José Tolentino
Mendonça*
«Eu sentir-me-ia mais perto de
Jesus se ele tivesse sido fuzilado em vez de crucificado», disse um dia à
escritora Marguerite Yourcenar um jovem oficial vindo da Guerra da Coreia. Por
vezes é dificil encontrar o essencial por baixo dos traços do passado. O que
Yourcenar lhe propõe é «extrair dos textos sagrados que se leem mas nem sempre
se ouvem, na igreja, as partes que nos impressionariam se as encontrássemos em
Dostoievski ou Tolstoi, ou em qualquer biografia ou reportagem sobre a vida de
um grande homem ou de uma grande vitima». Ela é uma narradora: contar e recontar
é o seu método de avizinhamento à verdade.
No conjunto de escritos póstumos do
filósofo Paul Ricoeur, por exemplo, volta-se à mesma questão, mas propondo outro
caminho: a definição de campos de sentido. Segundo ele, é no cruzar de palavras
insolentemente simples que a Páscoa, o conteúdo mais desmedido da fé dos
cristãos, se ilumina. E aposta nestas duas: desapego e confiança. A chave para
entender Jesus passaria por elas.
Comecemos pelo desapego: é, como
sabemos, uma forma de renúncia, mas não só. Desenha-se, é verdade, como um
desmantelamento do interesse próprio, podendo levar esse processo de
relativização e apagamento cada vez mais longe, até às consequências últimas.
Mas o desapego é também transferência do nosso amor para o outro. Não basta,
portanto, negar-se a si mesmo, sacrificar-se. Há uma dimensão positiva de
generosidade, de dom, de vida entregue e partilhada que nos ajuda a perceber o
desapego.
Neste sentido, Ricoeur aponta os
limites de uma leitura puramente sacrificial da morte de Jesus, que leva quase a
supor que a sua morte foi um preço necessário para satisfazer Deus. É verdade
que os Evangelhos, refletindo sobre a morte de Cristo, dizem: «É preciso que o
Filho do Homem sofra muito e seja rejeitado» (Marcos 8,31; Lucas 17,25). Há,
porém, que evitar reduzir enunciados deste tipo a um equívoco fatalismo
teológico. Se a morte de Jesus fazia parte do desígnio de Deus, ela não deixou,
em momento algum, de ser um destino livremente aceite. Importa, por isso,
repensar (ou, em qualquer dos casos, complementar) a tradição do sacrifício a
partir da lógica do dom. Pois é o enfoque no dom que deve prevalecer. «Ninguém
me rouba a vida, sou eu que a dou» - afirma Jesus. Sem isso, não perceberíamos a
real dimensão do gesto que a cruz representa.
Mas mesmo este desapego só se
completa na instauração de uma fundamental confiança Confiança em quê? Confiança
na resposta de Deus, na certeza de que Deus se lembra de nós, e o seu cuidado
pode sustentar e garantir a vida do justo no impossível extremo da morte. A
ressurreição de Jesus não é apenas horizontal. Isto é, não passa simplesmente
pela receção e transmissão posterior do seu testemunho por outros, a começar por
aqueles que lhe eram mais próximos, os seus discípulos.
Jesus não permanece apenas vivo na
fé dos que acreditaram e acreditam nele. A ressurreição de Cristo é antes de
tudo um acontecimento vertical, ação insurrecta de um Deus que responde
recapitulando tudo no hoje do seu amor. Por isso, é que o acontecimento pascal
precisa primeiro de ser acreditado antes de ser confessado. Naquela manhã, as
mulheres e os discípulos constatam primeiro a literalidade histórica de que o
túmulo de Jesus está vazio. E é esse facto que abre o seu e o nosso
coração.
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P. José Tolentino Mendonça. Teólogo. Escritor.
Poeta.
In Expresso, 30.3.2013
Fonte:http://www.snpcultura.org/ler_pascoa_luz_desapego_confianca.html 31.03.13
In Expresso, 30.3.2013
Fonte:http://www.snpcultura.org/ler_pascoa_luz_desapego_confianca.html 31.03.13
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