Foi então que me lembrei de minha teoria de que grande parte
do que ocorre na vida é por acaso
Com a idade, meu relacionamento com os
animais mudou muito. Quando menino, eu não dava mole para os passarinhos, cobras
e lagartixas. De atiradeira em punho, o bolso cheio de pedras, saía eu a caçar
os pobres coitados. E não para capturá-los, não; era para acabar mesmo com eles.
Mas por que razão -me pergunto, hoje-, pelo simples prazer de matá-los?
Não que odiasse os animais em geral, nada
disso. Não havia ódio algum em minha atitude. Era, talvez, o instinto do caçador
que permanece em todos nós, sem levar em conta que, para os passarinhos e
lagartixas, significa o fim da vida.
A verdade é que não pensava nisso, mesmo porque
tinha um carneirinho, que meu pai dera, e eu o amava muito. Sair com ele a
passear, levá-lo a pastar no capinzal, era a minha alegria.
Gostava também de cabras, cabritos, cachorros e
papagaios. Sim, e de um macaquinho de cheiro que vivia amarrado no gradil
próximo à cozinha da casa. Dava-lhe banana e ficava encantado com suas mãozinhas
iguais às nossas, mas tão pequeninas.
Afora estes, não tinha a mínima simpatia ou
piedade por outros bichos. Cheguei a pôr um pedaço de carne num anzol para
fisgar um pobre urubu, e o fisguei. Foi um desespero, mas ele conseguiu se safar
e sair voando com o anzol fincado no bico.
Ia me esquecendo dos gatos. Sempre gostei de
gatos, mas meu amor por eles só nasceu mesmo quando meu filho Paulo me fez
comprar um gatinho para ele, que ganhou o nome de Ho Chi Mim e se tornou o rei
da casa. Um dia se apaixonou por uma gata de rua e sumiu para sempre. Foi
substituído por outro e este por outros, até que surgiu o siamês que se chamou
Gatinho e me inspirou um livro de poemas.
Morreu de velho aos 16 anos para minha
tristeza, que só acabou quando Adriana me trouxe de presente uma gatinha
siamesa, que ganhou o nome de Gatinha.
Pois bem, mas coisa inesperada foi a pequenina
aranha com que me deparei ao abrir o dicionário de filosofia de José Ferrater
Mora. Abri na página em que ela estava e foi aquela surpresa, minha e dela:
correu com suas perninhas finas e foi colocar-se no alto da página, tão surpresa
quanto eu.
Ela mais que eu, certamente, pois já conhecia
aranhas e ela, nascida e criada dentro de um dicionário, jamais vira um ser
humano. Fechei cuidadosamente o livro e deixei-a lá, para viver sua vida de
aranha. Os anos se passaram e não é que, para minha surpresa de novo, surge uma
aranhinha parecida com aquela, tecendo uma teia perto do espelho de meu
banheiro?
Os anos se passaram e não é que, para minha
surpresa de novo, surge uma aranhinha parecida com aquela, tecendo uma teia
perto ao espelho do banheiro? Meu primeiro impulso foi acabar com ela, pois
banheiro com teia de aranha pega mal.
Mas refleti: ela é tão inofensiva e, afinal, é
um ser vivo. Por que então acabar com ela? Não, não vou fazer isso, aranha não
faz mal a ninguém. Deixei-a lá e avisei à faxineira que não tocasse nela.
- Mas o senhor vai deixar esse bicho pendurado
no espelho de seu banheiro?
- Vou.
A faxineira me olhou espantada, soltou um
muxoxo e continuou a limpeza da pia. Aquela aranha ficou ali durante semanas e
um belo dia sumiu. Faz meses isso, e não é que, semana passada, ao abrir o
filtro de água na cozinha, vejo ali, entre ele e a parede, outra aranha,
pequenina como aquela, tecendo sua teia?
No filtro já é demais, pensei comigo, mas
deixei-a lá. E lá ela continua, no centro de sua teia. Parada, sem mover uma
perninha, dias e dias, à espera de uma presa. Quanta paciência, pensei comigo. E
se não aparecer presa alguma?
Foi então que me lembrei de minha teoria de que
grande parte do que ocorre na vida é por acaso. E vi que, se há alguém nesta
vida, a quem essa teoria melhor se aplica, é à aranha. Veja bem, ela passa dias
tecendo a sua teia, estendendo-a estrategicamente.
É o único recurso de que dispõe para capturar a
presa e devorá-la. Acredita que a presa, cedo ou tarde, cairá na armadilha, mas
nada garante que isso ocorrerá. Só o acaso o determinará. E fiquei vendo-a, ali,
imóvel, à espera de um mosquito incauto. Se ele cair na armadilha, ela o come e
se alimenta; se não cair, ela morrerá de fome. Ninguém depende tanto do acaso
quanto uma aranha.
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Escritor. Poeta. Colunista da Folha
Fonte:
Folha on line, 07/04/2013
Imagem
da Internet
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