vergonha.
Preocupante, contudo, é não querer ocupar um
lugar no mundo, a ser alcançado com o esforço próprio, modesto ou ilustre, mas
fruto da disposição da conquista. O fundamental é viver para instituir uma
identidade, uma definição perante os demais, com resultado positivo ou negativo,
pois pior do que o insucesso é não ter tido a coragem e o ânimo de sair a campo
com as próprias pernas para tentar obter a felicidade na realização de si
próprio.
Assim, fracassar na execução de uma profissão
ou ofício é do jogo da vida. Mas frustrante mesmo é nem sequer entrar no jogo
para fazer algo com sua cara, com seu jeito, da sua forma, esperando
infantilmente contar com acontecimentos externos para conseguir preencher o
vazio de uma existência sem rosto.
Dois fenômenos da atual sociedade digital, na
qual mais se mexem os dedos no iPhone do que se ativam os neurônios, indicam uma
falsa felicidade não derivada da efetivação de um projeto, ou, como dizia Ortega
Y Gasset, do irrenunciável projeto de si mesmo, mas sim de fatores marcadamente
efêmeros, visivelmente enganosos: os relacionamentos na rede do tipo Facebook e
o culto às celebridades.
A urgência hoje vivida de compartilhar
imediatamente todos os acontecimentos (ouvir uma música, comprar uma roupa,
deliciar-se com um vinho, trocar um olhar) retira a vivência da realidade do
âmbito individual, pois o essencial é antes dividir com alguém o sucedido para
receber imediatamente o assentimento elogioso do que sentir isoladamente o
prazer do fato, transformando-se, dessa maneira, o mundo numa grande academia do
elogio mútuo. A satisfação, então, vem de fora, pois algo só vale se outrem vier
a curtir. Instala-se um novo cartesianismo: eu compartilho, logo existo.
Outra futilidade alienante domina os espíritos:
a celebração das celebridades, os famosos, a mais perfeita criação artificial da
mídia. Acompanha-se a existência de um ex-BBB, por exemplo, desde sua ida à
praia ou a uma festa, como se fosse a própria vida. Ídolos passageiros, sem
conteúdo, apenas virtuais, povoam a fantasia.
A existência perde consistência. Muitos são os
espíritos empreendedores, porém, infelizmente, repetem-se hoje jovens para os
quais a conquista árdua, a afirmação profissional, deixa de ser importante para
que eventuais fracassos não sejam sofridos, mas disfarçados, driblados pelo
compartilhamento elogioso de momentos irrelevantes ou pelo consumismo
desenfreado, que substitui o ser pelo possuir.
A vida deixa de ter cor, passa em
branco.
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ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA
PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
Fonte:
Estadão on line, 06/04/2013
Imagem
da Internet
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