sábado, 22 de abril de 2017

             A falta que faz o conversar



Costumo ressaltar a diferença enorme que existe entre o ouvir – usar o aparelho anatômico da audição – e o escutar. Este, a capacidade de assimilarmos o que foi ouvido, metabolizando-o à luz dos nossos conhecimentos e valores morais, refletindo e tirando conclusões sem açodamento ou preconceitos. Como se vê, uma arte dificílima. Também ressalto a diferença substanciosa que existe entre o olhar e o enxergar. O primeiro, representando a simples utilização da estrutura ocular, comum a quase todas as espécies animais. De certa forma, corresponde ao ouvir. Todavia, ao humano realmente evoluído, o olhar é apenas o ato inicial do enxergar, que é a compreensão exata – ou a mais próxima disso – daquilo ou daquele que se coloca diante dos nossos olhos. Enxergar corresponde, de certa forma, ao escutar, pois vai muito além do órgão anatômico do sentido, para o penetrar, profundamente, no que olhamos.

E o falar, tem também suas duas dimensões, sendo ele a mera articulação racional – ou não – das palavras que conhecemos, e às vezes até mesmo daquelas que mal sabemos pronunciar, inclusive ignorando o seu significado. Percebemos isso escutando certas pessoas pernósticas, ou alguns oradores de ocasião, ávidos de exibir erudição e buscando seus sonhados minutos de glória, mas carecendo dos mais comezinhos princípios da retórica, e – que tragédia! –     do idioma em que pretende colocar suas ideias (se é que as têm…).  Resumindo, qualquer pessoa é capaz de falar, entretanto são poucas as que conseguem conversar. Pois no universo da comunicação ele é, de certa forma, o correspondente ao enxergar e ao escutar, sendo porém uma arte bem mais nobre, mais complexa e mais gratificante para os que interagem. Quem bem conversa, bem enxerga, melhor escuta. E somente quem vai além de todas as limitações dos órgãos anatômicos: olhos, ouvidos e boca, é que logram escutar, enxergar e conversar, fazendo-o com absoluta autenticidade, humildade e generosidade, jamais por encenações que logo são desmascaradas. E os que o fazem genuinamente, são aquelas pessoas com quem nos deleitamos disfrutar de sua companhia. São aquelas de quem nos recordamos, sempre que temos necessidade de compartilhar tristezas ou alegrias, derrotas ou vitórias. Na área profissional, são os médicos, psicólogos, advogados, sacerdotes e pastores, mestres, jornalistas entrevistadores, etc. mais requisitados – mesmo (e especialmente) não sendo figurões, pois esses geralmente são frutos artificiais do marketing, hoje bastante agressivo em quase todas as atividades. Na vida familiar, onde não há espaço para o marketing, o diferencial é a disposição interior e pessoal de cada um, para acolher os que o procuram. Nos círculos de amizade, conhecemos bem aqueles que se aprazem em escutar, que não se impacientam com a fala do outro, que têm real interesse em conhecer o que o interlocutor está compartilhando com ele. Por outro lado, são notórios e cada vez em maior número, aqueles que estão sempre ávidos a encontrar um espaço para interromper quem fala, e logo despejar falação sobre si mesmos, sobre seus feitos, sobre suas maravilhas, sobre seu modo de pensar, sobre suas predileções – e muitas vezes também de seus familiares – sem terem escutado uma só palavra do que o outro disse. Na realidade, somente ouviam em prontidão para perceber um almejado ponto final, ou pelo menos uma vírgula, na fala do outro, permitindo-lhes tomar imediatamente a palavra. Às vezes o grau de ansiedade é tanto, que nem a pontuação aguardam. Simplesmente ignoram a fala do outro e iniciam a sua verborragia individualista. São os comumente denominados “desmancha-bolinhos”.

Outra situação onde a arte de conversar assume enorme importância são os momentos de discussão, onde diferentes pontos de vista se chocam. Isso ocorre especialmente no âmbito familiar. Nesse momento revelam-se os bons e os maus conversadores. Os bons escutam, procurando entender o que o outro realmente quer expressar. Também enxergam cuidadosamente para ver, além das aparências, o que o corpo daquela pessoa está dizendo além das palavras. Assim superam preconceitos, prejulgamentos e agressividades. São compassivos e conseguem amenizar e até apaziguar as mais complexas situações. Já os maus conversadores, não se interessam pelos sentimentos, nem pela opinião alheia. Julgam-se os donos da verdade, só eles estão certos, ouvem ofegantes e por isso quase nada escutam, estando sempre na defensiva e enchendo os pulmões de ar para, na primeira oportunidade, contestar com todas as forças o que os outros possam ter dito. Mesmo sem ter assimilado o que disseram. Para eles, o importante é ganhar a discussão e não necessariamente chegar a um consenso que atenda a todos. E muito menos admitir que sua posição nem sempre é a melhor, nem mesmo a mais certa.

Por isso a humanidade anda tão agressiva, e as pessoas tão recolhidas à sua conversa solitária nas máquinas eletrônicas, onde falam o que querem, não precisam escutar nem cuidar da forma ou do estilo, muito menos de uma fala escorreita. Sabem que não serão interrompidas e, a qualquer desconforto, é só dar um clique e … que pena! O sistema caiu!
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* EVALDO D’ASSUMPÇÃO é médico e escritor. Publicado em O TREM Itabirano, n. 139, abril de 2017, p. 4. Itabira-MG.
Fonte:  https://espacoacademico.wordpress.com/2017/04/19/a-falta-que-faz-o-conversar/

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