domingo, 26 de novembro de 2017

POLÍTICA

A elite política vence a Lava Jato

A Lava Jato não mete mais medo em Brasília. Os graúdos da política aproveitam recuos do Supremo, acumulam vitórias e retomam território para a impunidade

AGUIRRE TALENTO, MATEUS COUTINHO E PATRIK CAMPOREZ

A estátua da Justiça,escultura Alfredo Ceschiatti na frente do prédio do Supremo,em Brasília (Foto:  Ueslei Marcelino/ REUTERS)



Em meio ao burburinho da sessão da Comissão de Constituição e Justiça, na quarta-feira, dia 18, o deputado Paulo Maluf (PP-SP) defendeu o presidente Michel Temer. Havia horas o colegiado debatia o relatório do deputado Bonifácio Andrada (PSDB-MG), que recomendava a rejeição de um pedido da Procuradoria-Geral da República para investigar Temer pelos crimes de organização criminosa e obstrução da Justiça. Maluf classificou a denúncia contra Temer como um ato de “terrorismo” contra a economia nacional. “Quem aqui pode levantar a mão e dizer ‘eu estou aqui sentado sem ter pedido recurso para ninguém, minha campanha custou zero’? Todos pediram recursos. Eu pedi e Michel Temer pediu. Mas de acordo com a lei”, disse Maluf, um veterano em ser alvo e reclamar de denúncias. Uma semana antes, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmara sua condenação à prisão pelo crime de lavagem de dinheiro. Entre outras coisas, Maluf é acusado de movimentar ilegalmente US$ 15 milhões entre 1998 e 2006 em contas no paraíso fiscal de Jersey, uma ilha no Canal da Mancha.
A experiência na causa explica a ousadia de Maluf. Tamanha é a rejeição do presidente Michel Temer nas ruas – apenas 3% dos entrevistados da mais recente pesquisa consideram seu governo ótimo ou bom –, que nenhum de seus colegas foi tão longe quanto Maluf, a ponto de defender Temer por aspectos morais, como a “honestidade” ou a “probidade”. Preferiram atacar a Operação Lava Jato na pessoa do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, que encaminhou a denúncia no mês passado. “Quem merece crédito? O pinguço pego no porão de uma distribuidora de bebidas tomando um trago de ‘canha’ com um advogado ou o presidente da República, que contra ele não há nada absolutamente provado?”, disse o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), em referência a um encontro em um bar entre Janot e o advogado Pierpaolo Bottini, defensor do empresário Joesley Batista, da JBS, cuja delação premiada gerou as denúncias contra Temer.
Michel Temer (Foto: Época)
O deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), aguerrido defensor de Temer, alargou os limites institucionais. “Agora vem uma ditadura de procuradores que se associam a bandidos delatores”, disse em sua defesa, para que a comissão rejeitasse a denúncia contra Temer. Enquanto isso, agarrado a um exemplar da Constituição e a uma cópia da denúncia grifada, o relator Bonifácio Andrada – “nosso relator”, segundo o Palácio do Planalto – defendia os “aspectos técnicos” de seu trabalho. Não era necessário. Os acordos por cargos, emendas ao Orçamento e favores eleitorais acertados pelo governo fizeram com que 39 deputados votassem a favor de Temer e só 26 contra.
O resultado era esperado. A dança dos discursos é que merece atenção. Os parlamentares que defenderam Temer e o ajudarão a escapar definitivamente da investigação na votação no plenário da Câmara, prevista para esta semana, não têm mais medo de desancar a Operação Lava Jato em público. Aqueles que até pouco tempo atrás repetiam com dores agudas no estômago frases como “A Operação Lava Jato tem de ser preservada” hoje podem falar abertamente o que pensam da investigação contra a corrupção. A certeza em torno disso é corroborada pela salvação do senador Aécio Neves (PSDB-MG), presidente afastado do PSDB um dia antes. 
Aécio Neves (Foto: Época)
O plenário do Senado estava agitado por volta das 17h30 da terça-feira, quando se debatia a situação de Aécio, desde 26 de setembro relegado a um estado de quase prisão, proibido de exercer o mandato e obrigado a passar as noites em casa. O Senado avançava pelo caminho aberto na semana anterior pelo STF, que concordara que suas decisões sobre medidas cautelares contra parlamentares teriam de passar pelo crivo de seus pares. Enquanto os discursos corriam, os senadores sul-mato-grossenses Waldemir Moka e Simone Tebet, ambos do PMDB, tratavam de assuntos mais paroquiais. “E aí, Simone?”, disse Moka. Batendo a caneta na mesa, ela respondeu impaciente, enquanto olhava para a tela do telefone celular: “Estou refletindo”. A senadora refletia enquanto esperava uma resposta do Palácio do Planalto à demanda mais comum do Congresso – dinheiro para suas emendas parlamentares – para então se decidir se votava a favor de Aécio. Sim, Aécio era um assunto do governo.
