terça-feira, 27 de junho de 2017

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Além de 'Ensaios', guia de leitura do filósofo Ali Benmakhlouf também chega ao País

Rodrigo Petronio*, 
 Colaboração para o Estado
24 Junho 2017
Resenhar um livro de Michel de Montaigne é uma tarefa ingrata. Como falar com objetividade sobre o autor mais subjetivo de toda literatura? Como falar em sistemas em um autor que liquidou todos os sistemas? Como pensar em escolas filosóficas em um autor que mescla todas as escolas no cadinho do eu? Talvez o caminho seja seguir seu lema: “Que sei eu?” Reconhecer nossa ignorância.
Há duas novas oportunidades para uma aproximação dessa dúvida radical que chancela o universo de Montaigne. A reedição da brilhante tradução de Sergio Milliet dos Ensaios, levada a cabo pela Editora 34, com ótimas apresentação de Andre Scoralick e revisão técnica de Edson Querubini. E o importante guia de leitura do filósofo Ali Benmakhlouf intitulado Montaigne, que a Estação Liberdade acaba de publicar na coleção Figuras do Saber. Ambos são boas portas de acesso à obra e ao pensamento de um dos maiores escritores e pensadores de todos os tempos. 
Essa singularidade surge de um fato central operado por Montaigne: a revolução do eu. Muitos autores antigos, como Sêneca e Marco Aurélio, valeram-se da reflexão em primeira pessoa. Foucault rastreou esse compromisso que o pensamento antigo sempre manteve com a franqueza (parrhesia): a expressão de si. O cristianismo não abandou essa premissa. As Confissões de Agostinho também são um emblema desse método. Testemunhar a si mesmo. Desnudar-se para chegar a Deus.  

Contudo essa expressão da subjetividade antiga e medieval quase sempre esteve a serviço de alguma finalidade edificante. Queria conduzir o leitor ao reconhecimento de uma verdade transcendental, fosse essa verdade Deus, as ideias ou a razão. Montaigne escreve os Ensaios a partir de uma concepção nova. O eu não é mais uma fonte de saber e de autoridade, como o era para os antigos e como será para Descartes e Kant. Tampouco o eu é um meio de chegar à verdade. O eu é esfera da dúvida radical.  

Se, como diz Montaigne, a consciência não unifica na mesma proporção com que a natureza diversifica, o eu é uma flutuação infinita de percepções da constante dissolução da natureza. Ou seja: o eu é, ao mesmo tempo, o palco de encenação dos conceitos e o fundo vazio do pensamento e da linguagem. A tarefa do pensador é nos revelar o caleidoscópio de imagens que emerge nesse processo. Se o eu é infinitamente instável, a verdade é eternamente inacessível.  

A partir desse axioma, Montaigne criou um novo gênero da literatura: os ensaios. E não o criou apenas por causa do teor reflexivo dessa forma. O ensaio seria a forma mesma de sua filosofia. Uma forma inacabada por excelência. Tensionado entre a filosofia e a literatura, trouxe também outros domínios do conhecimento para a escrita: a pintura e o teatro. Como bem ressalta Scoralick, um aspecto nuclear da obra-prima de Montaigne diz respeito à técnica do retrato. Mais especificamente: o autorretrato.  

Montaigne diz que seu objetivo nos Ensaios foi pintar um retrato fiel de si mesmo. A metáfora do teatro do mundo atravessa todos os ensaios. E eis-nos aqui no cerne de sua sutileza. Concentrar-se no eu não é descobrir um eu autêntico sob as camadas de véus e vaidades do mundo. Concentrar-se no eu é perceber algo terrível: não há uma ancoragem possível para o mundo e o pensamento. O eu é um tecido de paisagens passageiras que atravessam a consciência. Um tecido que se trama e se desfaz. Sem centro e sem final.  

Como falar de filosofia em um autor que dilui problemas da filosofia nas reclamações de suas dores de gota, nas memórias de seu acidente a cavalo e nas lembranças do amigo Étienne de la Boétie? Como ser solene com um autor que se apoia em Licurgo, Cicero e Horacio para refletir sobre a função dos dedos polegares, dos peidos e dos correios? As perguntas se multiplicam. A dúvida não se erradica. 

Não por acaso, de Pascal a Nietzsche, de Cioran a Voltaire, de Proust a Camus, de Sloterdijk a Derrida. Todos os autores que se ocuparam da falência geral dos caminhos que conduzem à verdade podem encontrar em Montaigne um pai amoroso. Um pintor de si mesmo que descobriu no fundo da tela o absoluto vazio. Um vazio que espelha cada um de nós. Um vazio que traço algum poderia revelar.  
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*Rodrigo Petronio é escritor, filósofo, doutor em literatura comparada pela Uerj e professor da Faap

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