O Morto Escuta
< Fabrício Carpinejar>
Sou místico, acredito no sobrenatural, em Deus,em anjos,fantasmas,em duendes,rezo ao entrar no carro,faço sinal da cruz ao passar por igreja,enxergo coincidências e sigo rituais.
Quando pequeno, queria ser santo.
Hoje,percebo que é difícil ser apenas um homem honesto.
Fiquei abalado pela história real de uma Enfermeira Mineira. Foi a descoberta espiritual mais importante de minha vida.Não dormi por duas noites seguidas relembrando as verdades ditas por aqueles olhos azuis enormes.
Ela trabalhou por 30( trinta anos ) na Santa Casa de Misericórdia, cuidando e socorrendo pacientes terminais.
Confessou que a pessoa morre como viveu.
Os mais alegres têm despedida leve, tranquila, independente da enfermidade.
Vão daqui para o outro lado sonhando. Não,realizam drama,tampouco articulam chantagem.Tamanha a suacidade,não dá para identificar o último suspiro.Aceitam o destino,agradecidos pelo amor recebido.
Já os que estavam acostumados a reclamar de qualquer coisa também definham contrariados.Atolados de culpas e dívidas,esbanjam esgares de sofrimento,protestam pelas dificuldades adquiridas na doença,gritam a cada arrepio,lamentam ausência de atenção; o hospital nunca é bom , a dor sempre é insuportável.
Eles falecem com o rosto contraído,fechado,apunhalado.De quem apanhou da morte.
Uma feição tensa,de escultura inacabada.
Mas,então,a Enfermeira revelou um hábito surpreendente de sua equipe: conversar com o defunto.
Diante do morte sofrido,refratário,e penoso,ela cochichava conselhos em sua orelha.Pedia para que ele reconsiderasse sua raiva,que desistisse da cara amarrada e emburrada,que se arrumasse para o velório e abandonasse o ressentimento.
Explicava que os familiares esperavam com ansiedade para vê-lo,que ele precisava se despedir bonito,que os parentes mereciam seu perdão e não valia a
pena comprar briga por orgulho e teimosia.
Com as palavras delicadas de incentivo,não é que o morto ia soltando os traços e transformava a aparência na hora: libertava as bochechas,alforriava a boca ,relaxava por completo.
O morto incrivelmente escutava.Entendia a súplica da Enfermeira,e sua equipe.Mesmo depois do seu fim.Atendia ao pedido e desinchava a amargura e serenava o espírito.
Nossos ouvidos não terminam com a morte.Continuam ouvindo onde quer que estejamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário