sábado, 27 de agosto de 2011

superação da circunferência,a sabedoria





Superação da circunferência
" é a sabedoria que nos ajuda a encontrar o bom caminho... "
Liane Alves

Ao traçar num papel o círculo que representa um buraco, vemos que ele tem limite: a própria circunferência. O que nos separa da integração com um todo é justamente essa fronteira. "Nas antigas civilizações, como as do Oriente, o indivíduo sentia-se mais integrado a sua cultura, a seu universo. A noção de falta era menos presente e sentida porque toda uma estrutura o amparava em suas decisões, comportamentos e objetivos. Mas hoje, na modernidade, essa integralidade não mais existe. Vivemos uma cultura fragmentária e individualista", diz a psicanalista paulista Andrea Naccache, de formação lacaniana. "Por isso recorremos tanto ao Oriente: para tentar resgatar esse sentimento de integração de corpo, mente e espírito com o universo", diz ela. Mas o caminho também pode ser outro. "O que nos leva a ultrapassar a circunferência e transcendê-la é o outro. É ele que nos estimula a ultrapassar nossos limites e a fazer essa passagem. É dessa maneira que podemos ir além de tudo o que achamos que somos, ou do que acreditamos que podemos", diz a psicóloga.

Isso mesmo: a falta nos guia em direção a quem está em nossa volta. Porque é justamente entre as pessoas que está aquela que nos vai impulsionar. Seja um amigo (ou um inimigo...), seja o ser amado, um mestre, um livro escrito por alguém. "Assisti a um filme ontem, Homens de Honra, que conta a historia do primeiro mergulhador negro do Exército americano. Ele teve que superar limites fortes para conseguir fazer isso. E quem o estimulou a vencer essa luta foi o pai", conta Andrea. "Freud falou da falta como a perda de um objeto de amor primordial. Ele se concentrou na dinâmica do desejo, e em sua possível frustração. Hoje, a psicanálise se orienta para analisar formas de satisfação presentes. E o encontro com o outro nessa dinâmica é fundamental", diz ela. Não é à toa que num dos poemas mais intensos de Fernando Pessoa ("A Tabacaria"), o simples aceno do dono de uma loja consegue tirar do autor o sofrimento diante do vazio da vida. A salvação é motivada pela ação do outro.

Na metafísica, a resposta é semelhante. É a união com o Divino, ou com o estado primordial de amor e compaixão, que nos vai fazer superar a falta. É isso o que nos diz, por exemplo, Meister Eckhart, o grande místico medieval alemão: "Vede! Este homem permanece numa única e mesma luz com Deus: é por isso que não há nele nem sofrimento nem sucessão, mas uma igual eternidade (...) Ele permanece num agora que, em todo o tempo e sem cessar, é novo". Para Eckhart, nossa falta primordial é ontológica: é o desejo da alma de se unir a Deus, que, nesse caso, é um outro divino. "Essa semente (na alma) pode estar encoberta ou oculta, mas jamais aniquilada ou extinta. Ela é ardente, brilha, ilumina e queima, e tende sem cessar para Deus."

Assim, não precisamos de mais nada. Pois a falta primordial deixa de existir. "O sábio não tem mais nada a esperar ou a exigir", diz o filósofo André Comte-Sponville. "Como não precisa de nada, é inteiramente feliz." E o escritor francês Matthieu Ricard, em seu livro Felicidade (Editora Palas Athena), complementa a ideia: "Somos responsáveis pela escassez que nos aflige. Não nascemos sábios, nos tornamos". É a sabedoria, portanto, que nos ajuda a encontrar o bom caminho para transcender aquilo que nos falta.

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