quarta-feira, 25 de maio de 2011

"A filosofia não é apenas um ato de pensamento... é também um ato de compromisso." (Arcângelo R. Buzzi)





O que é uma vida racional? Não existe nenhum critério
racional para defini-la. No limite, pode-se perguntar se comer e viver de modo
sadio, não correr riscos, nunca ultrapassar a dosagem prescrita significam
realmente viver, ou melhor, se a via racional não é uma vida demente. Não é
loucura pretender erradicar nossa loucura? A vida comporta um mínimo de
desperdício, gratuidade, “consumação” (Bataille), desrazão. Castoriadis disse:
“O homem é esse animal louco cuja loucura inventou a razão.”

Ser racional não seria, então, compreender os limites
da racionalidade e da parte do mistério do mundo? A racionalidade é uma
ferramenta maravilhosa, mas há coisas que excedem o espírito humano. A vida é
um misto de irracionalizável e racionalidade. Seria necessário aprender, de
qualquer modo, a brincar com esta parte irracional de nossas vidas e saber
aceitá-las.

Foi o mundo moderno que fez surgir o conceito de
razão, e foi a partir do momento em que o sentido da palavra razão foi fixado
que a razão tornou-se desracionalizável. Desde então, a dialética, ou melhor,
segundo meus termos, a dialógica entre sapiens
e demens instalou-se no interior
do racionalismo e da razão.

Agora, então, nos damos conta de que a racionalidade
vai nos fornecer algumas indicações para a pesquisa da sabedoria perdida, mas
que, finalmente, não vamos encontrar nela um guia de vida. Quanto mais cremos
que a razão nos guia, mais deveríamos estar inquietos a respeito do caráter
desracionalizável desta razão.

Retomemos
agora um aspecto existencial: o que é a vida? A vida é um tecido mesclado ou
alternativo de prosa e de poesia. Pode-se chamar de prosa as atividades
práticas, técnicas e materiais que são necessárias à existência. Pode-se chamar
de poesia aquilo que nos coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia em
si mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é claro, o amor. Prosa e poesia
eram intimamente entrelaçadas nas sociedades arcaicas. Por exemplo, antes de partir em expedição ou no momento das
colheitas, havia ritos, danças, cantos. Encontramo-nos numa sociedade que tende
a disjuntar prosa e poesia e na qual há uma imensa ofensiva da prosa ligada ao
desenvolvimento técnico, mecânico, gélido, cronometrado em que tudo se paga,
tudo é monetarizado. A poesia tem, certamente, ensaiado defender-se nos jogos,
festas, bandos de companheiros, nas férias. Cada um, em nossa sociedade, ensaia
resistir à prosa do mundo, como, por exemplo, nos amores clandestinos, por
vezes efêmeros, sempre erráticos. Há pacotes prontos para consumir a poesia que
se vende nos clubes de férias, como o Clube Mediterrâneo, por exemplo; lá
vive-se num mundo sem dinheiro, mas evidentemente tudo já foi pago adiantado.
Em resumo, a poesia é a estética, o amor, o gozo, o prazer, a participação e,
no fundo, é a vida! Mas o que é uma vida racional? Implica levar uma vida
prosaica? Loucura! Mas somos parcialmente obrigados a isso, porque se
tivéssemos uma vida permanentemente poética, não a sentiríamos mais. É-nos
necessária a prosa para que possamos ressentir a poesia. Sobre ela, gostaria de
me referir àquilo que George Bataille denomina “consumação”, quer dizer, o fato
de nos queimarmos num grande fogo interior, oposto ao mero consumo, que é um
fenômeno de supermercado.

É preciso aceitar a “consumação”, a poesia, o
dispêndio, o disperdício, uma parte da loucura na vida… Talvez seja isso que
constitui a sabedoria. Sabemos que a atitude de gozar – e entendo, por isso,
que, gozar a vida, curtir uma boa refeição, um bom vinho, implica,
simultaneamente, a atitude de sofrer.

Se
aprecio um bom vinho, espero quando me obrigam a beber um vinho que considero
ruim, enquanto que se não tivesse essa
atitude, poderia muito bem beber o que quer que fosse com a mesma indiferença.
De modo semelhante, a atitude para a felicidade implica a atitude para a
infelicidade. É evidente que, se conhecemos a felicidade com alguém que nos é
caro e esse alguém nos abandona, tornamo-nos infelizes porque justamente
havíamos conhecido a felicidade. A atitude de racionalização consistiria em
dizer: para não ser infeliz, não amarei mais ninguém e, desse modo, não
passarei mais desgostos. O Tao-te-ching diz: ”A infelicidade caminha de braços
dados com a felicidade, e a felicidade deita-se ao pé da infelicidade.” Você
chama a felicidade, tira as conseqüências dela, que implicam aceitar a
infelicidade. Encontramo-nos aqui diante de uma situação muito difícil, pois
não existe um programa de sabedoria. O que existe, em contrapartida, é a idéia
de que não podemos prescindir da dialógica sempre em movimento entre nossa
polaridade de demens e sapiens. Bem entendido, pode-se e
deve-se evitar a pior demência: mas isso que é a sabedoria?

