sábado, 24 de março de 2012

O poema dos Poemas





O poema dos poemas
Carlos Heitor Cony*



"O Corvo" é um poema oral, Poe o recitava
como se tratasse de um "lied" de Schubert,
uma fuga de Bach ;-

Se me perguntassem qual o livro mais importante que li, eu seria obrigado a citar uns 20 ou 30, sem incluir na lista a Bíblia e o catálogo de telefones.

O mesmo aconteceria se me pedissem para lembrar o melhor jogador de futebol, o melhor samba, o melhor filme e o melhor sanduíche de carne assada da cidade.
Agora, se a pergunta fosse feita sobre o poema que mais me impressionou, eu responderia sem qualquer hesitação: "O Corvo", de Edgar Allan Poe.

Faz tempo, num almoço com o poeta e tradutor Ivo Barroso, falávamos justamente sobre os grandes poemas universais, e fiquei sabendo que a obra de E.A. Poe é uma das mais traduzidas. Conversa vai, conversa vem, Ivo organizou para uma editora carioca um livro com as traduções que conhecíamos ("O Corvo e Suas Traduções", Leya, 2012, 3ª edição).
Evidente que as de Machado de Assis e Fernando Pessoa foram automaticamente lembradas, assim como as de Baudelaire e Mallarmé, as duas últimas em prosa, mas excelentes.
Evidente também que, sendo oficial do mesmo ofício, Ivo lembrou outras que eu não conhecia.
A primeira edição de "O Corvo e Suas Traduções" esgotou-se rapidamente e, na seguinte, ele acrescentou algumas que não constavam da anterior: Didier Lamaison, Emílio de Meneses (em sonetos),
Gondin da Fonseca, Milton Amado, Benedito Lopes, Alexei Bueno e Jorge Wanderley. Nas edições seguintes, foi incluído um pequeno ensaio do próprio Poe sobre "A Filosofia da Composição".

Restou para nós a questão de chegarmos a um acordo sobre a melhor. Excetuando as duas em prosa (Baudelaire e Mallarmé), todas são magníficas, embora algumas sejam paráfrases, como a de Machado.
"O Corvo" é um poema oral, feito para ser recitativo, Poe o recitava em saraus como se tratasse de um "lied" de Schubert, uma fuga de Bach. Por isso mesmo, o ritmo, a cadência, sobretudo as rimas internas dentro dos versos, representam uma dificuldade quase intransponível para a versão, em outra língua, de um poema que, ao longo de mais de um século, foi e continua sendo dos mais traduzidos da literatura universal.

Ivo Barroso considera o trabalho do mineiro Milton Amado, de 1943, o que mais se aproxima dos efeitos métricos originais. O meu amigo Maurício Azêdo prefere a tradução de Benedito Lopes (de 1956). Por questões pessoais, aprecio a de Machado, datada de 1883: foi por meio dela que tomei conhecimento do poema, gosto de citar, sempre que posso, e mesmo quando não devo, seus versos iniciais que nunca me saíram da cabeça: "Eu caindo de sono e exausto de fadiga, ao pé de muita lauda antiga". Humberto de Campos, o escritor mais lido em seu tempo, inicia algumas de suas crônicas com a citação dos dois versos.
Baudelaire e Mallarmé usam as mesmas palavras: "faible et fatigué", bem próximas do "weak and weary" originais.

Até aqui, ficamos em alguns aspectos formais do poema, mas "O Corvo" é muito mais do que rimas e ritmo. É uma cena sombria, de atmosfera quase gótica, não faltando nem sequer o corvo que sempre me lembrou o cão que Goethe colocou junto a Dr. Fausto. Lá pelo final do poema, Fernando Pessoa tem um verso descrevendo a ave sinistra que, tarde da noite, bate à porta do poeta. Com ar sereno e lento, ela entra e pousa sobre os seus umbrais num alvo busto de Atena; pousa e nada mais: "Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha".
O poema não chega a ter enredo, resume-se num monólogo do poeta interrogando a ave que, a cada pedido, repete o famoso estribilho: "Nevermore" -nunca mais.

Uma quadra de Machado dá o tom de mistério e angústia: "Profeta ou o que quer que sejas! Ave ou demônio que negrejas! Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! Por esse céu que além se estende, pelo Deus que ambos adoramos, fala, dize a esta alma se é dado inda escutá-la no Éden celeste a virgem que ela chora nestes retiros sepulcrais. Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!" E o Corvo disse: "Nunca mais!".
Escrito em 1845, o poema de Edgar Allan Poe rapidamente se transformou numa das mais importantes criações da poética moderna, não só pela sua excelência e originalidade, mas também pelo efeito hipnótico de sua genial estrutura.
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*Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 09/03/2012

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