O espírito no cosmos, no ser humano e em Deus
Vivemos numa época, particularmente,
anêmica de espírito. A cultura do consumo afogou o espírito na materialidade
opaca. E sem espírito perdemos o que há de melhor em nós: a comunicação livre, a
cooperação solidária, a compaixão amorosa, o amor sensível e a sensibilidade
cordial pelo outro lado de todas as coisas, de onde nos vem mensagens de beleza,
de grandeza, de admiração, de respeito, de veneração e de transcedência.
Neste domingo, dia de Pentecostes, os cristão
celebram a irrupção do Espírito sobre amentrontados seguidores de Jesus.
Transformou-os em corajos mensageiros de sua mensagem libertadora,
alcançando-nos a nós até os dias de hoje. Nesta oportunidade, cabe uma reflexão
sobre o espírito em minúsculo e sobre o Espírito em maiúsculo.
O espírito: primeiro no universo depois
em nós
Somos, singularmente, portadores de grande
energia. É o espírito em nós. O espírito, na perspectiva da nova cosmologia, é
tão ancestral quanto o cosmos. Espírito é aquela capacidade que os seres, mesmo
os mais originários, como os hádrions, os topquarks, os prótons e os átomos de
se relacionarem, trocarem informações e de criarem redes de
inter-retro-conexões, responsáveis pela unidade complexa do todo. É próprio do
espírito criar unidades cada vez mais altas e elegantes.
O espírito, primeiramente, está no mundo,
somente depois está em nós. Entre o espírito de uma árvore e nós a diferença não
é de princípio. Ambos são portadores de espírito. A diferença reside no modo de
sua realização. Em nós seres humanos, o espírito aparece como aucoconsciência e
liberdade.
Espírito humano é aquele momento da consciência
em que ela se sente parte de um todo maior, capta a totalidade e a unidade e se
dá conta de que um fio liga e re-liga todas as coisas, fazendo que sejam um
cosmos e não um caos. Como se relaciona com o Todo, o espírito em nós nos faz
sermos um projeto infinito, uma abertura total, ao outro, ao mundo e a
Deus.
A vida, a consciência e o espírito pertencem,
portanto, ao quadro geral das coisas, ao universo, mais concretamente, à nossa
galáxia, à Via-Láctea, ao sistema solar e ao planeta Terra. Para que tivessem
surgido, foi preciso uma calibragem refinadíssima de todos os elementos,
especialmente, das assim chamadas constantes da natureza (velocidade da luz, as
quatro energias fundamentais, a carga dos elétrons, as radiações atômicas, a
curvatura do espaço-tempo entre outras). Se assim não fosse não estaríamos aqui
escrevendo sobre isso.
Refiro apenas um dado do último livro do
astrofísico e matemático Stephen Hawing “Uma nova história do
tempo”(2005):”Se a carga elétrica do elétron tivesse sido ligeiramente
diferente, teria rompido o equilíbrio da força eletromagnética e gravitacional
nas estrelas e, ou elas teriam sido incapazes de queimar o hidrogênio e o hélio,
ou então não teriam explodido. De uma maneira ou de outra a vida não poderia
existir”(p.120). A vida pertence,pois, ao quadro geral.
O princípio andrópico fraco e
forte
Para conferir alguma compreensão a esta
refinada combinação de fatores se criou a expressão “princípio andrópico” (que
tem a ver com o homem). Por ele se procura responder a esta pergunta que
naturalmente colocamos: por que as coisas são como são? A resposta só pode ser:
se fosse diferente nós não estaríamos aqui. Respondendo assim não cairíamos no
famoso antropocentrismo que afirma: as coisas só têm sentido quando ordenadas ao
ser humano, feito centro de tudo, rei e rainha do universo?
Há esse risco. Por isso os cosmólogos
distinguem o princípio andrópico forte e fraco. O forte diz: as condições
iniciais e as constantes cosmológicas se organizaram de tal forma que, num dado
momento da evolução, a vida e a inteligência deveriam necessariamente
surgir. Esta compreensão favoreceria a centralidade do ser humano. O princípio
andrópico fraco é mais cauteloso e afirma: as precondições iniciais e
cosmológicas se articularam de tal forma que a vida e a inteligência
poderiam surgir. Essa formulação deixa aberto o caminho da evolução que
demais a mais é regida pelo princípio da indeterminação de Heisenberg e pela
autopoiesis de Maturana-Varela.
