sábado, 19 de dezembro de 2015

" Os filhos que adotamos "

Palavra de médico
Zero Hora

J.J. Camargo

J.J. Camargo: os filhos que adotamos Edu Oliveira/Arte ZH



Trate duas turmas diferentes da mesma maneira e descobrirá, na diversidade de comportamentos e retribuições, o quanto somos valorizados ou discriminados de forma a nos vangloriarmos ou nem nos reconhecermos. Por isso, todos nós, professores, depois de muitos anos de magistério, temos as nossas turmas que amamos de paixão e as outras, que tiveram outros amores. Uma relação que se assemelha ao afeto imprevisível de filhos adotivos.
A turma 2015/2 da Ulbra encontrou o Luiz Cezar Vilodre e foi encantada por ele. Escolhido paraninfo, iniciou seu discurso identificando onde começara o vínculo: tinha sido no dia em que, irritado com o mau desempenho do grupo, comunicou: “Acabou o tempo em que aluno da Ulbra era identificado como mau aluno. Acabou o tempo em que os egressos desta escola não passavam em provas nacionais. Daqui por diante, quem não estudar simplesmente não vai terminar o curso!”. A convicção do anúncio deixou poucas dúvidas de que o cumpriria. Semanas depois, durante uma temida prova oral, ao abrir a porta para chamar o próximo aluno, deparou com dois já examinados, anunciando para a escola inteira ouvir: “Humilhei o Vilodre, acertei todas as respostas!”.
Confessou que aquela frase ficou martelando na sua cabeça durante muitas noites até que se apercebeu que ela encerrava o verdadeiro sentido de ser professor, ao se dar conta do quanto estava orgulhoso porque o seu trabalho persistente e obstinado produzira como fruto aquilo que o aluno, sem entender o mérito, chamara de “humilhação”.
A plateia se remexeu na poltrona e passou a pensar nele como o mestre realizado na proeza dos seus alunos. Então, mostrando que esta roda não para de girar, com a humildade de quem um dia também foi aluno, ele rendeu homenagem a dois de seus inesquecíveis professores: João Gomes da Silveira e Pedro Luiz Costa, dois ícones da Medicina que lhe ensinaram a amar a ginecologia.
Identificou-os como personalidades opostas: o professor João Gomes da Silveira, um homem pequeno, de fala mansa, roupas modestas, que, quando começava a ensinar, se transformava num gigante. O outro, alto, magro, nariz adunco, olhos de águia, um fera de intolerância e dono de uma velocidade mental deslumbrante. O primeiro corrigia cada atitude equivocada do aluno com a serenidade da mão no ombro. O outro, quando chamava alguém na sua sala, já recebia a vítima com a alma encomendada. Estabelecidos os modelos díspares que tinham moldado sua formação acadêmica, ele contou que, muitos anos depois, tarde da noite, ao sair do centro obstétrico de um grande hospital, viu um senhor idoso, deitado numa maca, aguardando o elevador. E, para a sua surpresa, reconheceu naquela figura arfante e arroxeada o professor Pedro Luiz Costa. Pego de surpresa e assumindo que, às vezes, a sua boca fala mais rápido do que sua cabeça consegue pensar, disse: “Professor! O que o senhor está fazendo aqui?”
E o professor, que aparentemente não precisava de oxigênio para ser mordaz, respondeu sem olhar: “Te esperando!”
Então, desconcertado, ele se apresentou: “Sou o Luiz Cezar Vilodre, sou muito grato ao senhor, fui seu residente há muitos anos e, por sua causa, aprendi a adorar a ginecologia!”.
Quando o elevador chegou e a maca começou a ser empurrada, se despediu do mestre, prometendo rezar por ele e lhe beijou a testa.
Próximo do final, enalteceu a escola médica como referência para a vida do formando e assegurou que estaria lá, à espera que os ex-alunos voltassem quando precisassem de ajuda. Por fim, com a plateia tentando conviver com a emoção crescente, ele arrematou: “E se, um dia, vocês me encontrarem numa maca, num corredor de hospital, não precisam falar nada, mas não deixem de me beijar!”.
Levantamos para aplaudir porque ali estava um professor na sua plenitude. Todos os que um dia deram aula desabaram. E foi um choro bom de chorar!

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