quinta-feira, 15 de junho de 2017

 Clóvis Rossi
 clóvis rossi

Quando a democracia era só festa


Quando a democracia era só festa



 
 
 
 
 
As mulheres despindo-se pouco a pouco nos cartazes dos cinemas na Gran Vía, a principal rua do centro de Madri. Essa é uma das imagens que mais me marcaram na cobertura da transição espanhola do autoritarismo para a democracia, que completa nesta quinta-feira (15) exatos 40 anos, a contar da eleição geral de 1977.

Ditaduras, quaisquer que sejam, impõem um véu de hipocrisia à sociedade, do qual faz parte cobrir o corpo das mulheres (e dos homens também) como se expô-los fosse um grito de liberdade que deveria ser calado. Cobri a transição espanhola desde seis meses antes da morte de Francisco Franco Bahamonde, "caudilho de Espanha pela graça de Deus", até a eleição de 1977.

Nesse intervalo, à medida que se avançava com a transição, as mulheres iam tirando a roupa nos cartazes, como se a Espanha estivesse se livrando pouco a pouco da hipocrisia e se reencontrando consigo mesma. O reencontro, aliás, foi o melhor da festa.

Os derrotados na guerra civil de 1936/39 e seus descendentes ou afilhados políticos saíam das catacumbas a que haviam sido relegados e se reintegravam à vida.

Não é pouca coisa se se tomar como literal o título de um livro clássico sobre a guerra: "Metade da Espanha morreu" (de Herbert Matthews, notável jornalista norte-americano, 1900-1977). As duas metades, a que matou e a que morreu, se reencontraram a partir já da agonia de Franco, morto em 1975, mas particularmente a partir da eleição de 1977. Não só se reencontraram como, juntas, conduziram a Espanha a um progresso econômico e social admirável.

Os inimigos ideológicos, que se mataram durante a guerra, tinham, agora, um projeto de país, cujo eixo era entrar para a então Comunidade Europeia. Mesmo os filhotes da ditadura civilizaram-se o suficiente para entender que ela havia sido um obstáculo intransponível para aderir ao bloco europeu.
Por isso, colaboraram para jogar fora o entulho autoritário até que, nove anos depois da redemocratização, houve a adesão, catapulta extraordinária para o progresso que se seguiu. Não há termo possível de comparação entre a Espanha de 1977 e a Espanha de 2017.

As mulheres com menos roupas na Gran Vía não foram, claro, nem remotamente os únicos sinais de mudança. Na cobertura da eleição de 77, me espantava ao lembrar que, dois anos antes, visitara um padre operário em Vallecas, então "o subúrbio vermelho" de Madri.

Conversávamos e molhávamos o pão na sardinha servida no azeite, mas nos calávamos sempre que soava nas imediações a sirene de um carro de polícia.
Na Espanha da democracia, podia-se molhar o pão na sardinha e continuar conversando, fosse qual fosse o assunto até porque não havia mais assunto proibido. A democracia foi uma festa inesquecível, ainda mais para quem, como eu, vinha de um Brasil ainda em trevas.

Pena que, aos poucos, foi se instalando um ambiente político crispado, a ponto de alguns espanhóis brincarem, de vez em quando: "Contra Franco, vivíamos melhor." O Brasil caminha para repetir essa frase e, pior, a sério.
Associated Press
O general Francisco Franco saúda o público durante Parada que celebra o fim da Guerra Civil Espanhola. A Espanha redemocratizou-se após a sua morte, em 1975
O general Francisco Franco saúda o público durante Parada que celebra o fim da Guerra Civil Espanhola. A Espanha redemocratizou-se após a sua morte, em 1975

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