Mahmoud
Hassano/Reuters
Imagem de Assad na
fachada da academia de polícia de Aleppo: nenhum dos lados aceita a
derrota
Estudo do canadense evita usar a história para fazer previsões
A violência nos interpela a todo momento.
Assaltos, homicídios, sequestros, etc. dominam o cotidiano dos cidadãos em todo
o mundo. Na mídia eletrônica e nas redes sociais imagens de guerra no
Afeganistão ou na Síria irrompem em tempo real. Esse cerco nos obriga a entender
o passado, analisar o presente, muita vez com a tentação de prever o
futuro.
Talvez não tenha havido, na infinidade de
estudos desde o século 19 que tentaram dar conta do tema, um esforço tão
monumental de entendê-lo em todas as suas manifestações como Os Anjos Bons
da Nossa Natureza - Por Que a Violência Diminuiu, de Steven Pinker,
professor de psicologia da Universidade Harvard, quanto mais não fora pela
extensão do texto: 802 páginas na edição em inglês, 1.048 em português. O
problema central do estudo é demonstrar a redução da violência em diferentes
escalas - na família, nos bairros, entre tribos e facções armadas e entre nações
e Estados. Mas não esperem os leitores previsões sobre o futuro: Pinker deixa
claro que o objetivo do livro é explicar os fatos no passado, não fazendo
augúrios e hipóteses sobre o futuro.
Seu foco abrange desde a pré-história humana
até o século 21, mas a ênfase está nos séculos 19 e 20, com um formidável
aparato de pesquisas nas mais diversas ciências humanas, não prevalecendo,
apesar da profunda expertise de Pinker na área, a psicologia. O estudo é
magistralmente fundamentando em análises de história, antropologia, sociologia,
ciência política e economia.
De saída, deve ser dito que, apesar do tamanho
e da profusão de teorias e análises tratadas, o texto de Pinker tanto em inglês
como na tradução em português é altamente acessível, tentando responder com uma
linguagem às vezes irreverente às ansiedades comuns no cotidiano em relação à
violência. Ao tratar do bullying de crianças não hesita em reproduzir os
quadrinhos de Calvin e Hobbes, em que o stupendous Calvin é arremessado por um
colega contra um armário de aço num vestiário. Para mostrar a violência
cotidiana no fisiculturismo do atleta Charles Atlas dos anos 1940, vale-se de
outra tira de quadrinhos.
Sua abordagem é evidence based, toda baseada em
evidência empírica, no sentido de procurar explicar por que e como a violência
emergiu ou declinou. Logo, não deixa de ser intrigante para um cientista e ainda
mais ateu, como se confessa, que seu livro traga a figura dos anjos - na capa da
edição em inglês O Sacrifício de Isaac, por Rembrandt, 1635, o quadro
original (que está no Hermitage, em Moscou) foi curiosamente invertido. Estaria
a situação de violência no mundo tão desesperada que, como último recurso, temos
de apelar para aqueles mensageiros de Deus para proteger os seres humanos?
Justo reconhecer que Pinker está em muito boa
companhia, a de Walter Benjamin, que numa de suas teses Sobre o Conceito de
História recorre à imagem do Anjo da História com "o rosto voltado para o
passado. Onde nós percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única,
que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. O
anjo gostaria de ficar, despertar os mortos, e refazer o que foi destruído. Mas
uma tempestade sopra do Paraíso impelindo-o irresistivelmente para o futuro".
Diante daquele quadro aterrorizante, como o Anjo, estaríamos inclinados diante
da violência a "uma dor profunda inconsolável, que nada poderia apaziguar" que
nos imobiliza. Pinker quer ultrapassar essa visão negativa, imobilista e tenta
compreender que das ruínas do problema sempre têm emergido possibilidades de
pacificação, ainda que realisticamente não considere "o declínio da violência
como uma força irrefreável que impele para o progresso e nos arrasta em direção
a um ponto ômega da paz".
Na verdade, o estudo se situa num campo de
forças em que se desenvolvem tendências tratando dos sucessivos avanços dentro
de um processo de pacificação que acompanhou a formação dos Estados, fazendo com
que o lugar mais seguro na história humana - a Europa Ocidental do século 21 -
tenha uma taxa de homicídio em média de um por 100 mil habitantes (somente para
efeito de perspectiva, no Brasil temos na mesma proporção 24 homicídios).
Para essa pacificação ter ocorrido, entre
outras muitas interpretações discutidas, contribuiu o que foi chamado pelo
sociólogo Norberto Elias de "processo civilizador", no qual, por um lado, os
hábitos de refinamento e autocontrole nas sociedades - a construção de uma
verdadeira segunda natureza - se conjugou com a centralização do controle e o
monopólio da violência física do Estado depois de séculos de anarquia na Europa:
"Assim que o Leviatã (o Estado para Hobbes) assumiu o comando, as regras do jogo
mudaram" (pág. 123). Mas a fonte do efeito pacificador do Estado não é apenas
seu poder coercivo bruto; inclui também a confiança e esperança que ele desperta
na população pela possibilidade de atender às suas reivindicações.
Houve, contudo, campos nos quais o processo
civilizador nunca penetrou completamente: os estratos mais baixos da escala
socioeconômica e os territórios inóspitos ou inacessíveis do globo. E outros
dois em que esse processo deu marcha à ré: o mundo em desenvolvimento, isto é, o
nosso (aliás, o menos examinado no estudo), e a taxa de homicídios nos anos 1960
(tratada fundamentalmente nos países do Hemisfério Norte). Entre as tendências
positivas, estão a fase de transição posterior à mortandade e aos massacres
ocorridos na 2.ª Guerra Mundial e a promulgação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Pinker, a propósito, enfatiza o que chama de "revolução
humanitária", com o repúdio a formas de tratamento cruel como a tortura e a
repulsa crescente à pena de morte.
No interior daquele campo de forças, em meio a
essas transições positivas, operam cinco "demônios interiores" - a violência
predatória, a dominância, o sadismo, a ideologia e a vingança -, refutada a
teoria segundo a qual os seres humanos nutrem um impulso de agressão inato.
Enfrentando os demônios estão cinco "anjos" bons, basicamente motivações que
podem orientar os humanos para longe da violência, como o autocontrole e o senso
moral. Completando o quadro, Pinker aponta cinco forças históricas, exógenas,
como o aumento do respeito e interesse pelos valores das mulheres, uma maior
aplicação da racionalidade (que ele chama de "escada rolante da razão"), que
favorecem a pacificação e pautaram os declínios da violência.
Nesse campo de forças, inegavelmente há
progresso muita vez de forma não planejada. O poder supremo do Estado Leviatã
foi corroído por organismos internacionais e desafiado por inúmeros mecanismos,
enfraquecendo o escudo do sacrossanto princípio da soberania nacional para
proteger violações dos direitos humanos, resultando em mudanças decisivas.
Através da "revolução dos direitos", algumas das vítimas - trabalhadores,
mulheres, crianças (Pinker analisa longamente a violência contra elas), LGBT,
povos indígenas, migrantes, portadores de necessidades especiais, pessoas de
ascendência africana, os palestinos - tiveram seus direitos reconhecidos, embora
sigam longe ainda de estarem totalmente protegidos.
Entretanto, apesar de no título a tese central
do livro estar escancarada, afinal, "a violência vem diminuindo desde o passado
distante, e hoje podemos estar vivendo na era mais pacífica que a nossa espécie
já atravessou", nem sempre essa tendência prevaleceu. E graças à visão dinâmica
do problema, tanto no tempo como nas suas mais diversificadas expressões, o
estudo nunca perde o pé na realidade concreta, jamais proferindo ou prevendo
como possível o seu fim.
Como no campo da violência sempre operam forças
contraditórias, continua a pairar sempre a ameaça de novos conflitos mais
destrutivos ainda. É o caso da war of attrition, guerra de desgaste, na qual
nenhum dos contendores aceita a derrota - como estamos vendo hoje na Síria e em
territórios intocados pela diminuição do problema.
Não há como refutar que o declínio da violência
no mundo é o acontecimento mais importante para a nossa espécie. Pinker - por
não perder a consciência da realidade por trás dos números - em nenhum momento
abandona a indignação diante da história desse grande mal humano. Apesar de um
aparente otimismo em suas conclusões, jamais se arrisca a afirmar que os
processos que contribuíram para o declínio da violência poderão continuar a ser
efetivos no futuro. No horizonte da América Andina e Central, onde se concentram
as maiores taxas de homicídio do planeta, as conclusões de Pinker poderão ser
lidas até com certo ceticismo. Não importa. Os Anjos Bons da Nossa Natureza
é uma contribuição monumental e incontornável para entendermos o tema no
tempo presente e os processos que levaram a uma maior pacificação das
sociedades. E também para compreendermos por que na história nem sempre os
demônios prevalecem contra os anjos bons. Felizmente.
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* PAULO
SÉRGIO PINHEIRO, PESQUISADOR ASSOCIADO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA USP,
É ATUALMENTE PRESIDENTE DA COMISSÃO INDEPENDENTE INTERNACIONAL DA ONU DE
INVESTIGAÇÃO SOBRE A SÍRIA E COORDENADOR DA COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE
Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,explicar-o-passado-sem-prever-o-futuro,1017560,0.htm
06/04/2013
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