Eu
veria o esforço da sabedoria em outro lugar, eu o veria no esforço da
auto-ética. A auto-ética implica inicialmente evitar a baixeza, evitar ceder às
pulsões vingativas e maldosas. Isso supõe muita autocrítica, auto-exame,
aceitação da crítica do outro. Diz respeito, também, aos universitários e aos
professores de filosofia, que não são melhores do que ninguém, mesmo que a
despeito dos manuais de filosofia. A auto-ética é, antes de mais nada, uma
ética da compreensão. Devemos compreender que os seres humanos soa seres
instáveis, nos quais há a possibilidade do melhor e do pior, uns possuindo
melhores possibilidades do que outros.
Devemos compreender também que os seres possuem múltiplas personalidades
potenciais e que tudo depende dos acontecimentos, dos acidentes que ocorrem com
eles e que podem liberar alguns deles.

Na auto-ética, e principalmente no plano elementar da
recusa das idéias de vingança e punição, é onde se situa o centro da sabedoria.
É nessa auto-ética para si e para o outro que se encontram implicadas virtudes
antigas que nos remetem à via oriental: saber distanciar-se de si mesmo, saber
objetivar-se. Quero falar destas práticas que consistem em se ver como objeto,
sabendo integralmente que se é sujeito, em poder descobrir-se, examinar-se,
etc. Esse distanciamento pode ser tentado de modo direto, como no caso de
Montaigne. O esforço de introspecção é vital, mas o que é péssimo é que ninguém
o ensina. Não somente não é ensinado, mas também é ignorado, como entre os
psicólogos behavioristas, para os quais a única coisa que conta é o
comportamento, ou os neurocientistas para os quais o que existe é o cérebro e
os neurônios, e para os quais a introspecção não tem nenhum valor.

É necessário, entretanto, ensinar e aprender a saber
distanciar-se, saber objetivar-se e aceitar-se. Seria igualmente necessário
saber meditar e refletir a fim de não sucumbir a essa chuva de informações que
nos cai sobre a cabeça, ela mesma sucumbida pela chuva do amanhã, que nos
impede de meditar sobre o acontecimento presente no cotidiano, não permitindo
que o contextualizemos ou que o situemos. Refletir é ensaiar, e uma vez que foi
possível contextualizar, compreender, ver qual pode ser o sentido, quais podem
ser as perspectivas. Mais uma vez, para mim, a linha de força de uma sabedoria
moderna consistiria na compreensão.

Falo de um ponto de vista pessoal, porque não posso
fazer como se tudo isso fosse anônimo. Participei recentemente de um colóquio
sobre o amor e me pareceu que se falava do amor de um ponto de vista exterior.
Todos nós vivemos o amor, e essa vivência faz parte de nós. No que me concerne,
ensaio assumir não apenas minha própria dialógica de sapiens-demens, mas também a dialógica entre as quatro forças que
são muito poderosas em mim, na qual nenhuma delas chega a dominar as outras e
na qual eu aceito a coexistência e o conflito. Quero falar da dúvida e do
misticismo. É por isso que amo Pascal, que se tornou um autor-chave para mim.
Encontro nele esta alta racionalidade e o conhecimento dos limites da razão.
Ele sabia que a ordem da caridade ultrapassava a da racionalidade. Pascal era
filho de Montaigne, embora tenha guardado sua própria fé. De minha parte, não
possui essa fé num deus da revelação, mas fé em alguns princípios que podem ser
chamados de “valores”. Não vejo o meu misticismo como o de Santa Teresa
d’Ávila, cujos “Êxtases” muito admiro, nem como o de São João da Cruz , ainda
que haja nele uma visão extremamente profunda da relação entre conhecimento e
ignorância. Creio que posso ressenti-lo, por exemplo, numa flor, num
pôr-do-sol, numa visão. Em minha dialógica, nenhum elemento destrói o outro, É
dessa forma que assunto o problema. Assumo mesmo a contradição entre uma
curiosidade que me leva à dispersão e a necessidade de me reconcentrar para
produzir o fruto de minha experiência e de meu pensamento, quer dizer, O Método. Por um lado, digo a mim mesmo,
que tenho necessidade de conhecimento complexo – e sei que isso é racional.
Tenho necessidade de conhecer cada vez mais as ciências que trazem revelações
sobre a vida, o universo e realidade… Mas até que ponto minha necessidade de
conhecimento é ela mesma racional? Sei perfeitamente que adquirir um saber
total é uma tarefa impossível. Adorno diz de modo apropriado: ”A totalidade é a
não-verdade.” Ao mesmo tempo, não chego a ficar profundamente triste em virtude
dessa necessidade de conhecimento, e isso porque a necessidade de saber é o que
ocorre no mundo. Digo sempre a mim mesmo: seria sábio renunciar a ser cidadão
deste mundo e se sujeitar a quaisquer processos sem ensaiar refletir sobre
eles? Vejo e vivo essa contradição. Finalmente, creio que as grandes linhas da
sabedoria se encontram na vontade de assumir as dialógicas humanas, que podem
ser resumidas na dialógica sapiens-demens e na dialógica prosa-poesia.

A
sabedoria deve saber que contém em si uma contradição; é inteiramente loucura
viver muito sabiamente. Devemos reconhecer que na loucura, que é o amor, há a
sabedoria do amor. No amor da sabedoria, ou da filosofia, falta amor. O
importante na vida é o amor: Com todos os perigos que ele contém.

Mas
isso não é o suficiente. Se o mal que sofremos e fazemos sofrer reside na
incompreensão do outro, na autojustificação, na mentira a si próprio (self deception), então o caminho da
ética – e é aí que introduzirei a sabedoria – reside no esforço da compreensão
e não na condenação, no auto-exame que comporta a autocrítica e que se esforça
em reconhecer a mentira para si próprio.

Fonte: Morin Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 7ª
edição- Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2005.

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