Após a votação da primeira denúncia contra Temer, na qual o presidente se salvou, o troca-troca de favores e o fisiologismo para escapar da Lava Jato se ampliaram. Valeram tanto para salvar Temer na Câmara, como para salvar Aécio do desterro no Senado. Até os derradeiros momentos da votação, a bancada de Mato Grosso do Sul cobrava por seu apoio na operação. Na noite anterior, de segunda-feira, e na manhã de terça-feira, os senadores tucanos Antonio Anastasia e Paulo Bauer foram à casa do presidente do Senado, Eunício de Oliveira, do PMDB. Estavam com medo. Havia 12 senadores fora de Brasília, e os tucanos temiam que, com baixo quórum, os partidários da ação da Lava Jato contra Aécio – réu em oito inquéritos da Operação – pudessem prevalecer. Aécio precisaria de 41 votos favoráveis.
Anastasia e Bauer pediam apoio a Eunício para garantir que a votação só começasse com um cenário mais favorável ao tucano. Eunício devolveu a bola. Disse que a responsabilidade por conseguir o quórum era deles. Preocupado com o desgaste para o Senado, ele refutava a possibilidade de adiar a votação. Mas postergou em três horas o início da sessão, dando tempo para os aliados de Aécio negociarem ajuda do governo Temer. Anastasia e Bauer foram ao Palácio negociar mais um espaço no Orçamento para a bancada de Mato Grosso do Sul.
Ricardo Lewandowski (Foto: Época)
A dificuldade de uns abre a oportunidade para outros. Durante a tarde, o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), foi avisado no plenário de que o dinheiro estava empenhado – no jargão burocrático, incluído na lista de gastos do governo. Assim, a bancada de senadores de Mato Grosso do Sul, formada por Simone, Moka e Pedro Chaves (PMDB), conseguiu recursos na última semana de prazo. Aécio foi salvo com 44 votos favoráveis, três a mais do que o necessário, e 26 contra.
Deputados e senadores aproveitaram o flanco aberto pelo STF, em decisões recentes em ações derivadas da Lava Jato. Em novembro de 2015, os ministros do Supremo usaram argumentos duros para mandar prender o então senador Delcídio do Amaral, do PT, no exercício do mandato, por tentar obstruir investigação que o envolvia. Pouco menos de dois anos depois, os ministros recuariam diante de Aécio, do PSDB, acusado da mesma coisa. “Parlamentares têm foro privilegiado, imunidades contra prisão e agora uma nova proteção: um escudo contra decisões do STF, dado pelo próprio STF”, disse o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato.
O Brasil se surpreendeu com a sanha investigativa e punitiva da Lava Jato desde 2014. Grandes empresários e políticos não só foram desmascarados, como viraram réus e foram presos com o desmonte de grandes engrenagens de corrupção no governo. Enquanto dependeu mais de sua versão Curitiba, a Lava Jato nadou de braçada. Quando chegou aos detentores de mandato em Brasília, com prerrogativa de foro no Supremo e investigação da Procuradoria-Geral da República, a velocidade diminuiu, mas havia sinais positivos. Diante da força das provas, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, tornou-se um procurador “mão pesada”, coisa que nunca fora.
Gilmar Mendes (Foto: Época)
Relator da operação no Supremo, o ministro Teori Zavascki foi outro que se impressionou com a extensão, força e desfaçatez do esquema que unia políticos e empresários pela corrupção do Estado. Suas decisões passaram a ser duras. Em outubro do ano passado, o Supremo entendeu que réus poderiam começar a cumprir pena de prisão após condenação em segunda instância. Foi um enorme avanço civilizatório contra a impunidade histórica.
Havia, no entanto, ruídos. Alguns ministros se mostravam contrários a prisões mais longas determinadas pelo juiz Sergio Moro. “Temos um encontro marcado com as alongadas prisões que se determinam em Curitiba”, disse o ministro Gilmar Mendes, do Supremo, em fevereiro. “Temos de nos posicionar sobre esse tema, que conflita com a jurisprudência que construímos ao longo desses anos.” Mas a dureza se mantinha. Em maio do ano passado, por decisão do ministro Teori, o Supremo decidiu pelo afastamento do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara, por reiteradas tentativas de obstruir as investigações contra si. Os colegas cassaram o mandato de Cunha, que foi preso em outubro.
