sábado, 31 de janeiro de 2015

" A Descoberta "

Palavra de médico- JJ Camargo

 

J.J. Camargo: "A descoberta" Gilmar Fraga/Arte ZH
                                                                                       Foto: Gilmar Fraga / Arte ZH
Na ficha da consulta constava: professor de Filosofia. Ele entrou no consultório com uma sacola de exames que mantinha constrita contra o peito. Quando perguntei no que podia lhe ajudar, titubeou como se a pergunta fosse a mais inesperada, depois contraiu os lábios, segurou o pacote com as duas mãos e me estendeu: "Aqui está o meu destino e, pelo que me deram a entender, a coisa está preta!".
Era o quarto médico que consultava, e todos tinham sido intencionalmente evasivos depois de olhar os exames. Ninguém se animara a contar a verdade que, assim, fatiada em informações escorregadias, acabara por se revelar inteira, cruel e assustadora. Antes de desatar num choro convulsivo, ainda conseguiu dizer: "Acho que o caranguejo me pegou". 

Fiquei com pena daquele homem culto, franzino, envelhecido e solitário, e passei para o outro lado da mesa, diminuindo a distância que nos separava. Olhamos as tomografias juntos, apontei onde estava a lesão e, sem me deter em detalhes técnicos, todos desfavoráveis, expliquei por onde iríamos começar a tratá-lo. Dito isso, fui surpreendido por um sorriso que iluminou a cara molhada, e ele comemorou: "Mas, então, eu tenho tratamento?".

Nessa frase, toda a certeza de que o grande pavor do paciente grave é a ideia de que diagnóstico desfavorável seja sinônimo de abandono e solidão. Como a sua consulta era a última do dia, pude alongar a conversa e, quando o acompanhei à porta, arrisquei animá-lo com uma mistura desigual de desejo e esperança: "Temos uma longa briga pela frente, mas, se pensou em morrer, se prepare para uma grande decepção, porque eu acho que esse tumor não sabe com quem se meteu!". Então, ganhei um abraço demorado e um presente: "E pode ficar com este calhamaço. Eu não vou mais precisar dele, porque agora eu encontrei o meu médico!".
Foram meses sofridos, mas ele nunca mais se queixou de nada. Estava sempre animado com qualquer terapia que lhe fosse proposta, por mais que parecesse meramente paliativa. Sabiamente, passou a evitar as perguntas que ele intuía respostas pessimistas. Ficamos amigos e ávidos por amenidades que dessem um tempo no inevitável, compartilhamos paixão por Cortázar, Gabo, Puccini, Saramago, Joe Cocker, Gonzaguinha, Paulinho da Viola e Elis. Foi bom encontrar alguém que concordava que A Marca Humana foi a melhor coisa que Philip Roth escreveu.
Morreu numa antevéspera de Natal, cuidado pela esposa carinhosa e por um filho que várias vezes advertiu que todo o atendimento teria de ser pelo convênio, porque ele não teria como me pagar.
Não sabia ele que, dias antes, seu pai me fizera um comentário que plano de saúde não paga: "Agora que estamos chegando ao fim, preciso te dizer que o melhor tratamento que recebi foi quando você sentou ao meu lado, lá na primeira consulta".
Uma semana antes da morte, ele surpreendeu a mulher, que o sabia ateu, pedindo para conversar com o pastor que antes se negara receber, apesar da insistência do religioso em confortá-lo. Soube, tempos depois, que ele queria apenas confessar uma descoberta: seguia descrente, mas tendo sido cuidado por pessoas carinhosas, ele ficara com a sensação de que a generosidade podia ser uma imagem adequada para esse tal de Deus.
                              E, nessa, ele estava disposto a acreditar.

" Quem Assume "


CLEI MORAES
Analista político
“Amigos se transformam nos piores inimigos.” (Frank Underwood, personagem de Kevin Spacey em House of Cards)
Neste domingo, os parlamentares elegem a presidência da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Com resquícios da efervescência eleitoral e escândalos que permeiam o governo, essa decisão pode influenciar os rumos da República.

Nunca se falou tanto em impeachment desde o afastamento de Collor. No ar, ainda pairam dúvidas sobre o processo eleitoral. O partido do candidato derrotado no segundo turno audita as urnas eletrônicas, enquanto, no Senado, há proposta para imprimir o voto.

Dilma, eleita, passou a descumprir promessas de campanha. A população está voltando às ruas pelos “antigos” R$ 0,20. Pela frente, haverá a revelação dos nomes de políticos no processo da Operação Lava-jato e mais um pouco de Petrobras.

Isso tudo sem falar em aumentos de combustíveis, arrocho, desemprego, recessão… e novas CPIs. Nesse horizonte, pode-se imaginar uma ligação da presidente (ou de sua campanha ou partido) com malfeitos em um “fato direto”.

Foi assim com Fernando Collor, o fato direto. À época de seu impedimento, assumiu Itamar Franco. Hoje, na linha sucessória, causada por impossibilidade permanente no exercício do cargo, assumiria Michel Temer (PMDB).


Em casos de substituição temporária e não sucessão, depois do vice, assume o presidente do Senado. Na hipótese de presidente e vice estarem impedidos permanentemente, assumem o presidente da Câmara, Senado  e  STF, respectivamente.

No Senado e na Câmara, os principais candidatos são do PMDB. Mas, supõe-se, a preocupação do Palácio do Planalto não está ligada à sucessão “golpista” como dizem.

O medo está em um possível pedido de impeachment _ Lula teve vários _, pois quem o acolhe e encaminha à votação é o futuro presidente da Câmara: Eduardo Cunha (PMDB), Arlindo Chinaglia (PT), Júlio Delgado (PSB) e Chico Alencar (PSOL).
Em nossa democracia representativa tupiniquim, passamos de eleitores a telespectadores e somos alijados desse processo de escolha. Fiquemos atentos!

" Opção pelo Risco "

Artigo Zero Hora


DANIELA DAMARIS NEU
Mestre em Teoria da Literatura


Adrenalina é palavra-chave para boa parte da sociedade. Muita gente precisa de emoções fortes para se sentir viva, ativa, aproveitando cada instante. Na falta de emoções que brotam da alma e do coração, as mais simples e atualmente as mais inalcançáveis _ porque já pouco se valorizam alma e coração _, produzem-se emoções, muitas delas potencialmente perigosas. A escala vai de exposição em ambientes de risco, passando por alguns esportes (radicais ao extremo), até o uso descontrolado de drogas (lícitas ou ilícitas).
O dia a dia nas ruas já não é perigoso o bastante? Qual a dificuldade em prezar as coisas simples da vida, a serenidade, a introspecção, a quietude? Por que tamanha necessidade das pessoas de se exporem a situações de risco, imprimindo alta velocidade nas estradas ou escalando montanhas, descendo cânions, entrando em vulcões e consumindo drogas?
O resultado é previsível _ e por isso há mais adrenalina. São vivências extremas e arriscadas, que desafiam a morte. A ironia é que, na tentativa de viver ao máximo a vida, o que se dá é um distanciamento cada vez maior dela. Ao voltar ao mundo real depois de cada aventura, o sentimento de incompletude e insatisfação aumenta. E assim a busca se torna cada vez mais ávida e o perigo é potencializado.
Já não somos mais capazes de sentir frio na barriga e coração acelerado em situações do cotidiano, diante de uma notícia feliz, de um amor correspondido, de um trabalho bem-sucedido, de uma reunião lúcida com os amigos ou a família _ e sim, praticando esportes, mas sem desafiar nossas limitações? Talvez estejamos nos esquecendo de que somos humanos.
Afinal de contas, o que buscamos? 

A missão mais árdua do ser humano neste século talvez seja se (re)encontrar consigo. E para isso não é necessário viajar, literal ou metaforicamente, nem correr risco de vida. Ali adiante, talvez adrenalina seja sinônimo de emoções que hoje são relegadas a segundo plano.

" Distopia "




Para imaginar o pior mundo possível, basta idealizar o paraíso e depois inverter tudo. No lugar da fartura, a escassez, em vez da harmonia, o caos, no lugar da fraternidade, a ganância, da liberdade, a opressão. Dá-se ao cenário ideal o nome de “eutopia” (lugar bom) e ao caótico o de “distopia” (lugar ruim) – os dois termos são derivações de “utopia”, o lugar que não existe, nomeado por Thomas Morus no livro homônimo publicado há 500 anos.



Como o homem é quem inventa e desinventa governos, cultos e arranjos sociais diversos, causas de quase tudo de bom ou ruim que pode afetar a vida das pessoas, distopias e eutopias são o resultado de visões opostas a respeito da natureza humana. Em uma eutopia, coloca-se ênfase na capacidade do homem de aperfeiçoar a si mesmo e ao mundo que o cerca. Em uma distopia, a natureza humana é essencialmente corrupta e egoísta, capaz de arruinar, cedo o tarde, tudo que está em volta.

Paraísos nunca emplacaram muito como ficção, a não ser, claro, como ficção religiosa, mas cenários apocalípticos são inventados e reinventados de tempos em tempos, com função expiatória e catártica – dize-me o que temes e te direi quem és (e onde moras). Os imprevisíveis avanços da tecnologia, o terrorismo e as mudanças climáticas são fontes pródigas para a imaginação distópica da nossa época, não apenas pelo que têm de real, mas pela natureza difusa dessas ameaças.


Como impedir que um cientista invente um vírus capaz de dizimar a espécie? Como evitar que um garoto ocidental sem perspectivas seja seduzido pelo apelo do fundamentalismo? Como convencer governos a colocarem limites na emissão de gases poluentes quando a economia está indo para o brejo? O perigo parece estar em todos os lugares – o que, por si só, já é uma distopia.

No Brasil, nunca tivemos muita vocação para o catastrofismo nem para a angústia dos medos difusos. Nossas tragédias nunca foram poucas, mas também não nos pareciam irremediáveis. O futuro, nossa mais perfeita eutopia, era aquele lugar onde tudo, um dia, iria se ajeitar. A sensação é de que esse recurso natural, o otimismo, está finalmente chegando ao limite, como os reservatórios de São Paulo.


O ministro que disse que era preciso contar com Deus para resolver o problema de falta de água lançou mão de um manancial que parecia inesgotável – aquele que não depende do que as pessoas fazem para resolver seus problemas e sim de como aprenderam, desde sempre, a conviver com eles. Mas até isso parece estar secando.

" Inovar na Gestão Pública É Preciso "


31 de janeiro de 2015 | N° 18059
ARTIGOS - HUMBERTO CÉSAR BUSNELLO*


O ano que agora vê seu primeiro mês chegar ao fim trouxe consigo uma série de importantes desafios, sobretudo para o Rio Grande do Sul. Em 2014, tivemos a real dimensão dos problemas enfrentados pelo nosso Estado, especialmente de ordem financeira. Desse modo, gerir as contas públicas de maneira mais eficaz é uma ação que pede urgência por parte do governo. As medidas adotadas pelo governador José Ivo Sartori nos primeiros 30 dias de governo mostram com clareza este cenário, em uma tentativa de recuperar o fôlego para possibilitar novos investimentos.


Não à toa, quando a Agenda 2020 selecionou sete áreas prioritárias para o desenvolvimento do RS, a Gestão Pública foi a pasta de maior destaque, considerada fundamental para que as outras seis pudessem alcançar os seus objetivos. Hoje, para cada R$ 100 de receita corrente do Estado, R$ 50 são gastos com despesas fixas, enquanto outros R$ 62 são utilizados em demais vinculações, deixando um potencial déficit de R$ 12.

É preciso entender que, independentemente das causas que nos levaram a essa conjuntura, para modificar esse ambiente de crise fiscal são necessárias medidas que promovam alterações de cunho estrutural no Estado. Não são ações de fácil implementação, mas que, de acordo com nosso movimento, podem interromper o ciclo de insegurança financeira que acompanha os gaúchos.

Entre os objetivos descritos no Mapa Estratégico e no Caderno de Propostas da Agenda 2020, estão o aumento da capacidade de investimento, a redução da carga tributária, a modernização e o aumento da eficiência da gestão pública com adequação ao tamanho do Estado e, por fim, a garantia da transparência nos cofres públicos através de um sistema de monitoramento disponível para todos os gaúchos.

Uma vez cumpridas essas metas, a sociedade rio-grandense será a grande beneficiada. Porém, para atingirmos tais objetivos, é essencial que os gestores enfrentem o desequilíbrio nas contas, reorientando a estrutura das despesas e receitas e reorganizando a forma de gestão. gestão.

*PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DA AGENDA 2020

" Dilma Se Trumbica "


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Tantas foram as mentiras de Dilma sobre a Petrobras que o maior rombo a cobrir agora é o da credibilidade

Quem não conheceu Chacrinha, o Velho Guerreiro, talvez nunca tenha ouvido seu mote mais popular: “Quem não se comunica se trumbica”. Era um visionário. Ele só não previa que pessoas como a nossa presidente, Dilma Rousseff, usassem a comunicação contra si mesmas. Quanto mais a “guerreira” Dilma se comunica, mais se trumbica. Porque a mentira, repetida ad eternum, é uma péssima arma de comunicação, um suicídio político. Não compensa a longo prazo.
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“Você pode enganar todo mundo por algum tempo; pode enganar alguns por todo o tempo; mas não pode enganar todo mundo o tempo todo.” A citação é atribuída a Abraham Lincoln, ex-presidente dos EUA. Dilma descobriu isso a duras penas. Na Base do Planalto, a guerreira foi treinada por Lula a enganar, a gritar bravatas, a prometer fantasias. Mas a longa permanência do PT no Poder, aliada à determinação de alguns juízes, no Supremo Tribunal Federal e no Ministério Público, fez ruir o castelo de cartas marcadas.

“Reajam aos boatos, travem a batalha da comunicação”, disse Dilma a seus 39 ministros. “Não permitam que a falsa versão se crie e se alastre”, exigiu Dilma. “Sejam claros. Sejam precisos e se façam entender” – tudo o que Dilma nunca faz. A presidente se enfureceu com a comunicação dos R$ 88,6 bilhões em “ativos inflados” da Petrobras. Uma expressão em economês que nada significa para a maioria da população. Os discursos do governo têm estado coalhados de “tolicês compliquês”, dialeto criado para despistar a verdade.

Pesquisa rápida revela tantas mentiras de Dilma sobre a Petrobras e sobre as contas públicas que lhe falta credibilidade até junto a seus aliados. Eles vivem levando bronca. Não sei quanto tempo Graça Foster suportará servir de para-­raios para Dilma.

Eis algumas falas da presidente “estarrecida” com a “difamação” contra a Petrobras.

“Estão querendo entregar aos estrangeiros e privatizar o filé-mignon do país, o que havia antes era carne de pescoço”, sobre a história da Petrobras, em debate eleitoral em 2010.

“Está errado quando alguns dizem que a Petrobras está perdendo valor e importância no Brasil. Manipulam os dados, distorcem análises”, em abril de 2014, em Pernambuco.

“A refinaria Abreu e Lima é um investimento extraordinário”, em abril de 2014. (A construção da Abreu e Lima acaba de ser suspensa, assim como as obras das duas refinarias Premium idealizadas por Lula no Ceará e no Maranhão.)

“Mais que uma empresa, a Petrobras é um símbolo da afirmação do nosso país, e um dos maiores patrimônios de cada um dos 200 milhões de brasileiros. Por isso, a Petrobras jamais se confundirá com qualquer malfeito, corrupção ou qualquer ação indevida de quaisquer pessoas, das mais às menos graduadas. Acreditamos na Petrobras, acreditamos na Petrobras mil vezes”, em abril de 2014.

“A Petrobras é a pátria com as mãos sujas de óleo. (...) As vozes dos que querem diminuir a importância da Petrobras se perderão mais uma vez no deserto. Serão enterradas na imensidão dos mares”, em julho de 2014. “Utilizar qualquer factoide político para comprometer uma grande empresa e sua direção é muito perigoso”, em agosto de 2014. “Eu farei todo o meu possível para ressarcir o país. Se houve desvio de dinheiro público, nós queremos ele de volta. Se houve, não: houve, viu?”, em outubro de 2014.

“Não dá para demonizar todas as empreiteiras deste país. São grandes empresas e se a, b, c ou d praticaram malfeitos, atos de corrupção, ou de corromper, eles pagarão por isso”, em Brisbane, Austrália, novembro de 2014.

“A Petrobras já vinha passando por um vigoroso processo de aprimoramento de gestão. A realidade atual só faz reforçar nossa determinação de implantar, na Petrobras, a mais eficiente e rigorosa estrutura de governança e controle que uma empresa já teve no Brasil”, na posse em janeiro de 2015.

“Temos muitos motivos para preservar e defender a Petrobras de predadores internos e de seus inimigos externos”, na posse. “Temos de reconhecer que a Petrobras é a empresa mais estratégica para o Brasil e a que mais contrata e investe no país”, na semana passada, em reunião com o megaministério.


Dilma acreditava que “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”, frase atribuída a Joseph Goebbels, o ministro de Propaganda de Adolf Hitler. Hoje, o desmoronamento da economia, os bilhões desviados da Petrobras, as mãos sujas de corrupção de gente de seu partido, servidores, executivos e empreiteiros, tudo isso sugere que a Propaganda de Dilma foi para o brejo, junto com o lento operador do teleprompter e com a vaca que se engasgou de tanto tossir.

Quem viu a vaca engasgada foi a ex-companheira Marta Suplicy. Ela e Dilma só compartilham hoje dermatologista e cabeleireiro.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

" Novos Perfis de Família "



Frei Betto*

 A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor 
aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas 
relações de intimidade e reciprocidade.

Maria Antônia, bebê gaúcho, tem duas mães, um pai, seis avós! Nascida em Santa Maria, em setembro de 2014, o juiz Rafael Cunha autorizou seu registro de nascimento. 

Os pais são Fernanda, Mariani e Luis Guilherme, que engravidou uma das moças e fez questão de ter seu nome na certidão de nascimento. O juiz reconheceu legalmente que Maria Antônia nasceu em um "ninho multicomposto”. 

Desde que resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2013, permitiu a utilização de técnicas de fecundação "in vitro” por casais homoafetivos, cresceu no Brasil o número de crianças registradas em nome de dois pais ou duas mães. 

O preconceito ainda impede que muitos reconheçam o óbvio: o perfil da família já não se restringe ao da relação monogâmica heterossexual. 

Quem melhor percebe essa mutação é o papa Francisco que, em vez de se fingir de cego, como papas anteriores frente aos fenômenos da pós-modernidade, convocou um sínodo para debater o tema. Precedido por reunião extraordinária em outubro de 2014, o Sínodo da Família terá lugar em Roma, em outubro deste ano. 

No questionário remetido a todas as dioceses do mundo, o papa pergunta como os católicos encaram casais recasados, a homossexualidade e outros temas considerados polêmicos no interior da Igreja. Francisco quis ouvir as bases, num gesto inédito de democratização da instituição eclesiástica. 

É o fim da família? A família é uma estrutura cultural, não natural. Tal como a conhecemos hoje, existe há apenas meio milênio. Aliás, hoje se multiplicam as famílias monoparentais, cujo "chefe” é a mãe. Em comunidades indígenas, a qualidade de proteção e afeto às crianças faz a todos nós, "civilizados”, corar de vergonha.

