Carlos
Felipe Moisés*
Hoje, ninguém ignora o que são
"heterônimos", marca registrada de Fernando Pessoa (1888-1935): diferentes
poetas, cada qual com personalidade e estilo próprios, todos criados pelo mesmo
autor. As diferenças são tantas que quase todo leitor tem o seu favorito. Para
uns, é Álvaro de Campos, engenheiro naval, irrequieto, sintonizado com a
agitação da grande cidade; sua meta na vida é "sentir tudo de todas as
maneiras". Para outros, é Alberto Caeiro, camponês tranquilo, que quer apenas
sentir a natureza e não pensar; ele acha que "há metafísica bastante em não
pensar em nada". Para outros mais, é o próprio Pessoa, o dos poemas patrióticos,
que trazem reflexões como esta: "Tudo vale a pena, se a alma não é
pequena".
Nosso poeta passou a vida concebendo
heterônimos, várias dezenas, mas completos são só três - quatro, se
considerarmos o próprio como um deles. Logo, na lista acima um ficou de fora:
Ricardo Reis, médico que nunca exerceu a profissão, autor de umas odes
inspiradas em Horácio (século I a.C.). Ficou de fora porque até hoje não conheci
ninguém que dissesse: Ricardo Reis? Ah, é o meu favorito. Não é uma boa razão
para conhecê-lo de perto?
"O dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha
alma", diz o seu criador, "no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da
noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os
excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo
de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação
momentânea." Assim, Reis vai ganhando vida e, através dele, Pessoa desenvolve
uma teoria neoclássica (ele esclarece) "segundo princípios que não adoto nem
aceito".
Então o que temos é uma "reação" contra a arte
moderna, cujos "excessos" o poeta repudia. E arte "moderna", no caso, é a
vanguarda do início do século passado, irreverente, rebelde a todas as regras.
Em represália, Reis escreve uma poesia marcada por rigorosa disciplina: formas
fixas, ritmo bem medido, vocabulário erudito, ordem invertida e muita mitologia:
"As rosas amo dos jardins de Adônis,/ Essas volucres amo, Lídia, rosas".
Quer dizer: "Amo as rosas dos jardins de
Adônis,/ Amo, Lídia, essas rosas volucres". Adônis é um belo jovem, por quem
Vênus, a deusa do amor, se apaixonara, e ele morre numa caçada; do seu sangue,
espalhado na terra, brotam as primeiras flores da primavera. "Volucre" (latim)
quer dizer volátil, fugaz.
Mas, já em 1914, quem estaria disposto a
interromper a leitura, desmontar e remontar as frases e fazer pesquisas? Hoje,
então, quase um século depois... E Pessoa tinha consciência disso. O que ele
pretende é nos oferecer o desafio, e a oportunidade, de aperfeiçoar as
qualidades das quais somos cada vez mais carentes: capacidade de concentração,
atenção ao detalhe, disciplina interior, paciência de ir chegando aos poucos ao
verdadeiro sentido das coisas. Autodomínio, enfim, em vez da submissão aos
desejos que se multiplicam sem cessar, e são logo descartados.
Epicuro (341-270 a.C.) pregava que o homem deve
buscar, na vida, o máximo de prazer. Para nós, modernos, isso quer dizer
quantidade, fartura, abundância, ausência de limites. Mas não assim para
Pessoa-Reis. "Quem não se contenta com pouco não se contenta com nada"
(Epicuro). Querer todos os prazeres só resulta em dor e sofrimento: o homem é um
ser insaciável. Logo, buscar o prazer quer dizer evitar a dor. Como?
Satisfazendo-se com pouco. Nós, modernos, nos recusamos a chamar isso de
"prazer".
A mesma Lídia, a das "rosas volucres", é várias
vezes interpelada pelo poeta, que lhe dá conselhos e, em dado momento, convida:
"Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do regato". E acrescenta: "Enlacemos as
mãos". Não é um claro preâmbulo aos prazeres do amor? Mas em seguida ele
reconsidera: "Desenlacemos as mãos". Se isso o surpreende, leitor, imagine a
surpresa da pobre Lídia... Mas no fim ele explica: se eu morrer antes, ele diz,
"lembrar-te-ás de mim depois/ Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te
mova,/ Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos". Se ela morrer antes, o
resultado será o mesmo: nenhum deles sofrerá.
Para a sensibilidade moderna, um absurdo; para
Ricardo Reis, a satisfação possível: o controle das paixões e dos instintos.
"Abdica e sê rei de ti próprio", afirma. Para ele, os "excessos" da arte moderna
são apenas um indício da decadência geral da sociedade. E isso não é fenômeno
recente, ele adverte, começou com o advento do... cristianismo, "mera heresia
pagã, produto de uma degenerescência nas ideias e nos sentimentos de onde deriva
o estado perpetuamente mórbido da nossa civilização". O cristianismo, diz Reis,
é "um sistema religioso em que tomam relevo os sentimentos íntimos de cada
indivíduo, em que o interesse do espírito se concentra em seus próprios
movimentos".
Para ele, todos os males do mundo resultam do
subjetivismo ao qual fomos condenados pela religião cristã, tornada hegemônica:
cada cristão é obrigado a viver dentro de si o seu deus, sem jamais saber se é o
mesmo deus do vizinho ao lado, tão cristão quanto ele. Daí a desagregação e a
dispersão, não só na esfera religiosa, mas em tudo o mais. Cada homem é um ser à
parte, incapaz de comungar com os outros homens ou com a natureza. Neste nosso
mundo, solidariedade virou uma questão de "sentimento", quando deveria ser, como
foi antes de Cristo, uma questão de razão e consciência.
A solução, segundo Reis, é a volta ao
paganismo, único momento da história em que o homem se sentiu plenamente
integrado na realidade de todas as coisas. Mas como não seria possível
simplesmente apagar 20 séculos de cristianismo, ele propõe que Cristo seja
aceito como um deus a mais, vindo somar-se aos outros deuses do Olimpo.
Um dos seus poemas mais controvertidos
diz:
"Não a ti, Cristo, odeio ou te não quero.
Em ti como nos outros creio deuses mais
velhos.
Só te tenho por não mais nem menos
Do que eles".
E, umas estrofes adiante:
"Cura tu, idólatra exclusivo de Cristo, que a
vida
É múltipla e todos os dias são diferentes dos
outros,
E só sendo múltiplos como eles
Estaremos com a verdade".
Mas sua conclusão é pessimista:
"O paganismo morreu.
O cristianismo, que por decadência
e degeneração descende dele,
substituiu-o definitivamente.
Está envenenada para sempre a alma
humana".
Conclusão: Reis não representa uma volta ao
passado, mas sim um fundo mergulho neste nosso tempo, que, com sua avidez e seu
sonho de liberdade ilimitada, nos condena à eterna insatisfação. É uma crítica
implacável à nossa leviandade, ao nosso egoísmo, ao nosso fanatismo. Se não for
por isso que todos fogem dele, é uma boa razão, quem sabe, para que até hoje
ninguém dissesse: Ricardo Reis? Ah, é o meu favorito.
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite
Nula", 2008) e crítico literário ("Tradição & Ruptura", 2012). Foi o curador
da exposição "Fernando Pessoa: Plural como o Universo", no Museu da Língua
Portuguesa, em São Paulo, em 2010-2011
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