Mas olhando para trás, nos bilhões de anos,
constatamos que de fato assim ocorreu: há 3,8 bilhões de anos surgiu a
vida e há uns quatro milhões de anos, a inteligência. Nisso não vai uma defesa
do “desenho inteligente” ou da mão da Providência divina. Apenas que o universo
não é absurdo. Ele vem carregado de propósito. Há uma seta do tempo apontando
para frente. Como afirmou o astrofísico e cosmólogo Feeman Dyson:”parece que o
universo, de alguma maneira, sabia que um dia nós iríamos chegar” e preparou
tudo para que pudéssemos ser acolhidos e fazer o nosso caminho de ascensão no
processo evolucionário.
O universo
autoconsciente
O grande matemático e físico quântico Amit
Goswami, que muito vem ao Brasil, sustenta a tese de que o universo é
autoconsciente (O universo autoconsciente, Record 2002). No ser humano ele
conhece uma emergência singular, pela qual o próprio universo através de nós se
vê a si mesmo, contempla sua majestática grandeza e chega a uma certa
culminância.
Cabe ainda considerar que o cosmos está em
gênese, se autoconstruindo e em expansão contínua. Cada ser mostra uma propensão
inata a irromper, crescer e irradiar. O ser humano também. Apareceu no cenário
quando 99,96% de tudo já estava pronto. Ele é expressão do impulso cósmico para
formas mais complexas e altas de existência.
Alguns aventam a idéia: mas não seria tudo puro
acaso? O acaso não pode ser excluído, como mostrou Jacques Monod no seu livro
O acaso e a necessidade, o que lhe valeu o prêmio Nobel em biologia.
Mas ele não explica tudo. Bioquímicos comprovaram que para os aminoácidos e as
duas mil enzimas subjacentes à vida pudessem se aproximar, constituir uma cadeia
ordenada e formar uma célula viva seriam necessários trilhões e trilhões de
anos. Portanto mais tempo do que o universo e a Terra possuem que é de 13,7
bilhões de anos.
Talvez o recurso ao acaso mostre apenas nossa
incapacidade de entender ordens superiores e extremamente complexas como a
consciência, a inteligência, o afeto e o amor. Neste sentido a visão de Pierre
Teilhard de Chardin do universo que mais e mais se complexifica e assim permite
a emergência da consciência e da percepção de um ponto Ómega da evolução na
direção do qual estamos viajando, seja mais adequada para expressar a dinâmica
mesma do universo.
Não seria melhor calarmos reverentes e
respeitosos diante do mistério da existência e do sentido do universo?
Depois destas reflexões já estamos habilitados
a abordar a dimensão teológica do espírito como Espírito Criador.
O Espírito Criador e a
cosmogênese
Como não podia deixar de ser, Deus também é
incluido na dimensão do espírito. E por excelência. Está presente na primeira
página da Bíblia quando se narra a criação do céu e da terra. Diz-se que sobre o
touwabohu, isto é, sobre o caos, melhor, sobre as águas primitivas
“soprava um ruah (um vento, uma energia) impetuoso” (Gn 1,2). Daquele
caos tirou todas as ordens: os seres inanimados, os animados e o ser humano. A
este, tirado do pó como todos os demais, Deus “soprou-lhe nas narinas o
ruah de vida, o espírito, e ele tornou-se um ser vivo”(Gn 2,7). É no
capítulo 37 de Ezequiel que irrompe, de forma insuperavelmente plástica, a força
vital do espírito. Quando este vem, os ossos ressequidos ganham carne e se
transformam em vida.
Também as expressões mais altas do ser humano
são atribuidos à presença do espírito nele, como a sabedoria e a fortaleza (Is
11,2), a riqueza de idéias (Jo 32,28), o senso artístico (Ex 28,3), o desejo
ardente de ver Deus e o sentimento de culpa e a consequente penitência (Ex
35,21; Jr 51,1; Esd 1,1; Es 26,9; Sl 34,19; Ez 11,19; 18,31).
Deus “tem” espírito
Esta força criadora e vivificadora é
eminentemente possuida por Deus. As Escrituras falam com frequência do espírito
de Deus (ruah Elohim). Ele é dado a Sansão para ter força portentosa
(Jz 14,6; 19,15), aos profestas para terem coragem de denunciar em nome dos
pobres da Terra as injustiças que padecem, para enfrentar o rei, os poderosos e
anunciar-lhes o juizo de Deus.
Especialmente no judaismo inter-testamentário
se esperava para os fins dos tempos a efusão do espírito sobre toda a criatura
(Jl 2,28-32; At 2, 17-21). O Messias será “forte no espírito” e virá dotado de
todos os dons do espírito (Is 11,1ss).
