terça-feira, 20 de dezembro de 2011

No Bairro da Minha Infância

De: Fabrício Carpinejar



No bairro de minha infância, era obrigatória uma casa mal-assombrada. Com heras cobrindo os muros, portão enferrujado e som envenenado de vento e vidro partindo do quintal.

Se não havia uma candidata, a gente criava. Bastava uma residência estar abandonada, gemendo, fechada, ou para vender.

Assim que a imobiliária colocava a placa do negócio, o ponto passava a servir nossa especulação sobrenatural.

A construção tinha que atender alguns pré-requisitos. O maior deles: ser caminho da escola. Para facilitar o registro dos mínimos movimentos e gerar fofocas: vultos nos arbustos, janelas batendo e papéis voando. E também necessitava de gatos selvagens ou vira-latas raivosos em seu território, que avisariam da presença dos demônios com as pupilas mercúrio cromo. E alguém deveria ter morrido nela recentemente, por velhice ou fatalidade, para justificar a dívida com o além.

Nem sabe o que eu vi' costumava ser a senha de nossa chegada na escola. A curiosidade tomava a maior parte das conversas do recreio e provocava uma enxurrada de bilhetinhos por debaixo das mesas.

O coração acelerava só de passar perto do endereço, ou de tocar no assunto. Montávamos planos para a invasão. Durante a merenda, traçávamos rotas de entrada e de fuga usando pão, colheres e bolacha recheada. Havia uma coragem receosa, misto de excitação e dúvida.

Hoje a turma seria confundida com um bando de assaltantes, terminaria com a cabeça raspada na Fase, fichada na Polícia. Mas na época existia uma tolerância dos vizinhos; perdoavam nossa pouca idade: “ah, são apenas meninos!”. Pisávamos em território alheio com lanternas e mochilas. Invadíamos quartos e salas. Não foi uma casa que entrei sem permissão, mas várias, incontáveis. Ou pelas janelas ou pelos telhados. Com meu batimento na garganta, comum colega me dando cobertura do lado de fora.

Desse tempo, compreendi que adulto não soluciona o medo de criança, por querer terminar logo com o susto, dizer que não é nada, que é uma bobagem, que não vale sofrer à toa. Pai e mãe apenas aumentam o terror desprezando as perguntas e a cumplicidade.

As crianças pretendem curtir o medo primeiro, desenvolver o suspense. O medo não é uma ameaça, é um modo de fazer amizades.

Elas resolvem os pânicos falando deles. A terapia consiste em tão-somente partilhar medos. A gratuidade dos medos. O prazer dos medos. A delícia dos medos.

Um medo coletivo é melhor do que os medos individuais, castrados e reprimidos.

Exercitávamos a ansiedade com minúcia e fantasia. Às vezes contávamos histórias de terror à luz de velas somente para sair gritando. Às vezes alucinávamos em equipe.

Meu pavor sempre teve companhia para amadurecer.

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