Para quem, como eu, foi educado no catolicismo à luz de estampas da Sagrada Família, não é fácil acolher os novos perfis de relações afetivas. Porém, ao abrir o Evangelho , nos deparamos com algo distinto do modelo devocional: o jovem Jesus que se desgarra do cuidado dos pais e abandona a caravana de peregrinos; o pregador ambulante que não merece a credibilidade de seus irmãos ( João 7,5) e a família o tem na conta de "louco” ( Marcos 3,21-31); o filho que parece rejeitar a própria família: "Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” ( Mateus 12, 48). 

Quando exclamaram a Jesus "Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, ele não desmentiu, mas assinalou a diferença: "Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam.” ( Lucas 11, 27-28). 

Jesus enfatizou que não são os laços de sangue que mais aproximam as pessoas, e sim o projeto comum que elas assumem. 

Projetos alternativos criam conflitos. Jesus chegou a falar em "odiar” a própria família ( Lucas 14, 26). O verbo grego miseo (=odiar) pode ser traduzido por "amar menos”: "Se alguém quer me seguir e não prefere a mim mais que a seu pai e sua mãe...” 

Frente ao modelo de família-gueto, centrada no umbigo de seus membros e avessa a estranhos e necessitados, Jesus propôs um modelo de família aberta, centrada no afeto, na gratuidade e na abertura ao próximo. 

A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas relações de intimidade e reciprocidade. 

E há que lembrar que, em sua recente visita à Ásia, o papa Francisco rogou aos fiéis católicos que evitem "ser como coelhos”, procriando irresponsavelmente. Um sinal de que os métodos contraceptivos, como o uso do preservativo, serão afinal aceitos pela Igreja Católica?
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* Frade dominicano. Escritor.
Fonte: Adital, 30/01/2015

" A Teoria de Tudo "

Jane Hawking: “Acho um milagre que ele ainda esteja vivo”


De passagem por Lisboa, a ex-mulher de Stephen Hawking admitiu que "A Teoria de Tudo" não mostra um quarto das dificuldades por que passou. 
E que a vida do cientista ateu,  para ela, é um milagre.


“Ver o filme pela primeira vez foi bastante perturbador. O Stephen era tão real!”, disse
Getty Images

Jane Wilde, mais conhecida como Jane Hawking, esteve em Lisboa para promover a biografia que inspirou o filme “A Teoria de Tudo”, que se estreia esta quinta-feira nos cinemas portugueses. Acompanhada pelo atual marido Jonathan Jones, que conheceu no coro da igreja, a autora da biografia que deu origem ao filme admitiu que há falhas factuais na história, focada mais nas conquistas do que nos períodos difíceis. Que foram muitos.

25 anos de vida em comum (30 anos de casamento) condensados em apenas duas horas. O realizador aproveitou bem aqueles 123 preciosos minutos de filme, mas haverá sempre coisas que ficam para trás. “O filme é uma celebração das nossas conquistas”, disse Jane aos jornalistas, admitindo que no grande ecrã o público vê apenas “um quarto das dificuldades” por que passou durante o casamento. Para saber mais sobre os períodos negros é preciso ler Viagem ao Infinito. Lançado em Portugal pela editora Marcador, é naquelas páginas que Jane conta a história de um dos mais consagrados cientistas da atualidade, mas também a história dos que estiveram com ele durante o aparecimento e o desenvolvimento da doença.

O casal conheceu-se na Universidade de Cambridge, a 80 quilómetros de Londres, ainda o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica não era conhecido. Aos 21 anos, os sintomas apareceram em força e os médicos deram a Stephen Hawking dois a três anos de vida, mas Jane quis casar-se com ele apesar de todas as dificuldades que estavam para vir. Passaram dois, doze, vinte e dois anos. Stephen Hawking continuou vivo. Conta hoje 73 anos.

“A Teoria de Tudo” nunca pretendeu ser uma biopic, mas Jane chegou a mandar para trás o argumento, por exemplo por causa de cenas que temporalmente não batiam certo, já que se tinham passado em Oxford e não em Cambridge. Mas a certa altura, a equipa de James Marsh teve de usar a carta da liberdade artística inerente ao projeto. Já o desempenho do elenco não podia estar mais próximo da realidade. Tanto o realizador como Felicity Jones (no papel de Jane Hawking) e Eddie Redmayne (que dá vida a Stephen Hawking) passaram muito tempo com o ex-casal.

Quando Jane viu algumas das cenas pela primeira vez, chegou ao pé de Eddie Redmayne e despenteou-o. “Ele parecia muito arrumadinho” em comparação com o Stephen Hawing dos anos 60, contou. À parte disso, nada mais a assinalar, a não ser a emoção de viajar no tempo sem ser através da poesia medieval espanhola, tema em que se doutorou. “Ver o filme pela primeira vez foi bastante perturbador. O Stephen era tão real!”. Jonathan Jones, o atual marido, também está “muito bem retratado”, ainda que fisicamente “não se pareça nada” com ele.

Ela estudava poesia medieval espanhola, ele traçava um caminho que se confirmaria brilhante na matemática, na física e na cosmologia. Ela é anglicana e Deus é uma certeza, ele é ateu e ainda recentemente disse que “não há Deus nenhum”.

Sobre o primeiro contraste, nada a declarar, a não ser elogios. “A ciência do Stephen entusiasmava-me”, disse Jane, que sempre se sentiu fascinada pelo céu, ainda que no sentido poético e não científico, como Stephen. “Ele descrevia a sua ciência de forma simples”, como pegar numa ervilha para representar a física quântica e numa batata para a teoria da relatividade, cena que pode ser vista no filme.

Mas o segundo potencial conflito, ciência versus religião, acabou por se tornar uma realidade. “No início o Stephen respeitava a minha fé”, disse Jane. “Mas com os anos ele tornou-se mais provocador”. Um dos momentos mais polémicos foi quando Hawking disseem Madrid, no ano passado, que Deus não existe. “Sou ateu. A religião acredita em milagres, mas estes são incompatíveis com a ciência”.

Não deixa de ser irónico que Jane, para quem a fé era, e ainda é, “uma coisa muito importante”, ache “um milagre que ele ainda esteja vivo”. Hoje com 71 anos, Jane define-se, não como religiosa, mas sim pessoa de fé e espiritualidade. “Não tento converter as outras pessoas, nem espero que tentem mudar-me”, disse. Talvez por isso algumas atitudes ao longo da vida em comum com Hawking a tivessem perturbado. Como quando o cientista esteve em Jerusalém para receber um prémio e disse, num dos locais do mundo mais associados ao sagrado, que não acreditava em Deus.

jane-hawking-viagem-ao-infinito
“Viagem ao Infinito” foi a biografia que deu origem ao filme

“Escrever o livro foi como tirar um peso dos ombros”

“Eu era jovem, estava cheia de energia”. A justificação de casar mesmo sabendo da doença do futuro marido chega sem que lhe seja feita a pergunta, embora seja esta a questão que vai passar pela cabeça dos vários espectadores em todo o mundo. “Tinha fé no que estava a fazer, era a coisa certa”. “Apenas sentia que era a minha missão na vida. E ele correspondeu”, acrescentou mais tarde.
 
Hawking correspondeu aos sacrifícios tornando-se “o cientista vivo mais brilhante da atualidade”. Mas quando o autor de Uma Breve História do Tempo decidiu sair de casa para se juntar com a enfermeira (atual mulher), Jane sentiu-se magoada. “Escrever o livro foi como tirar um peso dos ombros. Fi-lo para superar estas memórias, caso contrário não conseguiria prosseguir com a minha vida. E como o Stephen era muito famoso, éramos todos afetados”, disse, confessando que se adiantou antes que alguém escrevesse por ela a história do casal. A partir desta quinta-feira, uma parte importante dessa história está nos cinemas portugueses. A 22 de fevereiro vai saber-se se “A Teoria de Tudo” vence algum dos cinco Óscares para que está nomeado, entre os quais melhor filme dramático, melhor atriz e melhor ator.
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Reportagem por 
Fonte: http://observador.pt/2015/01/29/jane-hawking-acho-um-milagre-que-ele-ainda-esteja-vivo/

" Eu não sou mais ateu "


  Entrevista com Michel Houellebecq


 Eu levo a sério a necessidade espiritual. Acho que é muito chato sociologizar as coisas. Nem todos os jovens estão 
à deriva, como estamos dispostos a dizer.

Desde a publicação de Submission (Submissão), uma nova Batalha de Hernani está sendo travada. Como de costume, os juízos de valor sobre a pessoa de Michel Houellebecq (foto) se misturam com os de alguns dos seus personagens. Mas, desta vez, as considerações sobre a literatura se misturam com um debate quente sobre o Islã e a islamofobia. Parte da crítica literária julga o livro medíocre ou grosseiro. Outros acham que é perturbador ou excelente. Na maioria dos casos, a questão do declínio do cristianismo, ainda central no romance, é evitada, até mesmo completamente esquivada. Para ver o coração líquido, nós enfrentamos durante três horas o nevoeiro de cigarro, laconismo e ambiguidade que envolve e esconde o estranho sr. Houellebecq, costurando o fio de uma verdadeira conversa. Cabe ao leitor julgar suas palavras. Ele tem agora a peça do dossiê que lhe faltava: o próprio autor. Seguem trechos de uma entrevista exclusiva a ser publicada nesta quinta-feira, 29 de janeiro, na revista La Vie.



Você está com raiva?
declaração do Papa após os ataques contra o Charlie me deixou estarrecido. Quando ele diz "Se você falar mal da minha mãe, eu lhe dou um soco", ele legitima a resposta a uma agressão escrita com uma agressão física. Não estou plenamente de acordo, e eu ainda teria preferido que tivesse ficado em silêncio. A religião não deve limitar a liberdade de expressão. Se há limites, não são dessa ordem, mas relacionados à difamação, aos atentados à privacidade, etc. E eu sei do que estou falando por ter sido perseguido muitas vezes. Mesmo por La Carte et le Territoire, eu tive direito a um processo naAlemanha movido pela associação Dignitas, favorável à eutanásia – que o editor também ganhou. (...)

