O
filósofo italiano Giorgio Agamben escreve: “a arte de viver é (…) a capacidade
de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa”.[1]
À primeira vista, trata-se de uma fórmula enigmática. Mas não é. Agamben explica
que o conhecimento parece ter necessidade de um pressuposto, que é a existência
de um campo no qual reina o que não é conhecido, um centro do qual emana a
ignorância. Sem esse lugar da ignorância, como poderíamos falar de um espaço
preenchido de conhecimento. O conhecimento então é conhecimento do conhecido e
concomitantemente um saber do que se pode pressupor como existente, embora um
campo cheio do que nada sabemos ou ainda não sabemos.
Ah! Mas como é difícil rapidamente deixar a
harmonia de lado e acreditar que o campo do conhecimento, sozinho, é o que
importa, e o que nos escapa é algo de menos valor. Podemos escapar disso e
encontrar a harmonia entre ambos os campos, em favor da “arte de viver” de
Agamben?
Na história da filosofia a relação entre Platão
e Sócrates faz-me entender Agamben, mesmo que por uma via não indicada por
ele.
Sócrates passou uma vida fazendo questões que
não foram respondidas. As respostas, como não vinham, alimentavam o campo da
ignorância. Ele perguntava, por exemplo, “o que é a coragem?”, e o que se pedia
não vinha. Os interlocutores davam exemplos, relatando atos corajosos. Falam
historicamente e não filosoficamente. A “natureza mesma da coragem”, pedida por
Sócrates literalmente, definia um campo de ignorância. Poder-se-ia saber muitas
coisas e ter como alguma coisa conhecida à medida que se soubesse o que era não
saber alguma coisa, por exemplo, não saber o que é a coragem. Ora, talvez
temeroso de ver seu mestre igualado aos sofistas pela consciência popular, em
determinado momento Platão quis romper com esse limite de Sócrates. Em uma dada
altura de seus escritos quis um Sócrates que dissesse que a coragem era a
Coragem, a forma Coragem, o eidos existente em um campo que já não era
o da ignorância, mas o campo em que a forma Coragem sempre compartilhou com as
outras formas – matrizes epistemológicas e ontológicas supra-sensíveis do
existente no mundo sensível.
Platão quebrou com a harmonia necessária à
“arte de viver”. Platão destituiu de seu status relativamente igualitário o
campo do qual emanava a ignorância, transformando-o em um lugar de fonte do
saber real, justamente o lugar em que, o que não se poderia ter mesmo era um
tiquinho de produção de ignorância. A ignorância, então, ganhou o caráter de
falta, carência, defeito ou mesmo produto do erro ou da ilusão – a opinião,
então oposta ao conhecimento.
Enquanto Sócrates reinou em Atenas, o erro não
era uma falta em si (ainda que o desconhecimento intelectual fosse responsável
pela falta moral), mas a indicação de que de um lado havia o conhecimento e de
outro um campo em relação aos quais vários emudeciam, o campo produtor da
ignorância. A “arte do viver” era equilibrar-se entre saber e não saber.
Sócrates não separava filosofia e vida, ou seja, ele inquiria todos procurando o
saber que viria das respostas, isso era sua arte de viver e seu filosofar. Era o
todo de sua vida. Sócrates nunca disse que só sabia que nada sabia. Ele disse
que em relação às perguntas que fazia, ele não sabia a resposta. Mas sabia muito
bem o que não sabia, então, sabia algo: sabia o tanto que era necessário para
continuar a perguntar, a filosofar, a exercer a “arte do viver”. Ele tinha uma
relação altamente inquietante entre saber e não-saber, mas jamais uma relação
não harmoniosa.
Sócrates era pobre, feio e plebeu, no entanto,
espalhava harmonia em sua “arte de viver”. Platão era rico, nobre e belo, mas,
durante um tempo, não conseguiu viver harmoniosamente e, segundo o que se pode
inferir de alguns historiadores helenistas e filósofos (de certo modo, a tese
Vlastos-Davidson à frente), ao final da vida se arrependeu e tentou voltar a ser
socrático.[2]
Tentou voltar a acreditar que manter-se com o elenkhós, o método da
refutação, e suportar as aporias, não era um negócio ruim, ao contrário, era bom
à medida que era o possível dentro de uma razoável “arte de viver”. Arrisco
dizer que Platão chegou a perceber que aí cabia uma harmonia que ele havia
perdido ou havia desprezado. Ao fim e ao cabo, Platão teria, ao final da vida,
abandonado o platonismo, se tomamos este como a confiança no Mundo da Formas
como mecanismo para dar respostas às perguntas socráticas. Uma vez mais velho,
ele teria, então, se voltado para a retomada de diálogos problematizadores e
refutadores, até de si mesmo.
