Força da palavra
LAURA GREENHALGH*
Betty Milan, No livro Carta ao Filho, a autora fala sem pudor de episódios de sua vida e do contato com Lacan
Em
Carta ao Filho, a coragem de contar "quase" tudo - "pois jamais se deve contar
tudo", adverte Betty Milan - passa não só pelas sessões de análise com o mestre
Jacques Lacan, mas pela teia de contatos com uma intelectualidade que encarnou a
geração 68. "E que mudou o mundo", acrescenta a autora da epístola. "Hoje os
filhos não se dão conta do que seus pais fizeram, de como tivemos que quebrar
barreiras." Betty Milan tem obras publicadas em vários países, como o romance O
Papagaio e o Doutor, inspirado em seu contato com Lacan, e o ensaio O País da
Bola, sobre futebol. Também assinou as crônicas de Paris Não Acaba Nunca e as
entrevistas de A Força da Palavra, coletânea de conversas memoráveis com nomes
como Octavio Paz e Jacques Derrida (todos pela ed. Record). Vivendo parte do
tempo em São Paulo, parte em Paris, fundou e dirige a companhia teatral Vozes,
marcando sua longa relação com a dramaturgia. Relação iniciada nas experiências
em psicodrama com Zerka Moreno, no Public Theater of New York. É também autora
de peças, entre elas, Paixão e a Vida É Um Teatro.
Com tudo o que tem de revelador, você diria que
seu livro nasce de um ato de coragem?
Sim. A coragem de falar dos meus sentimentos.
Mãe não fala disso ao filho. Sendo uma figura sacralizada, impõe-se a ela o
silêncio. Claro, nunca se conta tudo. Nem se deve. Contar tudo é uma forma de
usar o outro indevidamente. Mãe e filho também não têm que falar de seus
relacionamentos sexuais, algo que diz respeito a cada um. Mas isso não se aplica
aos sentimentos. Até porque filhos sempre sabem a verdade. Se for inútil
mascará-la, melhor legitimá-la. Mãe tem uma missão educativa, então imaginamos
que falar dos nossos tropeços, erros e mesmo de um adultério é algo que pode
inviabilizar essa missão. É como se a mãe não estivesse mais autorizada a
educar. Só que, escrevendo esse livro, me dei conta de que faz parte da missão
educativa da mãe ensinar filho a escutar. E o pai, onde fica nisso tudo? Não me
detive na figura paterna, embora ela esteja presente o tempo todo, e assim tem
que ser. Do contrário, a relação mãe-filho torna-se fusional.
Você escreve num momento em que o pai não está
mais em cena, por ser falecido, você e seu filho estão rompidos e nem se falam,
enfim, o desenho da família nuclear parece desfeito.
Meu filho vinha me censurando por ser
excessivamente apegada e ter uma demanda infinita sobre ele. Resolvi escrever.
Na verdade, a carta cumpre o papel do pai. Ela é o terceiro elemento na relação.
Ela instaura a paz. É com a simbolização dessa relação que a mãe pode cumprir um
papel dificílimo: cuidar do filho ao mesmo tempo em que está se separando dele.
E dizendo "vai". Pega o seu caminho.
Antes, porém, você revê toda a sua vida para o
filho.
A carta começa tratando dos nascimentos em
família e a intenção foi refletir até que ponto somos determinados pela história
do nascer. Sim, porque já nascemos com uma história. No meu caso, vim ao mundo
depois de um irmão natimorto, ocupei o lugar deste primogênito, sendo uma
mulher. Isso me traz uma identificação incompleta com o sexo feminino, embora
tenha sempre me relacionado com homens. Eu era "o primeiro filho". Assim fui
criada. Quis mostrar que, mais importante do que o sexo biológico, é a fantasia
(em termos psicanalíticos) que a pessoa tem sobre a sua sexualidade. Na minha
família, cresci autorizada a fazer o que os filhos homens fazem. Isso explica o
fato de, aos 18 anos, cursar uma faculdade de medicina, algo raro para as moças
do meu tempo e mais raro ainda numa família árabe em que as mulheres eram
educadas para o lar. Inverti isso. Hoje os filhos não se dão conta da subversão
que a geração de seus pais ousou fazer, 50 anos atrás. Falo de uma geração que
subverteu a ordem e quebrou barreiras. Se agora nossos filhos optam pela
fidelidade em seus relacionamentos, isso acontece porque nós mostramos, lá trás,
que infidelidade não é crime.
Essa filha que ficou no lugar do filho tem a
ver com o comentário que Foucault fez a seu respeito: "Você é tão afável quanto
um rapaz"?
Ele percebeu essa ambivalência quando eu tinha
18, 19 anos. Foucault veio a São Paulo para uma conferência na USP e (o filósofo
José Arthur) Giannotti convenceu-o a passar um fim de semana no Guarujá. Eu
estava neste grupo de amigos. Foucault já havia escrito a História da Loucura,
trabalhava numa obra sobre sadomasoquismo. Anos mais tarde fui procurá-lo no
Collège de France, onde dava aulas, e ele me convidou para jantar. Esse tipo de
reciprocidade parece ter desaparecido hoje em dia.
Você viveu com intensidade a geração 68. Mas
foi criada no seio de uma família árabe tradicional, abastada...
Tudo começa com um avô mascateando. Depois veio
um lado materno abastado, com avós vivendo em palacete, e do lado paterno, uma
família que estava se construindo economicamente, mas que já podia dar educação
boa aos filhos. Nesse período e do ponto subjetivo, o que me vem é a angústia da
separação. Eu era muito pequena quando minha mãe ficou quase cega. Fui com meus
pais para Chicago, para que ela se tratasse, e lá ficamos um ano até sua cura.
Mamãe vivia agarrada a mim, senti essa angústia forte. Os primeiros sinais de
rebeldia iriam se manifestar no Colégio Bandeirantes, quando participei da
fundação do grêmio e fui convidada a me retirar da escola. Entrei na medicina da
USP, porém me relacionava com os colegas da Filosofia e, se não cheguei a tomar
parte em organizações políticas, entrei para uma militância cultural. Como a
revista aParte, que fiz com Flávio Império e Sérgio Ferro. Nunca me identifiquei
com certos valores da família árabe. Eu não frequentava as festas do Sírio
Libanês, sempre gostei da companhia das empregadas, trabalhava na mesa da
cozinha. Também nunca bati de frente com essa família. Sabia levar.
Como foi admitir, na carta, que cometeu
adultério quando casada com o pai do seu filho?
Vivi um triângulo amoroso e o pai do meu filho
sabia disso. Dizia que eu não deveria encarar a situação com sentimento de culpa
- ele, que era um autêntico libertino, algo caro à cultura francesa. O próprio
Lacan dizia que esse jeito francês de lidar com amantes era uma forma de
civilidade. Mas foi meu filho quem um dia bateu na minha porta, eu lhe disse que
estava com aquela outra pessoa, e ele pediu para entrar. Hoje se dão muito bem.
Nos grandes casos de adultério da literatura, Madame Bovary ou Anna Karenina,
por exemplo, essas heroínas acabam mortas. Na carta tento mostrar que o
adultério é algo a que nós, humanos, estamos sujeitos e tanto por isso não pode
ser punido como crime. A grande sorte nos relacionamentos é a fidelidade. Mas
ela é rara.
E quando você assume ter feito um aborto mais
jovem?
Não tive uma militância feminista, mas este
ponto para mim é capital. Decidi falar. Contei de uma época em que as mulheres,
lá na França, interrompiam a gestação em Londres, pois não havia legalização
alguma em solo francês. Quis refletir sobre essa identificação do ser com a vida
biológica, quando se esquece que a vida não faz sentido se o desejo dela não
existe.
Qual a importância de Jacques Lacan na sua
trajetória?
Meu filho não teria nascido se eu não tivesse
feito formação analítica com Lacan. Começa daí. Porque sendo o "primogênito", eu
não me permitiria engravidar. E, mesmo engravidando, não toleraria não poder
nomear o filho. Isso foi resolvido na análise. Foram mais de quatro anos, tempo
no qual fui assistente de Lacan na Universidade de Vincennes. Outra coisa
importante que veio com Lacan foi a relação com a língua. Como vivi entre dois
idiomas, e levei isso às últimas consequências ao traduzir Lacan para o
português, acabei tendo um olhar sobre a língua materna diferente. Enfim, Lacan
me deu o filho e a escrita. Não é pouca coisa.
"Lacan só entendia o que eu falava na sua
língua. Meu mundo se limitava ao que era traduzível." Você diz isso na
carta.
Quer dizer, você configurava a sua fala nas
sessões em função da escuta dele?
Veja que problema isso coloca ao processo
analítico. Lacan até tentou me passar para uma colega dele, de origem
portuguesa, mas vimos que haveria problema de transferência. Daí percebeu que eu
só faria formação com ele, mais ninguém. E topou. Foi mesmo uma aventura. Também
trabalhamos no Hôpital Sainte-Anne, grande instituto psiquiátrico francês onde
ele fazia as famosas entrevistas públicas dos doentes. Conversava com o
paciente, um psicótico, diante de alunos, médicos, professores de Vincennes. Era
um lugar de alto aprendizado.
Quando foi a última vez em que esteve com
ele?
Foi quando me chamaram para votar a dissolução
da Escola Freudiana de Paris. Lacan precisava de votos para dissolver aquilo.
Nessa ocasião, o câncer de que sofria já estava avançado, então se deu um
encontro penoso, porque ele não me reconheceu. Era um fantoche na mão de alguns,
algo triste.
Por que decidiu pesquisar o mundo do carnaval,
do futebol, da umbanda?
Quando voltei ao Brasil, senti que precisava
escutar o País. Um outro país que não fosse aquele da família árabe. Iniciei
errâncias intelectuais, algo que sempre se repete em minha vida, e acabei
cruzando com um florilégio de pessoas lindas: Joãosinho Trinta, Gilberto Freyre,
Zé Celso Martinez Corrêa. Quis escutar o Joãosinho porque era um homem de
ideias, pouco valorizado no Brasil. Por anos fui ao barracão ver como ele
construía o carnaval. Descobri o "brincar" como a paixão particular do
brasileiro. Na França, é o "droit". Na Espanha, "el honor". Na Inglaterra,
"humour". E nós somos o brincar. Depois, enveredei pelo mundo do futebol, foi
escutar homens inteligentíssimos, como Leônidas da Silva, e fiz O País da Bola,
livro considerado um dos melhores do ano na França, exatamente quando o Brasil
perdeu a Copa lá. Com Gilberto Freyre, fui ver o que pensava da cultura do
brincar, que ele associava à cultura negra. Já o encontro com Zé Celso aconteceu
em 1991, quando lancei aqui o romance inspirado na formação com Lacan, O
Papagaio e o Doutor. O livro mexeu com Zé Celso, que acabou escrevendo na
imprensa sobre o "strip-tease da dra. Betty Milan". Daí nasceu uma longa
convivência com o Teatro Oficina. Hoje tenho minha pequena companhia de teatro,
na qual fazemos algo diferente do Zé Celso. É teatro intencionalmente despojado,
cujo apoio reside na força da palavra.
Entre tantas histórias e tantas confissões,
qual foi a reação do seu filho ao ler a carta-livro?
Leu com interesse. Sua colaboração se tornou
essencial, porque fez perguntas, deu sugestões. Lembrou, por exemplo, que em
nossa casa nunca se ameaçou filho de ir para internato, essa punição não havia.
Surpreendeu-se com minha disposição otimista diante do mundo e reconheceu que
fui elegante ao narrar toda minha história de vida. É preciso dizer que comecei
a escrever a carta como um consolo diante da dor da separação. E não pretendia
transformá-la em livro. Mas como foi adquirindo uma forma interessante, aceitei
publicá-la. O curioso é que, no mesmo período em que eu escrevia a carta, meu
filho fazia um documentário sobre a avó, minha mãe, uma mulher de 95 anos que
vive para falar do amor. Enfim, nós nos encontramos na mesma busca pelas
origens. Procurávamos a independência dos laços familiares, não a supressão
deles. Foi um grande momento.
E para você, o que fica dessa experiência
pessoal e literária?
Eu precisava lidar com essa mãe que tudo pode,
que dá conta de tudo. Chega. Se já liberamos a mulher, agora temos que liberar a
mãe. De certa maneira, o feminismo atuou em favor dos homens, ao sobrecarregar a
mulher. Comunico ao meu filho: estou me separando dessa mãe fálica, onipresente
e masoquista. Penso em Sêneca ao lhe dizer que me predisponho a viver
intensamente, com meus pares, como a única maneira de combater o tempo que
passa. Acho que estou pronta para escrever um novo
romance.
----------------------* Psicanalista e escritora
Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,forca-da-palavra,1017996,0.htm 07/04/2013
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