É neste contexto do judaismo tardio que surge a
tendência de personificar o espírito. Ele continua sendo uma qualidade da
natureza, do ser humano e de Deus. Mas sua ação na história é tão densa que
começa a ganhar autonomia. Assim se diz, por exemplo, que “o espírito exorta, se
aflige, grita, se alegra, consola, respousa sobre alguém, purifica, santifica e
enche o universo”. Jamais se pensa nele como criatura, mas algo do mundo de Deus
que, quando se manifesta na vida e na história, tudo transforma.
O Espírito é Deus
A compreensão começou a mudar quando se cunhou
uma expressão decisivia:”espírito de santidade” ou “espírito santo”. Esta
formulação guarda certa ambiguidade, pois pode-se dizer espírito santo para se
evitar dizer o nome de Deus (coisa que os judeus até hoje, por respeito,
evitam) como pode-se significar o próprio Deus. “Santo” para a mentalidade
hebraica, é o nome por excelência de Deus o que equivale dizer na compreensão
grega Deus como transcendente, distinto de todo e qualquer ser da
criação.
Em resumo podemos afirmar: pela palavra
espírito (ruah) aplicado a Deus (Deus “tem” espírito, Deus envia o seu espírito,
o espírito de Deus) os judeus expressavam a seguinte experiência: Deus não está
atado a nada; irrompe onde quer; confunde planos humanos; mostra uma força à
qual ninguém pode resistir; revela uma sabedoria que torna estultície todo o
nosso saber. Assim Deus se mostrou aos líderes políticos, aos profetas, aos
sábios, ao povo, especialmente, em momentos de crise nacional (Jz 6,33; 11, 29;
1 Sam 11,6).
Assim como é dado ao rei para que governe com
sabedoria e prudência, no caso o rei Davi (1 Sam 16,13) será dado também ao
servo sofredor, destituido de toda pompa e grandiloquência (Is 42,1) Em Is 61,1
se diz explicitamente:”o espírito de Javé está sobre mim porque Javé me ungiu…
para anunciar a libertação dos cativos e a boa-nova para os pobres”, texto que
Jesus aplicará a si na sua primeira aparição na sinagoga de Nazaré (Lc 4,
17-21). Por fim, o espírito de Deus não sinaliza apenas sua ação inovadora no
mundo, mas aponta para o próprio ser de Deus. O espírito é Deus. E Deus é
Espírito. Como Deus é santo, o Espírito será o Espírito Santo.
O Espírito Santo penetra tudo, abarca tudo,
está para além de qualquer limitação. “Para onde irei para estar longe de teu
Espírito? Aonde fugirei para estar longe de tua face? Se eu escalar os céus, ai
estás, se me colocar no abismo, também ai estás”(Sl 139,7) Até o mal não está
fora de seu alcance. Tudo o que tem a ver com mutação, ruptura, vida e novidade
tem a ver com o espírito. O Espírito Santo está tão unido à história que ela de
profana se transforma em história santa e sagrada.
O Espírito num mundo sem espírito e em
degradação
Hoje sentimos a urgência da irrupção do
Espírito Santo como na primeira manhã da criação. A Carta da Terra,
face à crise mundial ecológica, com energias negativas que nos podem arrastar ao
abismo, afirma:”Como nunca antes da história, o destino comum nos conclama a
buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no
coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de
responsabilidade universal…Temos ainda muito que aprender a partir da busca
conjunta por verdade e sabedoria (final).
Cabe ao Espírito iluminar nossa mente e
transformar nosso coração. Se fizermos esta conversão dificilmente escaparemos
das ameaças que pesam sobre o sistema-vida e sistema-Terra. Cabe ao Espírito a
capaciadade de transformar o caos destrutivo em caos criativo, como operou no
primeiro momento do big bang. Ele pode transformar a tragédia possível
numa crise acrisoladora que nos permite dar um salto de qualidade rumo a uma
nova ordem, mais alta, mais humana, mas cordial, mais amorosa e mais espiritual.
O universo, a Terra e cada um de nós somos templos do Espírito. Ele não
permitirá que seja desmantelado e destruido.
Importa suplicar ao Espírito: Vem, Espírito
Criador! Renove a face da Terra, aqueça nossos corações e rasgue um horizonte de
sentido e de esperança para a nossa realidade humana desumanizada.
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*Leonardo
Boff é coteólogo, um dos redatores da Carta da Terra e
escritor.
Fonte:
http://leonardoboff.wordpress.com/2012/05/26/o-espirito-no-cosmos-no-ser-humano-e-em-deus/
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