Em dezembro do ano passado, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, proferiu uma liminar que afastava o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência do Senado. Em desafio à lei, Renan se recusou a receber um oficial de justiça que o notificaria do afastamento e não cumpriu a decisão. Mas o Supremo não o enfrentou. A presidente, ministra Cármen Lúcia, levou a questão ao plenário do tribunal, que derrubou a decisão de Marco Aurélio por 6 votos a 3. De uma tacada só, os ministros passaram a mão na cabeça de Renan e desfizeram uma relevante decisão tomada por um integrante.
Sergio Moro (Foto: Época)
O grande final poderia ser o caso JBS, turbinado pela delação do empresário Joesley Batista e de seus executivos. Uma gravação do presidente da República, na calada da noite no Palácio do Jaburu, dando o aval para a compra do silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha e de seu operador financeiro Lúcio Bolonha Funaro, era o coração da delação. Mas o cenário mudou com a suspeita de que Joesley omitira acusações e até mesmo áudios. Janot recuou do acordo de delação com Joesley.
Foi a deixa que faltava para o movimento anti-Lava Jato aflorar. Tornaram-se mais comuns os encontros do ministro Gilmar Mendes, do Supremo, com a cúpula dos partidos, assim como suas declarações contra a Lava Jato. Cresceu também a virulência de suas palavras contra Janot. O presidente Michel Temer, o primeiro a ser acusado de crimes comuns no exercício do cargo, usou o episódio da JBS como subterfúgio para rebater a segunda denúncia apresentada por Janot contra ele, pelos crimes de organização criminosa e embaraço às investigações. “O procurador-geral da República continua sua marcha irresponsável para encobrir suas próprias falhas. Finge não ver os problemas de falta de credibilidade de testemunhas, a ausência de nexo entre as narrativas e as incoerências produzidas pela própria investigação, apressada e açodada”, atacou em nota.
Atualmente, as duas turmas do STF exibem uma diferença enorme no entendimento das matérias penais. A Primeira Turma é mais rígida, enquanto a Segunda Turma adquiriu um viés mais garantista. É nessa Segunda Turma que são analisados os processos da Lava Jato e é por decisão de seus ministros que diversos réus foram soltos nos últimos meses. Entre outros, o ex-deputado Rodrigo da Rocha Loures – ex-assessor que Temer indicou para conversar com Joesley Batista e que deu uma corridinha com uma mala com R$ 500 mil – ganhou direito a prisão domiciliar. O ex-ministro José Dirceu também foi libertado.
Deltan Dallagnol (Foto: Época)
O Supremo já acena um recuo na decisão que permite a execução das prisões após condenação em segunda instância. Os ministros Ricardo Lewandowski e Celso de Mello tomaram decisões nesse sentido. Integrantes da Corte discutem levar o tema novamente ao plenário, para restaurar o status anterior, de execução da prisão somente após instâncias superiores. “Seria, com todo o respeito ao Supremo Tribunal Federal, muito triste que a meu ver a principal reforma geral da lei processual nos últimos anos fosse alterada por uma decisão do Supremo”, afirmou. “Essa foi a mudança fundamental nos nossos últimos anos no que se refere ao processo penal”, disse o juiz Sergio Moro.
O movimento lembra o que aconteceu há uma década, no interregno entre o surgimento do escândalo do mensalão, em 2005, e o processo que culminou com condenações e prisões em 2012. No calor dos acontecimentos, quatro parlamentares envolvidos renunciaram a seus mandatos para escapar da cassação na Câmara. Apenas três foram efetivamente cassados – o ex-ministro José Dirceu, o denunciante Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Pedro Corrêa (PP-PE), hoje preso pela Lava Jato. Passada a fase do susto, a política voltou ao normal. Outros 12 deputados foram absolvidos pelos colegas no plenário. O símbolo desse desfecho foi a “dança da pizza”, que a então deputada petista Ângela Guadagnin fez quando ouviu o anúncio da absolvição do colega petista João Magno. Seis anos depois, vários envolvidos foram condenados pelo Supremo. Espera-se que a dança não se repita e a Justiça seja contemplada.

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