Faz muito tempo que você está fascinado pela religião...
Sim. Na literatura, em meu primeiro livro, Rester Vivant (1991), que é fortemente influenciado por Paulo e sua insolência. E depois havia Les Particules Élémentaires e meu eventual batismo em La Carte et le Territoire. Mas eu já falei sobre a minha tentativa de conversão no livro escrito com Bernard-Henri Lévy, Ennemis Publics. Durante a minha infância, na casa dos meus avós, não havia nada de religião. Sem verdadeira antipatia – ao contrário dos seus amigos comunistas, que eram mais antipadres. Para eles, o Reino e o progresso eram deste mundo. Mas a religião entrou na minha vida desde aos menos aos 13 anos de idade. Um amigo da minha classe tentou me converter na época. Eu guardei a Bíblia que ele me deu. Eu a tenho lido muito nos últimos tempos. (...) Eu tenho uma visão da religião mais próxima da magia. O milagre me impressiona! O meu momento religioso favorito de todo o cinema é o final de A Palavra(Ordet), o filme de Dreyer, que termina com um milagre. Isso é o que me abala. (...) Eu quero saber se o mundo tem um organizador e como ele é organizado. Fiz estudos científicos. Há uma verdadeira curiosidade em mim pela maneira como tudo funciona. De modo que hoje eu não me defino mais como ateu. Eu me tornei agnóstico, a palavra é mais correta. Um dos amigos de meu pai lhe havia dito que ele queria ser cremado, que ele não queria uma cerimônia religiosa. Meu pai lhe respondeu: "Eu te acho muito presunçoso". De certa forma, é o sentido da aposta de Pascal.

Seguindo o seu romance, no entanto, podemos concluir que o cristianismo está morrendo...
Não, acho que não. Foi apenas o ponto de vista de um personagem, o Rediger. E há um aspecto positivo dos católicos no romance: quando os jovens vêm para assistir à leitura de Péguy. O orador de "face aberta e fraterna" impressiona o narrador. Eu tive a oportunidade de ver o rosto desses jovens em uma Jornada Mundial da Juventude, a deParis, para a qual eu fui por curiosidade. No geral, eu não estou convencido de que as perspectivas para o catolicismo sejam apenas negativas no meu livro. Hoje, a ideia de um cosmos organizado é ainda mais pertinente do que na época de Voltaire: o argumento do grande relojoeiro evidencia uma organização de todo o Universo. As descobertas científicas reforçam mais a impressão de uma organização geral do que o seu contrário... (...)

Por este romance, você foi acusado de islamofobia. Ora, podemos fazer-lhe a acusação contrária: você retoma a apologética tradicional do Islã ao dizer que o cristianismo acabou. (...) E, de qualquer maneira, você vê o Islã de forma mais favorável do que antes. O que fez você evoluir nessa visão?
A leitura do Alcorão e de vários livros, incluindo os de Bernard Lewis, e, mais recentemente, os de Gilles Kepel. E, além disso, muitas coisas atribuídas ao Islã são anteriores a ele, o que é inegável. O Islã não inventou o apedrejamento (uma das cenas mais conhecidas do Evangelho é a que diz "Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra"), nem a ablação, nem a escravidão. Eu li o Alcorão para escrever este romance. Eu tinha acabado de esmiuçá-lo antes. A questão também foi para avaliar seu grau de periculosidade. Saí bastante sossegado. Minha leitura resultou em conclusões relativamente otimistas, mesmo que na verdade eu não acho que os muçulmanos leem mais dessa maneira o Alcorão, assim como católicos não leem a Bíblia. Assim, o papel do clero é fundamental em ambos os casos. Precisamos de intérpretes, de um clero. Eu não posso imaginar a religião sem sacerdotes, sem intérpretes.

Você acredita que o problema do Islã, hoje, é que não tem intérprete competente?
Em primeiro lugar, que não tenha papa! O papa elimina os desvios. Se houvesse um papa muçulmano, a questão do jihadismo seria erradicada em 20 anos. Como castigo: quanto maior o direito de participar das orações, maior o direito de entrar nas mesquitas... Em suma, uma forma de excomunhão. Na ausência de uma tal organização, que não pode ser montada em dois anos, deve incentivar alguns imãs.

Os jovens que vão fazer a jihad fazem-no por motivos religiosos? Ou por que estamos nesta sociedade que você descreve, onde não há mais sentido? Você acredita que esses jovens têm um sentido?
Eu os levo a sério. Eu levo a sério a necessidade espiritual. Acho que é muito chato sociologizar as coisas. Nem todos os jovens estão à deriva, como estamos dispostos a dizer. Eles pertencem, certamente, à classe média. Devemos evitar vê-los apenas somente como desequilibrados. Seu desconforto é mais profundo do que isso. Em todo caso, a sedução do islamismo não tem nada a ver com a política, mas com a religião, ao contrário do que ouvimos. Para mim, esta é claramente uma variante da interpretação do Islã. O senso comum está do meu lado: tivemos ocasionalmente mártires na política, mas ainda é muito mais comum na religião...

