sábado, 5 de agosto de 2017

CLÁUDIA LAITANO

o elogio do risco

Façam suas vidas valerem a pena, dizia o velho Sócrates aos seus jovens discípulos. Uma vida sem propósito, sem questionamento, sem reflexão, não vale o esforço.

Sócrates nunca escreveu um livro, e tudo que sabemos sobre ele nos foi contado pelos seus ouvintes, todos fortemente impressionados não apenas pela lucidez do seu pensamento, mas pela notável coerência entre o que ele falava e a forma como conduzia sua vida pública ? sim, tinha disso na Grécia antiga.

Condenado à morte, aos 70 anos, por supostamente corromper a juventude local com ideias exóticas, o filósofo grego aceitou seu destino com serenidade. Em vez de renegar suas ideias ou fugir da cidade, como sugeriam seus amigos, Sócrates preferiu sambar na cara da sociedade ateniense mandando um último recado para a Grécia e a posteridade: morrer não é o fim da picada. 

O fim da picada é viver uma vida meia-boca, acomodada, sem fibra. Séculos mais tarde, outro filósofo, o francês Michel de Montaigne, iria um pouco mais longe dizendo que filosofar nada mais é do que aprender a morrer. Refletir sobre a finitude não apenas nos ajuda a aceitar a morte como parte da nossa natureza, mas nos obriga a usar com alguma sabedoria o pouco tempo que temos para fazer dessa confusão toda algo que valha a pena.

A filósofa francesa Anne Dufourmantelle, como Sócrates e Montaigne, acreditava que é preciso dar sentido à vida e não apenas sobreviver ou se preocupar com a coleção de perigos que podem desabar sobre nossas cabeças toda vez que colocamos o pé para fora de casa. Para Dufourmantelle, que era também psicanalista, vivemos em uma época neuroticamente obcecada pela segurança. 

Sabemos que somos mortais, mas não nos sentimos mortais, ou seja, alimentamos a fantasia de que, se fizermos tudo bem direitinho ? ou seja, nada ? vamos conseguir escapar dos germens, dos ladrões, do terrorismo, das demissões, dos amores infelizes, dos projetos fracassados, das perdas.

O medo de ameaças reais ou imaginárias, diz a filosófa no livro Eloge du Risque (Elogio do Risco), lançado em 2011 e ainda não traduzido no Brasil, nos leva a uma existência acuada. Arriscar a vida, ensina Dufourmantelle, não é colocar-se diante de perigos desnecessários, mas enfrentar os riscos que valem a pena, porque são exatamente eles que dão sentido a nossas vidas. (?O que a vida quer da gente é coragem?, diria de outra forma o escritor Guimarães Rosa, alguns anos antes de Dufourmantelle nascer.)

Há duas semanas, Anne Dufourmantelle estava na praia, com amigos, quando viu duas crianças pedindo ajuda na água. Assumindo todos os riscos, ou talvez sem pensar, lançou-se ao mar para tentar salvá-las. Morreu a caminho, mas as crianças acabaram sendo salvas por um barco que passava pelo local. Tinha 53 anos, três filhos, vários livros escritos e outros tantos a escrever.

Como Sócrates, Dufourmantelle uniu pensamento e biografia para sempre. Será lembrada não apenas pelo que escreveu, mas pela forma como seu último gesto iluminou tudo o que fez e disse antes. Uma morte trágica, mas docemente socrática.

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