domingo, 27 de março de 2016

" Que nos reste a ESPERANÇA "

Dr J.J.Camargo A esperança que nos reste Edu Oliveira / Arte ZH/Arte ZH



Ter esperança é acreditar no possível. Ela difere da fé, que é cega, e do delírio, que é utópico. 


 A amizade, em parte, e o amor, completamente, podem contaminar a esperança, desfigurando-a a ponto de torná-la irreconhecível. Se não fosse assim, como explicar a complacência com que projetamos mudanças de atitude dos nossos amados, ignorando que as reações que abominamos são traços de caráter que não se modificam só porque tínhamos esperança que sim, mas ainda pioram com a idade?



 Quantas vezes anunciamos projetos mirabolantes embalados por corações generosos e ficamos ali na torcida improvável de que se realizem? Expectativa igualmente irracional ocorre todos os dias na relação afetiva com nossos amores, agravada pela extrapolação dos limites do razoável se os envolvidos na fantasia forem nossos filhos. 

 A multiplicação descarada da esperança é tão frequente que acaba adquirindo ares de normalidade quando descrevemos, com doses generosas de desejo e faz de conta, as proezas das nossas crias.

 Usando como gancho o título do meu último livro, as jornalistas Lara Ely e Jessica Rebeca Weber, dentro de um quadro de Zero Hora chamado Com a Palavra, entrevistaram umas 15 pessoas nas ruas da cidade, perguntando-lhes: "Do que você precisa pra ser feliz?". As respostas, plenas de esperança, foram de uma singeleza comovente, revelando o quão pouco nos basta para a sonhada felicidade. 

Ninguém idealizou ganhar na loteria, vários pediram saúde, que o resto eles davam um jeito, houve quem pedisse que o patrão valorizasse seu trabalho, e outro, batendo às portas da felicidade, assumiu que só lhe faltava que a negra velha não lhe enchesse tanto o saco. Uma paciente minha, com um câncer avançado, estava lá para ganhar um autógrafo e assistiu ao vídeo. No dia seguinte, me segredou: 

"Eu queria muito ter a simplicidade daquelas pessoas. Agora, sei que estou morrendo e me culpo por ter perguntado o que não queria ouvir. O médico que fez meu diagnóstico, respondendo a uma pergunta minha, disse simplesmente que eu devia me preparar para o pior. Ele achou que eu queria saber a verdade, e eu só lhe perguntei para que ele a negasse. 

E nem posso me queixar, porque fui eu que lhe dei a chance de enterrar a minha esperança!". O médico deve ser um adito da esperança, não só porque precisa preservá-la para bloquear o acesso da depressão que comprometeria o resultado de seu trabalho, mas também porque, com alguma frequência, ela é tudo o que se pode oferecer. É difícil precisar os limites dessa recomendação mas, em princípio, na doença grave, sempre que a realidade sobrepujar a esperança, a aspereza da verdade pura arranca pedaços que o consolo não consegue repor. 

 Quando o médico, por um realismo preciosista, abdica da esperança, abre a porta para o abandono e a solidão. Só a esperança pode preservar o sorriso de quem está cercado pelos indícios de tragédia. Só a esperança evita o desespero diante da evidência que o resgate não chegará a tempo.

 Quem tem esperança pode não viver mais, mas viverá melhor consigo mesmo o que lhe reste viver, e essa já é uma razão mais do que suficiente para conservá-la intacta.

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