domingo, 3 de junho de 2012

" Fé Sem Fronteiras "...

Entre a fé e o caos
Varanasi, a cidade mais sagrada da Índia, abre-se para aqueles que buscam a iluminação. Aqui, perder-se também parece ser um dos caminhos da fé
Texto: Aline Stürmer
foto: Renan Rosa


Com o pôr do sol, Varanasi inicia mais um “puja” às margens do rio Ganges – a grande mãe do país. “Jai Ganga Maiki!” (“glória à nossa mãe Ganges!”), ressoam as preces de devotos, enquanto flores e velas flutuam sobre o rio, embalados pelo badalar de sinos, cantos e danças. A celebração conduzida como “Adoração ao Fogo” é dedicada ao rio, ao deus hindu Shiva, ao Sol e ao Fogo, e recebe diariamente milhares de peregrinos vindos de toda a Índia a fim de purificar suas almas, permitindo a comunhão com o divino.

Varanasi, a “terra de luz sagrada”, rivaliza com Damasco, a capital síria, pelo título de mais antiga cidade ainda habitada do mundo. Apesar de suas origens serem desconhecidas, para os hinduístas a cidade representa um centro cósmico do universo, fundado por Shiva há cerca de cinco mil anos e, desde então, figura como centro comercial e industrial, com destaque para a produção de seda, perfumes, tapetes e artesanato.

No país em que grande parte das cidades apresenta dois nomes, a interseção dos afluentes Varuna e Asi fornece mais de uma centena de denominações. Os nativos ainda referem-se a ela como Banaras ou Benares, por conta do rei mitológico Benar, e como Molini, a “cidade do jardim de lótus”, a flor utilizada nas preces hinduístas.

A cidade hoje é um aglomerado de templos, antigas universidades e mitos contraditórios perpetuados através de gerações, que durante séculos usaram as inundações frequentes do Ganges para promover a fertilidade dos solos adjacentes, garantindo alimentação desde o surgimento das primeiras civilizações às margens do famoso rio. O nível da água oscila entre os períodos de monção, de junho a setembro, quando Varanasi vê suas escadarias sagradas – os famosos ghats – engolidas pelos 7 quilômetros de águas turvas, de cor marrom.

Imersão purificadora
Às seis da manhã, um labirinto de becos conhecidos como “galis” brilha com as cores do pluralismo arquitetônico desordenado de Varanasi, conectando os ghats com comércios tradicionais e mercearias. Figuras solitárias e famílias absorvidas em pensamentos de salvação aguardam o momento de imersão no santo rio para a purifição de seus pecados e problemas mundanos. Integrantes da casta brâmane, conhecidos como pandas, recitam passagens de textos sagrados enquanto homens santos demarcam as testas de peregrinos como sinal de veneração aos deuses. Os corpos ali cremados têm suas cinzas lançadas ao rio, em uma representação da liberação do samsara, o ciclo de morte e reencarnação defendido por religiões como o budismo e o hinduísmo.

O fato é que Varanasi tornou-se sinônimo de panaceia religiosa, social e econômica, em meio ao seu dinamismo caótico. O trabalho infantil parece ser um senso comum, com crianças ofertando pulseiras, pingentes e cartões-postais a visitantes, e adolescentes trabalhando com o translado de barcos às margens do Ganges, principalmente no período da manhã, horário mais requisitado e popular para passeios nessas embarcações. Nos degraus iniciais, hinduístas se ensaboam, ou apenas sinalizam três gotas sobre a boca ou cabeça, enquanto outros cantam mantras durante o banho vital.

Gado e macacos nas vielas
Mulheres indianas iniciam a movimentação de compras familiares entre bazares nos quais é possível encontrar até o que os deuses duvidariam. Queijo coalho de cabra, essências de perfumes de lótus e sândalo, garrafas com água sagrada do Ganges estão presentes entre inumeráveis lojas de doces com latika lavanga (sobremesa feita com coco), lassi (bebida à base de iogurte com especiarias) e samosa (salgados vegetarianos fritos ou assados), além de ateliês improvisados de costura e lojas de cítaras. O gado, venerado em todo o país, ocupa as vielas, obstruindo a passagem de peregrinos e pedestres com seus excrementos e chifres pontiagudos. Os macacos são os coadjuvantes nessa feérica movimentação urbana, correndo aflitos entre terraços e telhados irregulares das casas, à procura de alimento e eventuais peças de roupas.
Varanasi tem a bênção do deus Shiva, mas também de outras religiões como o islamismo e o budismo. A comunidade muçulmana, segundo maior grupo religioso do país, pertence, em grande parte, à casta tecelã ansari e reside em torno da mesquita Aurangzeb, um exemplo das influências persas deixadas pela dominação do império Mogul no passado. A mitologia regional também conta que Buda teria escolhido Sarnath, a poucos quilômetros de Varanasi, para realizar seu primeiro sermão após atingir a iluminação.

Anfiteatro a céu aberto
Cada um das cerca de 80 escadarias sagradas, conhecidas como ghats, ao longo das margens do Ganges foi concebida com um significado social único, por diferentes reinados medievais. Desaswamedh, o ghat mais movimentado, seria o lugar em que supostamente o pai do deus Rama teria sacrificado dez cavalos em apelo ao Sol. Uma fumaça negra e espessa desponta dos ghats Harish Chandra e Manikarnika – locais em que são cremados em torno de 300 corpos todos os dias – sendo essa área restrita a familiares e amigos dos falecidos, além de trabalhadores que cortam, separam e carregam troncos de madeira para as cremações a céu aberto.