O que você diria para aqueles que acusam você de agitar a bandeira vermelha da islamização?
Aqueles que gostariam que eu me sintisse responsável? Bem, não... Não, não sou. Observo um enfraquecimento intelectual em alguns dos meus interlocutores. Conceitos claramente distinguidos antes, como islamofobia e racismo, não o são mais.

A própria palavra islamofobia é polêmica. Como você interpreta isso?
O fato é que meu livro não é islamofóbico. São os jihadistas que procuram provocar a islamofobia no verdadeiro sentido da palavra, isto é, para provocar o medo. Todas as suas ações não têm outro propósito.

Você acredita na necessidade da religião como um sistema para ligar a pessoas?
Sim, a religião ajuda muito a formar sociedade. Como Auguste Comte, eu penso que a longo prazo, uma sociedade não pode subsistir sem religião. E, de fato, vemos hoje sinais de erosão de um sistema que surgiu há alguns séculos. Mas eu acredito no retorno do religioso. Embora eu não saiba te dizer por que isso acontece agora. Mas eu sinto isso. Em todas as religiões. No judaísmo, eu vejo que os jovens são mais crentes e praticantes que seus pais. Entre os católicos, há sinais – a Jornada Mundial da Juventude, a Manif pour tous [referência à ONG Manifestação para todos, que reúne grupos contrários ao casamento gay na França].
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 * A entrevista é de Marie Chaudey e Jean-Pierre Denis e publicada no sítio da revista francesa La Vie, 28-01-2015. A tradução é de André Langer.
Fonte: IHU online, 29/01/2015

" Vou sair de Cerveró no Carnaval "

Vou sair de Cerveró no Carnaval

Meu filho aproveitou a tempestade para fazer um boneco de neve na sacada. Os olhos e o nariz ele montou com três toquinhos de cenoura. Um olho ficou bem mais baixo do que o outro, aí é claro que o boneco foi batizado de Cerveró. Agora trabalho com o Cerveró me encarando com seu olho esquerdo. O direito, não. O direito fita, triste, a parede nua.

Juro que foi só depois de chamarmos o boneco de Cerveró que o Cerveró de carne e osso, não o de neve e cenoura, anunciou que vai processar quem fizer máscaras de Cerveró no Carnaval. Será que o nosso boneco de neve rende processo? Levei medo. Tenho vontade de pedir para o meu filho chutá-lo sacada abaixo, mas o guri se afeiçoou a ele. Eu mesmo, confesso, simpatizei com Cerverozinho. Gostei tanto da pequena criação do meu filho, que acho que ela é bonita. Tem um olho sempre a boiar e outro que agita; tem um olho que não está, meus olhares evita, e outro olho a me arregalar sua pepita.

Mas nem toda a poesia do Chico Buarque haverá de consolar o Cerveró humano. Ele está decidido a levar quem gozar dele para as barras dos tribunais. O que, francamente, me deixa muitíssimo intrigado. O homem foi preso, acusado de ter participado do maior esquema de corrupção da história do Brasil, pode ser julgado, condenado e talvez acabe passando algum tempo na cadeia. E está preocupado com as sacanagens dos foliões no Carnaval!

Talvez Cerveró não tenha sido culpado por toda essa roubalheira, talvez a presidente da Petrobras também não tenha sido, talvez ninguém no governo soubesse de nada do que estava acontecendo na maior empresa brasileira, nem a presidente Dilma, que, além de ser presidente da República pela segunda vez, foi presidente do conselho da empresa, ministra das Minas e Energia, chefe da Casa Civil e “mãe do PAC” na gestão de Lula. É.

Talvez todos eles sejam inocentes. Pode ser. Quem sabe? Mas como eles não viram tudo isso que estava acontecendo? Bilhões sumindo, e ninguém notou... Para onde estavam olhando? A metade dos seus olhares estava chamando para a luta, aflita, e metade queria madrugar na Bodeguita, como bons simpatizantes de Cuba que todos são? É isso? Olhavam alhures e não viam o que se passava sob pelo menos um de seus olhos?

O que podem fazer o contribuinte, o eleitor, o cidadão brasileiro com tudo isso, já que todo mundo é inocente? Protestar não adianta. Reclamar? Pra quem? Chorar? Espernear?


Não, não há muito o que fazer. A não ser... brincar. Gozar disso tudo. Então, Cerveró, me desculpe, mas eu não vou chutar o Cerverozinho da sacada e vou, sim, me fantasiar de Cerveró no Carnaval. E vou convocar meus amigos, todos, a se fantasiarem de Graças Fosters, de Paulos Robertos Costas, de doleiros, de Dilmas. Vamos nos fantasiar deles, que é o que nos resta! Vamos tirar agora mesmo essa nossa fantasia de palhaço.