A “arte de viver”, no lema de Agamben, não é
aceitar a ignorância. Longe dele a resignação do tipo “há ali um campo
misterioso” e inexpugnável que deve ser idolatrado ou mistificado. A “arte de
viver” não é isso, pois a harmonia de duas coisas não é simplesmente o aceitar
de uma ou das duas. Harmonia é ter certo que dois campos podem se relacionar e
devem se relacionar sem que um elimine o outro com bofetadas ou até mesmo com
beijos sedutores ou o subsuma com discursos laudatórios. Sócrates não voltava
para casa contente por não ter obtido respostas ao que perguntava, dizendo então
que o campo da ignorância havia sido aceito. Ele voltava para casa contente, às
vezes, quando via que ao não ter conseguido resposta, também não havia perdido
as respostas que já possuía e nem se via impedido de colocar as mesmas
perguntas, ou semelhantes, novamente.
Hannah Arendt nos lembra da necessidade que
Sócrates sempre teve de concordar com aquele que vivia consigo, lá na sua casa.
Este “aquele” nada seria senão alguém que nós, do nosso ponto de vista moderno,
dizemos que seria ele próprio, Sócrates. O problema que Sócrates se punha era o
da impossibilidade de viver com alguém, ele próprio, que não concordava com o
que ele pensava e fazia. Manter-se assim, de modo possível e harmonioso no “dois
em um”[3],
era uma forma de harmonia e, de certo modo, de exercer uma boa “arte de viver”.
O “dois em um” aparecia nos momentos em que o diálogo já não era com alguém
exterior, mas aquilo que Platão chamava de uma “conversa silenciosa” interior à
alma. Nesse sentido, Sócrates dizia mais ou menos assim: o que sei é, então, o
que procuro refutar em mim para ver se sei mesmo e para me certificar que se
sustenta como crença, ou se, diante de mecanismos de negação, vão me escapar.
Essa é a regra da atividade do “dois em um”. Não posso falhar nisso, porque o
que sei e acredito não pode ser desprezado como mera opinião, uma vez que moral
é conhecimento. Quando não sei, erro, e erro moralmente; ora, como conviver com
alguém, em nossa própria casa (nossa alma), que comete erros que não suportamos.
Dormir sob o mesmo teto, por exemplo, com um assassino, não é algo bem
incômodo?
Talvez essa atividade tão corriqueira que nos é
exigida por estarmos vivos seja uma das mais difíceis: ter uma “arte de viver”.
Como ter uma “arte de viver” e exercê-la se isso depende cotidianamente de
mantermos os campos do saber e da ignorância sem que um colonize o outro? Fazer
isso pressupõe não tomarmos o conhecimento como rei absoluto e absolutista e o
não-conhecimento como pobre e pecador. O não saber não é plebeu, alguém pobre
que, não raro, vai acabar fazendo alguma oposição ao rei ou à ordem (o que dá no
mesmo) e, então, ser decapitado. O não saber não é pecador, alguém insensato que
vai errar sabendo que assim o rei o punirá com a pena de morte e a própria
sociedade salgará suas terras e amaldiçoará sua família até sei lá quantas
gerações. Nada disso! O campo do não-saber pode muito bem ser apenas pressuposto
para que o campo do saber seja o campo do saber. Uma educação baseada nesse tipo
de ética ou de “arte do viver” pararia de fazer a apologia do acerto pelo acerto
nas salas de aula, mas o tomaria, de modo melhor, como o que só tem sua
existência pelo não-acerto, o erro, o desconhecimento, o que nos escapa.
Se a sala de aula quer ter alguma coisa a ver
com a vida, no sentido da vida que quem a vive é quem precisa de uma “arte do
viver”, ela tem de dar um estatuto ao não saber, ao que nos escapa, ao erro
inclusive.
Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
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