sábado, 1 de outubro de 2011

Sagração de Cláudia Laitano









01 de outubro de 2011

CLÁUDIA LAITANO

Sagração da primavera

O cercado cheio de brinquedos foi instalado no meio da sala de estar, estrategicamente posicionado para que o vô e a vó possam espiar o sono do neto enquanto se ocupam dos afazeres do dia. Eduardo tem um ano e está dormindo a sesta alheio ao movimento da casa. Ao seu lado, o avô assiste a seu sono como quem contempla uma obra de arte: silencioso, absorvido e, por hábito do ofício, ensaiando a tradução em palavras da sensação que aquela imagem provoca.

O avô de Eduardo foi professor de história da arte a vida toda e está acostumado a ajudar seus alunos a ver o que um olhar destreinado não percebe. Mas para descrever o sono de uma criança, daquela criança, pensa o avô, seria preciso um poema.

Já no escritório, preparando-se para a entrevista que me daria em seguida, o escritor Armindo Trevisan, avô de Eduardo, conta que ainda não conseguiu traduzir poeticamente o que, sem qualquer esforço, consegue me explicar em sua prosa elegante e afetuosa: “O sono de uma criança é o contrário da morte, não é?

A vida em estado de plenitude e renovação”. Trevisan tem 78 anos e uma impressionante capacidade de trabalho – atualiza um blog sobre literatura e arte, escreve poemas, dá palestras. Saí da casa dele pensando que um dos segredos para se envelhecer com lucidez e energia, além de alguma sorte, é dispor de um certo talento para permanecer “sagrando a primavera”: esse esforço cotidiano, de certa forma contraintuitivo, de enfrentar a passagem do tempo celebrando o que renasce e não apenas lamentando o que se perde.

Filhos e netos são um projeto possível de continuidade, uma chance de “estarmos lá” mesmo quando não estivermos mais – uma fração de eternidade a que quase todos os mortais têm acesso. O mesmo acontece com a arte, que nos coloca em contato com a sensibilidade de pessoas que viveram muito antes de nós. Diante de um quadro, de um livro ou de uma música, vivemos todos no mesmo tempo contínuo: o tempo do artista, o dos espectadores de outras épocas, o nosso.

Os artistas da nossa geração, porém, entram em uma dimensão de tempo à parte. É mais difícil vê-los envelhecer e nos dói mais quando eles morrem, porque são um espelho da nossa própria finitude. Por outro lado, quando o que eles fazem permanece, parece que parte de nós sobrevive e continua com eles, atravessando gerações e renascendo.

Em um dos momentos mais emocionantes do Rock In Rio até agora, músicos e uma plateia de quase 100 mil pessoas se uniram esta semana para homenagear o legado da banda Legião Urbana. Renato Russo, que morreu há 15 anos, estava presente não apenas nas músicas que toda a jovem plateia parecia saber de cor, mas na voz que a imaginação, na ausência de um substituto possível no palco, tratava de recriar internamente para dar corpo às canções.

Se existe uma juventude eterna possível, é essa de ver uma plateia de adolescentes cantar as canções da nossa adolescência. Eis uma exuberante sagração da primavera: a eterna primavera da música.

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