“De acordo com a nossa crença, aqueles que são cremados em Varanasi e têm suas cinzas imersas no Ganges alcançam a iluminação e a libertação do ciclo de renascimentos”, explica Asin Kumar, de 20 anos, trabalhador do comércio de design e pintura em seda.

Visitantes estrangeiros espreitam o ritual a partir de sacadas posicionadas a distância, assistindo à procissão daqueles que carregam o corpo que será cremado e das tochas de madeira. Após a lavagem e massagem do corpo do falecido pelos integrantes da família do mesmo sexo, um homem guia o grupo queimando incensos, enquanto no mínimo dois indivíduos sustentam cabeça e pernas do corpo envolto em tecidos luminosos, murmurando “Ram naam satya hai”, que significa “o nome de Deus é verdade”.

As escadarias de cremação
“Apenas a família acompanha o ritual; posicionados em frente ao Ganga, cada membro deposita cinco vezes a água sagrada do rio na boca do cadáver para purificá-lo”, diz Hashowka. A estrutura de madeira já está preparada para receber o corpo; são necessários cerca de 250 quilos de madeira para cremar um corpo adulto. Os preços são variáveis de acordo com a qualidade da madeira – a cremação com sândalo puro custa em torno de R$ 50 o quilo, preço praticável apenas para as famílias mais abastadas. Mulheres grávidas, sadhus e crianças não podem ser cremados; eles são imersos com pedras segundo a crença de que vão diretamente ao encontro da mãe Ganga.

Ao lado dos ghats de cremação existem duas casas que recebem aqueles que aguardarão a chegada paulatina da morte. Os motivos variam: pessoas sem teto, sem família ou sem perspectivas nem suporte para essa transição. Gopal Pandhe, com seus 76 anos, padece na casa dos moribundos como uma miragem bíblica. Com vestes ocres, barbas e cabelos compridos, perambula por uma das salas enquanto o sono eterno não vem. Ele, como outros ocupantes temporários dessa morada, recebem alimentos e doações de famílias indianas e de casas comerciais para que tenham madeira suficiente para o ritual purificador. Para os hinduístas, o corpo, mesmo em vida, é apenas um receptor bruto para algo que perdura, e a vida, nada mais que uma manifestação fugaz da eternidade.

Entre ruelas convulsionadas pelo tráfego desgovernado de ciclo-riquixás buscando espaço entre carros e animais, letreiros convidativos para aulas de ioga, música e meditação, o modo de vida em Varanasi parece emergir da combinação de cultura, (des)organização social e elaborados rituais. Vacas podem entrar sem ser molestadas dentro de lojas para refrescar-se do calor intenso das ruas, sadhus podem intimidar ou iluminar transeuntes ao proferirem “Om Namah Shivaya”; pessoas desalojadas, filósofos, insanos e profetas finalizam suas preces, enquanto santidades revelam suas intenções – tudo coexiste em uma miscelânea flutuante em torno de seu protagonista, o rio Ganges.

Varanasi se apresenta, dessa forma, como uma cidade inigualável, que possibilita a nós, seres mortais, uma experiência de libertação e renascimento. O fluxo contínuo do Ganges é a própria metáfora de que o tempo e a vida prosseguem deslizantes. É nessa cidade antiquíssima, de cultura milenar, que trabalhadores, nativos e personagens de todos os credos comungam a paz nessa babilônia que entoa cânticos em sânscrito.

A luta contra a poluição da "Grande Mãe"

A cidade mais famosa do estado de Uttar Pradesh, que está entre as mais produtivas e povoadas da Índia, também tem sido protagonista há décadas de polêmicas envolvendo a poluição do rio Ganges. Questões culturais e práticas religiosas endossam os danos ao rio, um dos mais importantes do continente asiático e grande mantenedor de cerca de 400 milhões de pessoas que vivem em seu entorno e que dependem de suas águas para subsistência.

A Fundação Sankat Mochan é a única organização ativa quando o assunto é a limpeza do Ganges, apelidado de “grande mãe”, e que, ao descer de sua nascente no Himalaia até sua chegada ao Golfo de Bengala percorre uma distância de 2.510 quilômetros no país. Há quase 30 anos a instituição, apoiada por países como Austrália, Suécia e Estados Unidos, tenta criar um banco de dados científico dimensionando os impactos da poluição em Varanasi e nos seus arredores. A campanha em prol da limpeza do Ganges tem a coordenação de Veer Bhadra Mishra, professor de engenharia hidráulica e líder espiritual em Varanasi. A implementação do laboratório para análise de qualidade da água e do centro de educação ambiental direcionado à população fazem parte da iniciativa da organização.

Os esforços esbarram na burocracia do governo indiano para aprovar medidas como a instalação do sistema de limpeza usando algas e luz solar, desenvolvido pela Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e a implantação do crematório elétrico, o que preservaria as raízes culturais hinduístas sem danos maiores ao ecossistema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário