quinta-feira, 31 de outubro de 2013

" Pão , livros e manteiga "


Marcelo Rocha*
Escrever para quê? Para quem? Não temos público. Uma edição de 2 mil exemplares leva anos para esgotar-se, e o nosso pensamento, por mais original e ousado que seja, jamais se livrará no espaço amplo.

O desabafo acima não é de um escritor iniciante, diante da escassez de leitores, ou o brado de algum editor saudosista do formato do livro impresso, em tempos de difusão de outros suportes de leitura. Quem chamava a atenção para a falta de um público leitor era o romancista brasileiro Aluísio Azevedo, no final do século 19.
Azevedo tinha razão em sentir-se frustrado. A leitura era rarefeita. Segundo dados do primeiro recenseamento do império, de 1872, 84% da população, entre livres e escravos, era analfabeta. Nessa realidade, como haveria de prosperar a literatura?
O curioso é que o autor de O Cortiço era, segundo o jornalista Valentim Magalhães, o único escritor brasileiro que ganhava o pão com seus escritos, embora ressaltasse que as letras, no Brasil, ainda não davam para a manteiga.

Na mesma época, Machado de Assis, que também sofria com a tímida repercussão de seu Memórias Póstumas, foi aconselhado pelo cunhado a não desanimar, pois, mais cedo ou mais tarde, a justiça lhe seria feita.

Mas será que a justiça, de fato, foi feita e o panorama da leitura, no Brasil, sofreu alguma mudança substancial? Em recente encontro na Jornada Nacional de Literatura, o secretário do Plano Nacional do Livro e da Leitura, José Castilho Neto, declarou que apenas 26% dos alfabetizados são leitores plenos, isto é, capazes de compreender o conteúdo de textos lidos. Ademais, a nossa média de leitura ainda é de 1,3 livro por ano. Diante disso, o Ministério da Cultura estabeleceu, como prioridade, políticas para a formação de pessoas como mediadoras de leitura.

No entanto, talvez uma alternativa seja levar em consideração e estimular outras formas de leitura e não apenas aquelas reconhecidas a partir de uma tradição historiográfica literária. Por exemplo, segundo a pesquisadora Márcia Abreu, algumas vendagens da literatura de cordel chegaram a atingir a marca de 200 mil exemplares, o que, comparando com Gabriela, de Jorge Amado, que vendeu 20 mil exemplares, em sua primeira edição, é uma cifra considerável.

Hoje, o texto linear e canônico pode conviver com formas simultâneas de integração entre imagem e oralidade, transformando a percepção dos signos e da leitura. Isso não significa que os livros, em seu formato tradicional, tenham de ser abandonados, mas implica pensar, lembrando Camões, que: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” – e, nesse caso, mudam-se, também, os suportes.

De certo modo, a própria Feira do Livro de Porto Alegre pode ser um estímulo importante a todos esses modos de leitura. E são esses múltiplos olhares e significados que poderão ser partilhados nas conversas cotidianas na Praça da Alfândega e no Cais do Porto, ultrapassando as páginas dos livros e tornando-se tão essenciais para nossa fome de conhecer e de conviver quanto o pão e a manteiga.
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*Professor da Universidade Federal do Pampa, campus São Borja
Fonte: ZH on line, 31/10/2013

" E como ficam os pacientes do SUS ?

ARTIGOS ZH - Gilberto Schwartsmann*


A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) decidiu pela obrigatoriedade da incorporação de mais de 80 procedimentos para beneficiários de planos de saúde individuais e coletivos a partir de janeiro do próximo ano. Com isto, mais de 30 novos medicamentos de uso oral, utilizados no tratamento de pacientes com câncer, bem como vários exames diagnósticos, passarão a ter cobertura pelos chamados planos de saúde.

Diz o ministro da Saúde que se trata de uma “mudança de paradigma, que dará ao paciente com câncer melhor qualidade de vida!”. É óbvio que devemos comemorar esta conquista, pois isto significa um inestimável benefício aos pacientes com câncer que possuem seguros privados.

Infelizmente, a medida deixa de fora ao menos 75% dos pacientes com câncer do país, que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS). Estes continuarão humilhados, nas longas filas de espera, onde tudo é difícil. E com direito a apenas um número restrito de medicamentos que o governo hoje oferece.

Minha experiência no atendimento de pacientes com câncer não é pequena. São décadas dedicadas ao serviço público. Muitos pacientes passam por uma verdadeira via-crúcis até iniciar o tratamento. As estruturas administrativas da saúde são lentas, burocráticas e impessoais. Perde-se um tempo precioso com a falta de eficiência do sistema.

O pobre, que já passou por esta experiência com alguém da família, sabe bem a que me refiro. No Brasil real, depois de uma longa e sofrida espera, os exames e tratamentos oferecidos pelo SUS aos pacientes com câncer nem sempre são tão acessíveis e os mais modernos. Além disto, a remuneração paga pelo governo aos hospitais públicos é muito abaixo do necessário, com reflexos na qualidade do atendimento e obrigando os gestores a fazer milagres para não ter de fechar suas portas.

Chega-se ao ridículo de médicos renomados, em instituições acadêmicas, buscarem a participação dos pacientes em tratamentos experimentais, não tanto pelo entusiasmo com as novas perspectivas científicas, mas pelo fato de a pesquisa garantir ao paciente, de forma gratuita, o acesso a um medicamento já disponibilizado pelos planos de saúde privados, mas ainda indisponível pelo SUS.

Sugiro que o Ministério da Saúde estenda esta nova vantagem aos brasileiros mais pobres, que dependem exclusivamente do SUS. Do contrário, estes continuarão vivendo a humilhação de sempre. É impossível comemorar essa conquista tão importante da minoria, sem pensar no sofrimento da maioria.

Por que não aproveitar o momento e melhorar o atendimento de todos os pacientes com câncer? Dizem os economistas que isto significaria, mensalmente, um acréscimo de custo de apenas R$ 0,39 por usuário. Não seria prejuízo para o governo. Pelo contrário, seria investimento. E reforçaria o seu compromisso de realmente melhorar a vida das pessoas.

Que bela bandeira exigir igualdade de tratamento para a maioria mais pobre e sofrida que depende unicamente do SUS!
*MÉDICO E PROFESSOR

" Os sem gravata "

                                  MARIO CORSO



Sou avesso a rituais. Nada me aborrece mais do que casamentos, formaturas, missa para qualquer coisa, aniversários pomposos, tudo o que pede protocolo e roupa apropriada. Vou, mas como gato no cabresto. Admito que sou um chato, que dificilmente entro na frequência das emoções alheias. Pelo menos não estou sozinho, meu desconforto traz algo da minha geração, ou pelo menos, parte dela. Deixem dizer algo em nossa defesa: não se trata de misantropia gratuita.

Quem nasceu nos anos 50 e 60 viveu, fez, ou sofreu a revolução dos costumes. Depois dessa revolução, o mundo nunca mais foi o mesmo. Graças a ela, a vida ficou menos hipócrita, mais transparente, mais livre da opinião alheia. Mas num quesito esse movimento tomou um rumo que não imaginávamos: os rituais. Pensávamos que eles iriam declinar, que o importante era viver e não representar.

Nos anos 70 e 80, eles andaram em baixa. Eu recusei a crisma, minha formatura foi em gabinete e, para os padrões de hoje, meu casamento foi espartano. Mas voltaram redobrados, hoje temos formatura togada de 1º e 2º graus... quiçá de jardim de infância. Qualquer aniversário de criança é principesco, os casamentos são todos apoteóticos. A simplicidade foi esquecida.

Para usar uma gíria antiga, o mundo voltou a ser “careta”? Não creio, aliás, foi só nesse quesito que parece que engatamos a ré. Questões sobre igualdade de gênero, ou melhor, a dissolução das certezas sobre os gêneros seguem avançando. Para meu gosto, o mundo não é lá grande coisa, mas está mais arejado. O que aconteceu então?

A minha geração não levou em conta os avisos de Guy Debord quando escreveu A Sociedade do Espetáculo. Ele abordava a espetacularização da política, e a mídia tratando tudo como um show. Ora, o desdobramento disso para a vida privada é uma decorrência lógica desse processo. Para o autor, a vida esvaziou-se de sentido e inflacionou-se de imagens.

Creio que os rituais não esmoreceram, e até ganharam mais prestígio, por fornecer essas imagens que atestam que a vida acontece. Inclusive a palavra ritual nem deveria ser usada, pois eles já não marcam uma passagem, não fazem uma descontinuidade na vida, um antes e um depois diferentes. Talvez sejam feitos em uma dose mais forte até para fazer valer algo que não consiste.

Minha geração se sente traída ao ver essas cerimônias desmedidas e por isso fica tão mal-humorada quando nos exigem a gravata. Eu já estou mais conformado, talvez esses eventos não estejam esvaziados de sentido e, sim, sejam uma nova forma de experiência, nem melhor nem pior, outra. O mundo segue, não vou deixar de viver as emoções de meus amigos e familiares. Tento deixar de ser casmurro, já comprei as gravatas, mas ainda não sei dar nó.

" A crítica sufocada "

                                                                EDITORIAIS ZH

O governo argentino desferiu um golpe mortal na liberdade de expressão ao enquadrar o Grupo Clarín na chamada Lei de Meios, chancelada esta semana pela Suprema Corte do país. Sob o rótulo de democratização dos meios de comunicação, a legislação desestrutura e fragiliza a independência do principal grupo do país num momento em que o governo da presidente Cristina Kirchner, em queda de popularidade, direciona investimentos publicitários para as empresas alinhadas com sua administração.

A referida lei, promulgada em 2009, teve claramente um objetivo bem menos nobre do que a alegada tentativa de pulverizar o controle dos veículos e evitar monopólios. O que o governo pretendeu foi atingir especificamente o Clarín, que atua de forma independente e não se alinha aos interesses da Casa Rosada.

O constrangimento criado tem exemplos na vizinhança e segue a lógica de regimes incapazes de conviver com o questionamento da imprensa e das mais variadas formas da liberdade de expressão. Por isso a situação argentina não pode ser desvinculada de um contexto de democracias autoritárias da América Latina, como Venezuela e Equador, que também tentam sufocar seus críticos, estando ou não nos meios de comunicação. O argumento do kirchnerismo, de que a lei evita monopólios, não se sustenta.

Há, sim, concorrência no setor na Argentina, e essa tem sido potencializada, ali e em todo o mundo civilizado, pelas novas mídias virtuais, que desafiam modelos consagrados, constrangem regimes antidemocratas e facilitam a produção e a transmissão de informação e entretenimento.

É evidente que o incômodo do qual o governo tenta se livrar é o da imparcialidade e da diversidade, ao mesmo tempo em que, como alertam organismos internacionais ligados ao jornalismo, contempla com fartas verbas da propaganda oficial e outros afagos os setores alinhados às suas ambições. A lei que atingiu o Clarín é a expressão do poder discricionário do Estado contra uma empresa punida por sua independência.

A decisão da Suprema Corte deve ser acatada, como todas as deliberações da Justiça, o que não significa obediência sem questionamentos. O grupo estuda a possibilidade de recorrer a cortes internacionais, como último recurso para a preservação não só de sua estrutura e da sua história, mas do direito de continuar atuando com autonomia e imparcialidade. A tentativa de silenciar parte da imprensa, antes de provocar prejuí-zos econômicos a um determinado grupo empresarial, significa uma afronta a todos os que buscam informações, em quaisquer veículos, como exercício permanente da liberdade de expressão.

" O tornozelo e o calcanhar "

ARTIGOS ZH - David Medina da Silva*

 




Depois de observar tantos crimes praticados pelos portadores de tornozeleiras eletrônicas, não tenho dúvida quanto ao acerto da decisão do Ministério Público de não participar do termo de cooperação para implantação do programa no Rio Grande do Sul. Nunca fomos contra o emprego dessa tecnologia. Apenas não concordamos com a sua implantação em situações fora das hipóteses legais, como aconteceu.

O programa prevê a concessão de prisão domiciliar, com monitoração eletrônica, para presos em regime semiaberto. Ocorre que o regime semiaberto abriga toda sorte de delinquentes, incluindo assaltantes e traficantes, para os quais a prisão domiciliar constitui verdadeiro incentivo à prática de crimes.

Tão certo quanto líderes comandam o crime de dentro das casas prisionais, é verdade que o fazem com muito mais desenvoltura em suas próprias casas. Então, razões de segurança não justificam adequadamente o programa em nosso Estado.

Talvez se concebam razões humanitárias, focadas na falta de vagas nas prisões. Sendo assim, uma solução que esvazia presídios e superlota as ruas de criminosos não atentaria igualmente contra direitos fundamentais da população brasileira?

Enfim, a monitoração eletrônica não disse a que veio. Enquanto presos não condenados esperam encarcerados suas sentenças, os condenados vão para casa usufruir de prisão domiciliar. E os crimes praticados pelos portadores do aparato revelam que a falsa ideia de uma “fiscalização pelo tornozelo” é mais um “calcanhar de aquiles” da nossa segurança pública.

*PROMOTOR DE JUSTIÇA

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

" Duas forças em tensão : a auto-afirmação e a integração "



Leonardo Boff*
Biologicamente nós humanos, somos seres carentes (Mangelwesen). Não somos dotados de nenhum órgão especializado que nos garanta a sobrevivência ou nos defenda de riscos, como ocorre com os animais. Alguns biólogos chegam a dizer que somos “um animal doente”, um “faux pas”, (um passo em falso), uma “passagem” (Übergang) para outra coisa, por isso nunca fixado, inteiros mas incompletos.



Tal verificação nos obriga a continuamente a garantir a nossa vida, mediante o trabalho e a inteligente intervenção na natureza. Deste esforço, nasce a cultura que organiza de forma mais estável as condições infra-estruturais e também humano-espirituais para vivermos humanamente em sociedade.



Acresce ainda outro dado, presente também em todos os seres do universo, mas que no nível humano ganha especial relevância.
 Vigoram duas forças: a primeira é auto-afirmação, a segunda, a integração. Elas atuam sempre em conjunto num equilíbrio difícil e sempre dinâmico.



Pela força da auto-afirmação cada ser se centra em si mesmo e seu instinto é conservar-se, defendendo-se contra todo tipo de ameaça contra sua integridade e a sua vida. Ninguém aceita morrer. Quer viver, evoluir e se expandir. Essa força explica a persistência e a subsistência do indivíduo.



Precisamos neste ponto superar totalmente o darwinismo social segundo o qual somente os mais fortes e adaptáveis triunfam e permanecem. Essa é uma meia verdade que está na contramão do processo evolucionário. Este não privilegia os mais fortes e adaptáveis. Se assim fora, os dinossauros estariam ainda entre nós. O sentido da evolução é permitir que todos os seres, também os mais vulneráveis, expressem virtualidades latentes dentro da evolução. Esse é o valor da interdependência de todos com todos e da solidariedade cósmica. Todos, fracos e fortes, se entreajudam para coexistir e coevoluir.



Pela segunda força, a da da integração, o indivíduo se descobre envolto numa rede de relações, sem as quais, sozinho como indivíduo, não viveria nem sobreviveria. Existe o individuo mas ele vem de uma família, se insere num grupo de trabalho, mora numa cidade e habita um país com um tipo de organização social. Ele está ligado a toda esta cadeia de relações. Assim todos os seres são interconectados e vivem uns pelos outros, com os outros e para os outros. O indivíduo se integra, pois, por natureza, num todo maior. Mesmo que o indivíduo morra, o todo garante que a espécie continue permitindo que outros representantes venham a nos suceder.



Sabedoria humana é reconhecer o fato de que chega certo momento na vida no qual a pessoa deve se despedir para deixar o lugar, até fisicamente, a outros que virão.



O universo, os reinos, os gêneros e as espécies e também os indivíduos humanos se equilibram entre estas duas forças: a da auto-afirmação do indivíduo e a da integração num todo maior. Mas esse processo não é linear e sereno. Ele é tenso e dinâmico. O equilíbrio das forças nunca é um dado, mas um feito a ser alcançado a todo o momento.



É aqui que entra o cuidado responsável. Se não cuidarmos ou pode prevalecer a auto-afirmação do indivíduo à custa de uma insuficiente integração e então predomina a violência e a autoimposição ou, ao contrário, pode triunfar a integração a preço do enfraquecimento e até anulação do indivíduo e então ganha a partida o coletivismo e o achatamento das individualidades.
O cuidado aqui se traduz na justa medida e na autocontenção para não privilegiar nenhuma destas forças.



Efetivamente, na história social humana, surgiram sistemas que ora privilegiam o eu, o individuo, seu desempenho, sua capacidade de competição e a propriedade privada como é o caso da ordem capitalista ou ora prevalece o nós, o coletivo, a cooperação e a propriedade social como é o caso do socialismo real que foi ensaiado na União Soviética e ainda persiste, em parte, na China.



A exacerbação de uma destas forças em detrimento da outra, leva a desequilíbrios, conflitos, guerras e tragédias sociais e ambientais. Com referência ao meio ambiente tanto o capitalismo quanto o socialismo foram depredadores e pioraram as condições de vida da maioria das populações. Em ambos os sistemas o cuidado responsável desapareceu para dar lugar à vontade de poder, ao enfrentamento entre ambos e até a brutalidade nas relações mundias visando a corrida armamentista e a dominação do curso do mundo.



Qual é o desafio que se dirige ao ser humano?
 
É o cuidado reponsável de buscar o equilíbrio construído conscientemente e fazer desta busca um propósito, uma atitude de base e até um projeto político.
 
Portador de consciência e de liberdade, o ser humano possui esta missão que o distingue dos demais seres. Só ele pode ser um ser ético, um ser que cuida de si e que se responsabiliza pela comunidade de vida.
 
Ele pode ser hostil à vida, colocar-se, como indivíduo dominador, sobre as coisas. Mas pode ser também o anjo bom que se sente integrado na comunidade de vida, junto com as coisas.
Depende de seu empenho manter o equilíbrio entre a auto-afirmação e a integração num todo e não permitir que forças dilaceradoras dirijam a história.



Por ser ético, coloca-se ao lado daqueles que tem dificuldades em se auto-afirmar e assim sobreviver e impedir uma integração que destrói as individualidades em nome de um coletivo amorfo.
      Eis uma síntese sempre a ser construida.

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* Teólogo. Filósofo. Escritor. Ele escreveu: O despertar da águia: o sim-bólico e o dia-bólico na construção do real, Vozes 2010.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/10/27/duas-forcas-em-tensao-a-auto-afirmacao-e-a-integracao/

" Alegria Compulsória "


Montserrat Martins*
pré-sal, para quem mesmo?
O Brasil é um ótimo lugar para se fazer um país”,
frase do Luís Fernando Veríssimo, segue sendo nossa melhor definição.
“País continente” também é uma expressão verdadeira: somos vários povos diferentes que dividem entre si um grande espaço, como aqueles vizinhos com algum grau de parentesco, que vivem em várias casas num mesmo pátio.
Basta passar um tempo no Rio Grande do Sul, outro em Minas Gerais e outro na Bahia para você perceber que esteve em três países.
Uma vez escrevi sobre a hospitalidade mineira, aquele jeito atencioso que eles tem de conversar, uma característica marcante, notável, que chama a atenção de qualquer visitante. Pensando agora em como definir a “alma” baiana, a expressão que me veio à mente foi “alegria compulsória”. Salvador é muita música alta nas ruas e nas casas, ambientes de agitação sonora, expansivos, que tiram qualquer um da introspecção. O oposto da solidão campeira sulista, do silêncio que permite ouvir o vento minuano, da terra de O Tempo e o Vento (não perca o filme, por sinal).

A Bahia é mais Brasil que o sul, em vários sentidos. Uma curiosidade simbólica é que o mapa baiano é quase idêntico ao brasileiro, como se fosse sua miniatura, pulsando no coração do país, do lado esquerdo do peito do mapa quando ele nos olha de frente. Todos os sociólogos que decifraram o Brasil concordam num ponto essencial: as marcas da colonização seguem incrustadas profundamente na nossa alma, nos levando a nos negarmos, nos contradizermos como um povo onde “santo de casa não faz milagre” e tudo que vem de fora parece mais bonito. Ao mesmo tempo, temos uma alegria que falta aos “civilizados” europeus, seja por nossa natureza selvagem e mestiça, seja pela sensação de estarmos recém nos libertando da escravidão, ao menos a liberdade de ir e vir, já que carregamos ainda dentro de nós a mentalidade do dominado, daquele que obedece aos seus coronéis.

No Brasil ainda há “donos de capitanias hereditárias”; em contraste, o Rio Grande do Sul tem alma oposicionista, é onde os governadores sequer se reelegem. O senso crítico sulista, mistura de muita informação com aquele gosto pela briga confessado pelo Capitão Rodrigo, esteve presente nas mobilizações que sacudiram o país em junho, onde cartazes estimulavam a lutar contra as tarifas “como em Porto Alegre”. Amigos baianos me contaram das manifestações lá, pois mesmo um povo alegre, irreverente e festivo, pode despertar para os protestos, para a rebeldia.

Os clichês contra baianos são contra nós mesmos, contra a alma nacional, pois nada é mais brasileiro que a boa fé, a esperança, o misticismo, a espontaneidade instintiva, a extroversão e a alegria da boa terra. Lembro de um amigo gaúcho perguntando para a visitante baiana se “tu canta?”, quer dizer, os clichês estão na nossa mente e são mesmo irresistíveis. Também incluem o “complexo de vira-lata” que Nelson Rodrigues identificou na alma nacional, que tem um lado de auto-desvalia e outro de auto-complacência. Pois como ele também disse, “o Brasil é o único país do mundo onde bicheiro joga, traficante cheira e prostituta goza”.

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, do Caetano, é nossa identidade colonizada, com alguns traços de rebeldia. Lembrei de tudo isso no leilão de Libra. Nossa estatal, Petrobras, até então propagandeada como competente, poderosa, na hora do “filé” ficou só com uma parte. Dizem os Senhores que isso era inevitável, que não tínhamos mesmo a capacidade dos de fora. A mídia e o governo federal estão de acordo, não era para o nosso bico. Mas vi baianos desconfiados, dessa vez.
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Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.

" Da Falsidade "


Luiz Felipe Pondé*

Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas

Dias sombrios. Nesses momentos, volto às minhas origens filosóficas, o jansenismo francês do século 17 e seu produto essencial, "les moralistes" (que em filosofia nada tem a ver com "moralista" no senso comum). Os moralistas franceses eram grandes especialistas do comportamento, da alma e da natureza humana. Nietzsche, Camus, Bernanos e Cioran eram leitores desses gênios da psicologia. Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère foram os maiores moralistas.

O Brasil, que sempre foi violento, agora tem uma nova forma de violência, aquela "do bem". E, aparentemente, quase todo mundo supostamente "inteligente" assume que é chegada a hora de quebrar tudo. Nada de novo no fronte: os seres humanos sempre gostaram da violência e alguns inventam justificativas bonitas pra serem violentos.

Impressiona-me a face de muitos desses ativistas que encheram a mídia nas ultimas semanas. Olhar duro, sem piedade, movido pela certeza moral de que são representantes "do bem". Por viver a milhares de anos-luz de qualquer possibilidade de me achar alguém "do bem", desconfio profundamente de qualquer pessoa que se acha "do bem". Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir.

A fuga do mundo ("fuga mundi") sempre foi um tema filosófico, inclusive entre os jansenistas, conhecidos como "les solitaires" por buscarem viver longe do mundo. Eles tinham uma visão da natureza humana pautada pela suspeita da falsidade das virtudes. O nome "jansenista" vem do fato de eles se identificarem com a versão "dura" (sem a graça de Deus, o homem não sai do pecado) da teoria da graça agostiniana feita pelo teólogo Cornelius Jansenius, que viveu no século 16.

Pascal, La Fontaine e Racine eram jansenistas. Aliás, grande parte da elite econômica e intelectual francesa da época foi jansenista. Por isso, apesar de Luís 13 e 14 (e de seus cardeais Richelieu e Mazarin) e da Igreja os perseguirem, nunca conseguiram de fato aniquilá-los.

Hoje, por termos em grande medida escapado das armadilhas morais do cristianismo (não que eu julgue o cristianismo um poço de armadilhas, muito pelo contrário), tais como repressão do outro, puritanismo, intolerância, assumimos que escapamos da natureza humana e de sua vocação irresistível à repressão do outro, ao puritanismo e à intolerância.

Elas apenas trocaram de lugar. A face do ativista trai sua origem no inquisidor.

Uma das maiores obras do jansenismo é "La Fausseté des Vertus Humaines" (a falsidade das virtudes humanas), de Jacques Esprit, do século 17. Ele foi amigo pessoal do Conde de La Rochefoucauld. Alguns especialistas consideram o conde um discípulo de Esprit. A edição da Aubier, de 1996, traz um excelente prefácio do "jansenista contemporâneo" Pascal Quignard.

O pressuposto de Esprit é que toda demonstração de virtude carrega consigo uma mentira e que as pessoas que se julgam virtuosas são na realidade falsas, justamente pela certeza de que são virtuosas.
A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo. Os jansenistas sempre disseram que os que se julgam virtuosos são na verdade vaidosos. Suspeito que o que vi nos olhos desses ativistas nessas últimas semanas era a boa e velha vaidade.

Mas hoje, como saiu de moda usar os pecados como ferramentas de análise do ser humano e passamos a acreditar em mitos como dialética, povo e outros quebrantos, a vaidade deixou de ser critério para analisarmos os olhos dos vaidosos. Melhor para eles, porque assim podem ser vaidosos sem que ninguém os perceba. Vivemos na época mais vaidosa da história.

"A verdade não é primeira: ela é uma desilusão; ela é sempre uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela (a desmistificação) desnuda", afirma Pascal Quignard no prefácio do livro de Esprit. Eis a ideia de moral no jansenismo: a verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo.

Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas.
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.

domingo, 27 de outubro de 2013

" Toda criança nasce cientista "

 


Marcelo Gleiser*
Para as crianças, a vida é um grande experimento; até entrarem na escola ou serem 'pegas' pelos pais
Nesta semana, estive em Brasília participando da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. O tema deste ano, de forma muito propícia, é "Ciência, Saúde e Esportes". Aproveitando que o Brasil será palco dos maiores eventos desportivos do planeta, nada melhor que mostrar as alianças e a interdependência entre os esportes, a saúde e a ciência.

O centro das atividades é o Pavilhão Central no Parque da Cidade, onde foram montadas várias exibições, algumas bem avançadas, usando tecnologia virtual para integrar o visitante em algum jogo, por exemplo, futebol e vôlei.

Mas o que me empolgou logo na chegada foi ter visto centenas, talvez milhares de crianças, trazidas por escolas. Me disseram que eram mais de 10 mil por dia e que atividades ligadas ao evento estão ocorrendo em 800 municípios do país.

As crianças menores, do jardim de infância, iam circulando pelo espaço das exposições, de mãos dadas e olhos arregalados, olhando para tudo, tentando tocar tudo. Algumas jamais esquecerão a visita a um mundo tão diferente da realidade em que vivem, onde a ciência é simplesmente desconhecida.

Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo; feliz de ver que quando o governo monta algo de porte para trazer ciência ao público, o público vem. Triste por entender que esse tipo de evento é raro, e que a maioria das crianças nunca terá oportunidade de visitá-lo.

O grande físico Isidor Rabi, vencedor do prêmio Nobel, costumava dizer que os cientistas são os Peter Pans da sociedade, aqueles que não querem crescer, que passam a vida perguntando "por quê". Vendo as crianças na exposição, olhando para tudo, tocando tudo, participando das atividades com entusiasmo, fica claro que Rabi tinha razão.

Qualquer pai e mãe sabem bem que criança é exploradora nata; botando o dedo aqui e ali, comendo terra, pegando formiga, trepando em árvore, subindo e descendo a mesma escada dez vezes até desenvolver uma melhor percepção da gravidade e melhorar sua habilidade motora. Para uma criança, a vida é um grande experimento, uma grande aventura de descoberta.

Até entrarem na escola ou serem "pegas" pelos pais.
"Não faz isso! Solta! Olha o degrau! Cuidando com a tomada! Você vai cair daí." Como pai de cinco, sei que sem o nosso cuidado as crianças correm mesmo risco de se machucar. Mas cuidar não é o mesmo que reprimir o espírito único que têm de experimentar o mundo para poder entendê-lo. O mesmo acontece nas escolas, que acabam sendo fábricas de conformismo onde todos devem fazer a mesma coisa, onde a criança mais curiosa é reprimida e, salvo casos raros, calada.

Temos muito a aprender com as crianças. E, se queremos de fato transformar o Brasil numa potência inovadora, onde tecnologia e patentes não são compradas do exterior mas criadas aqui, temos que dar asas a esse espírito criativo das crianças, que são grandes inventoras e sonhadoras.

Isso não deve apenas ocorrer nas escolas; a educação começa em casa, com os pais se engajando no processo criativo das crianças. E o melhor de tudo é que ao ensinarmos também aprendemos. E colorimos a vida de novidade e aventura, ficando um pouco mais Peter Pans.
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" Há de se cuidar da amizade e do amor "


Leonardo Boff*
A amizade e o amor constituem as relações maiores e mais realizadores que o ser humano, homem e mulher, pode experimentar e desfrutar. Mesmo o místico mais ardente só consegue uma fusão com a divindade através do caminho do amor. No dizer de São João da Cruz, trata-se da experiência da “a amada(a alma) no Amado transformada”.

Há vasta literatura sobre estas duas experiências de base. Aqui restringimo-nos ao mínimo. A amizade é aquela relação que nasce de uma ignota afinidade, de uma simpatia de todo inexplicável, de uma proximidade afetuosa para com a outra pessoa. Entre os amigos e amigas se cria uma como que comunidade de destino. A amizade vive do desinteresse, da confiança e da lealdade. A amizade possui raízes tão profundas que, mesmo passados muitos anos, ao reencontrarem-se os amigos e amigas, os tempos se anulam e se reatam os laços e até se recordam da última conversa havida há muito tempo.

Cuidar da amizade é preocupar-se com a vida, as penas e as alegrias do amigo e da amiga. É oferecer-lhe um ombro quando a vulnerabilidade o visita e o desconsolo lhe oculta as estrelas-guias. É no sofrimento e no fracasso existencial, profissional ou amoroso que se comprovam os verdadeiros amigos e amigas. Eles são como uma torre fortíssima que defende o frágil castelo de nossas vidas peregrinas.

A relação mais profunda é a experiência do amor. Ela traz as mais felizes realizações ou as mais dolorosas frustrações. Nada é mais misterioso do que o amor. Ele vive do encontro entre duas pessoas que um dia cruzarem seus caminhos, se descobriram no olhar e na presença e viram nascer um sentimento de enamoramento, de atração, de vontade de estar junto até resolverem fundir as vidas, unir os destinos, compartir as fragilidades e as benquerenças da vida. Nada é comparável à felicidade de amar e de ser amado. E nada há de mais desolador, nas palavras do poeta Ferreira Gullar, do que não poder dar amor a quem se ama.

Todos esses valores, por serem os mais preciosos, são também os mais frágeis porque mais expostos às contradições da humana existência.

Cada qual é portador de luz e de sombras, de histórias familiares e pessoais diferentes, cujas raízes alcançam arquétipos ancestrais, marcados por experiêncis bem sucedidas ou trágicas que deixaram marcas na memória genética de cada um.

O amor é uma arte combinatória de todos estes fatores, feita com sutileza que demanda capacidade de compreensão, de renúncia, de paciência e de perdão e, ao mesmo tempo, comporta o desfrute comum do encontro amoroso, da intimidade sexual, da entrega confiante de um ao outro. A experiência do amor serviu de base para entendermos a natureza de Deus: Ele é amor essencial e incondicional.

Mas o amor sozinho não basta. Por isso São Paulo em seu famoso hino ao amor, elenca os acólitos do amor sem os quais ele não consegue subsistir e irradiar. O amor tem que ser paciente, benigno, não ser ciumento, nem gabar-se, nem ensoberbecer-se, não procurar seus interesses, não se ressentir do mal…o amor tudo sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta…o amor nunca se acaba(1Cor 13, 4-7). Cuidar destes acompanhates do amor é fornecer o húmus necessário para que o amor seja sempre vivo e não morra pela indiferença. O que se opõe ao amor não é o ódio mas a indiferença.

Quanto mais alguém é capaz de uma entrega total, maior e mais forte é o amor. Tal entrega supõe extrema coragem, uma experiência de morte pois não retém nada para si e mergulha totalmente no outro. O homem possui especial dificuldade para esta atitude extrema, talvez pela herança de machismo, patriarcalismo e racionalismo de séculos que carrega dentro de si e que lhe limita a capacidade desta confiança extrema.

A mulher é mais radical: vai até o extremo da entrega no amor, sem resto e sem retenção. Por isso seu amor é mais pleno e realizador e, quando se frustra, a vida revela contornos de tragédia e de um vazio abissal.

O segredo maior para cuidar do amor reside no singelo cuidado da ternura. A ternura vive de gentileza, de pequenos gestos que revelam o carinho, de sacramentos tangíveis, como recolher uma concha na praia e levá-la à pessoa amada e dizer-lhe que, naquele momento, pensou carinhosamente nela.

Tais “banalidades” tem um peso maior que a mais preciosa jóia. Assim como uma estrela não brilha sem uma atmosfera ao seu redor, da mesma forma, o amor não vive sem um aura de enternecimento, de afeto e de cuidado.

Amor e cuidado formam um casal inseparável. Se houver um divórcio entre eles, ou um ou outro morre de solidão. O amor e o cuidado constituem uma arte. Tudo o que cuidamos também amamos. E tudo o que amamos também cuidamos.

Tudo o que vive tem que ser alimentado e sustentado. O mesmo vale para o amor e para o cuidado. O amor e o cuidado se alimentam da afetuosa preocupação de um para com o outro. A dor e a alegria de um é a alegria e a dor do outro.

Para fortalecer a fragilidade natural do amor precisamos de Alguém maior, suave e amoroso, a quem sempre podemos invocar. Daí a importância dos que se amam, de reservarem algum tempo de abertura e de comunhão com esse Maior, cuja natureza é de amor, aquele amor, que segundo Dante Alignieri da Divina Comédia “move o céu e as outras estrelas” e nós acrescentamos: que comove os nossos corações.
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* Leonardo Boff é filósofo, teólogo e autor de O Cuidado necessário, Vozes 2012.
Fonte: http://leonardoboff.wordpress.com/2013/10/26/ha-de-se-cuidar-da-amizade-e-do-amor/

" Para trabalhar em equipe, retire as pedras do caminho "

 
Betania Tanure*
Em uma equipe consolidada, cada membro tem responsabilidade por seus atos e pela execução
do que foi acertado.
Diz-se que alguns insetos, como as formigas, dão exemplo de organização, unidade e foco em metas coletivas, enquanto o homem teima em ignorar o real sentido disso tudo. Considerando o que presencio há anos no ambiente empresarial, infelizmente tenho que concordar com essa afirmação.

Todos sabem da importância do trabalho em equipe para que uma empresa alcance resultados excepcionais. Mas os executivos brasileiros continuam sendo formados e treinados para transitar no que chamo de dimensão racional, ou 'hard', da gestão. Com isso, o foco da maioria é produção, finanças ou qualquer outro ativo tangível da organização. O trabalho em equipe, que como componente da dimensão 'soft' é difícil de mensurar e mais ainda de alcançar, fica "pra depois".

Não se deveria ignorar a importância de combinar as duas dimensões para que o trabalho em equipe se concretize. Nesse caminho existe o desafio de solucionar o que Patrick Lencioni denomina "disfunções". Há algum tempo mergulho na análise dessa questão, com base em inúmeras pesquisas e ações de consultoria que tenho realizado em empresas de diversas partes do mundo, especialmente no Brasil.
Para que um grupo de pessoas consiga trabalhar em conjunto para alcançar um objetivo comum, é preciso, realmente, desmontar armadilhas e retirar algumas "pedras" do caminho. A primeira é a falta de confiança. Em nossas pesquisas, observamos que não basta ser "do bem". Também é necessário entregar resultados consistentemente, além de conhecer, e reconhecer, as próprias forças e fraquezas. A coragem de dizer "não sei", "não fiz", "me equivoquei" e "preciso de ajuda" tem um efeito fortalecedor sobre o outro: faz pensar e agir. E essa força se solidifica quando se muda o curso das coisas.

Outra armadilha é o medo do conflito. Se por um lado o brasileiro tem, por cultura, uma enorme capacidade de estabelecer laços e trazer o coração das pessoas para os projetos, por outro há a constante necessidade de preservação pessoal. Ela nos faz fugir dos conflitos quando eles são vistos como "ganha" ou "perde". É possível, contudo, haver uma situação conflitante de ganho mútuo!

Sem confiança, abre-se espaço para a concordância cega e a bajulação. Com confiança, o conflito se torna edificante, o benefício individual perde para o bem coletivo e diminuem as chances de cair em duas outras armadilhas: a falta de compromisso e a fuga da responsabilidade.

Lembre-se de que, ainda que sua opinião tenha sido vencida no debate, seu compromisso é com a ideia vencedora. Trabalhe por ela. Em uma equipe consolidada, cada membro tem responsabilidade por seus atos e pela execução do que foi acertado. Diante de um erro, no entanto, o foco da discussão deve ser a solução do problema, e não a busca do "grande culpado". Caso contrário, as desculpas apenas racionalmente verdadeiras inundam a organização, que pouco a pouco perde o vigor, iniciando-se um mal de difícil cura: o subdesempenho satisfatório.

É comum que junto a essas duas "pedras" se encontre outra, a falta de foco nos resultados. Nas tarefas diárias, as metas de nível pessoal, de carreira ou financeiras, devem se somar às da equipe, que em última instância permitem obter os resultados empresariais, em todas as suas dimensões.

Enfim, não podemos subestimar o valor de competências 'hard' como o conhecimento funcional, as habilidades estratégicas e a leitura adequada dos movimentos macro. Mas, até para maximizá-las, o trabalho em equipe é fundamental.

Observe o efeito em cadeia: a confiança leva a conflitos saudáveis. Estes, ao compromisso, que por sua vez traz responsabilidade. Com ela, vem o foco nos resultados empresariais, sustentados por competências 'hard'. Confiança, portanto, é a base de tudo.
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* Betania Tanure é doutora e professora da PUC Minas e consultora da BTA
Fonte: Valor Econômico on line, 24/10/2013

sábado, 26 de outubro de 2013

Biografias , ainda elas " << Martha Medeiros >>



É uma discussão de difícil consenso: liberdade de expressão x direito à privacidade. Dois pilares indispensáveis para uma sociedade civilizada. Como equilibrar os interesses?

Em 2005, publiquei uma pequena novela que tratou desse tema. Em Selma e Sinatra, uma jornalista entrevista uma famosa cantora a fim de escrever sua biografia, e durante suas conversas a cantora deixa escapar que teve um rápido affair com Frank Sinatra, mas não quer que isso seja revelado, pois era casada na época. A jornalista surta com o veto. E abre-se o debate entre elas: o que torna, afinal, uma vida interessante aos olhos dos outros?

Não condeno quem tenta preservar sua intimidade. Se um engenheiro não gostaria que falassem sobre seus porres, se um desembargador evita admitir que fumava baseados na adolescência, se uma publicitária não quer que vasculhem sua sexualidade, se uma professora não deseja que saibam que ela teve um caso extraconjugal, por que um artista deveria se sentir confortável com a exposição disso tudo?

Muitos responderiam: porque ele tem uma vida pública. Como se fosse um acerto de contas: “Já que você é rico, célebre e bem-sucedido, entregue seus podres em troca”. Mas em troca de quê? De ter realizado um trabalho que o deixou em evidência? É alguma espécie de punição por ser reconhecido nas ruas?

Sou uma leitora voraz de biografias e considero que toda história de vida é ficção. Quando leio livros sobre Marylin Monroe, Patti Smith ou Nelson Rodrigues, entendo que o autor, por mais que tenha pesquisado, por maior que seja sua boa fé, não tem como saber toda a verdade: as suposições contracenam com os fatos.

O biografado se torna um personagem – bem realista, mas um personagem. Até mesmo quem escreve a própria biografia maquia um pouquinho a si mesmo. Ninguém se deixa conhecer 100%. O leitor experiente tem consciência disso e rende-se à criação e à qualidade do texto.

Ou seja, em vez de discutir legislação, o ideal seria que lêssemos mais e melhor para mudar nossa mentalidade de abelhudos, entendendo que há diferenças entre uma matéria de revista e um livro: as revelações que o livro traz situam o biografado num contexto histórico e social, ultrapassando as fofocas íntimas, que podem ser curiosas, mas não têm essa relevância toda.

Se estivesse bem clara a diferença entre um livro e a Caras, artistas cujas vidas despertam interesse editorial talvez não tivessem tantos melindres, pois confiariam na inteligência do leitor. Mas o que este prefere? Um relato com pimenta ou sem pimenta? Bem embasada ou contada com sensacionalismo? Aí é que entra a questão da mentalidade, que se não se refinar, continuará a gerar o desconforto dos biografados.

Literatura nenhuma deve ser censurada, coibida, mas também não deve ser lida com avidez apenas por causa de detalhes mundanos. Houvesse segurança no discernimento do leitor, essa polêmica talvez nem tivesse iniciado.

" Coitado do homem "


FABRÍCIO CARPINEJAR*

Um dos impasses masculinos no casamento é conciliar a porção macho protetor e a porção criança feliz.

Porque sua mulher ama quando você é adulto, seguro, firme, decidido, capaz de resolver crises e contas, dar colo e acalmar, dizer que tudo vai dar certo com a voz resoluta de radialista.

A mulher ama e espera ser amada desse modo. Com alguém disposto a oferecer segurança e sentido, com o peito maior do que o travesseiro, para aninhar e resguardar cheiros e futuro. Com um homem que acaricie seus cabelos em silêncio, sem que ela descubra o que ele está pensando.

Mas, se o homem está feliz ao lado da mulher, será uma criança. Eis o grande problema da dinâmica de casal: se a mulher faz o homem feliz, ele será uma criança, daí é ela que ficará descontente. Parece que precisa deixar o homem preocupado para ser feliz, mesmo que resulte na tristeza dele.

Homem bom para a ala das noivas é melancólico, aborrecido, casmurro, fortaleza enigmática, caixa com senha numérica e alfabética.

Já um homem realizado é livre como um campo de futebol num dia ensolarado. Muda seu riso, seu olhar brilha, seu rosto se amplia e se torna uma matraca. Transforma-se num bobo carente, disposto a fazer troça de qualquer assunto. Não leva coisa alguma a sério. Debochado, hiperativo, como se estivesse arremessando aviãozinho ainda do fundo da sala de aula. Vai apertar, morder, empurrar, beliscar, incomodar, perturbar, série de movimentos proibitivos da fantasia feminina. Nos momentos de euforia do namoro, reproduz a descontração com seus amigos: em especial na pelada e no boteco. Um churrasco entre barbados exemplifica sua felicidade: os participantes só vão confidenciar bobagens e besteiras sobre sexo e carreira. A frequência estará desembaraçada, ingênua, afeita a piadas, gafes e fraquezas cômicas.

Homem brinca de brigar, mulher quando briga não gosta de brincar, entende a diferença? É um cacoete ancestral, egresso do jardim da infância. No recreio, o homem fingia guerra com os colegas para mostrar apego. Por sua vez, a mulher se divertia em montar casinha, em estabelecer ordem e hierarquia nas emoções e afetos.

A questão é que a mulher não ama quando seu marido se infantiliza, porém é quando ele está mais à vontade. É quando ele verdadeiramente está amando. A mulher é seduzida pela imagem do homem tenso e guardião, e não suporta o menino enfeitiçado pelo encantamento da relação.

Na realidade, a mulher se irrita quando sua companhia assume ares de palhaço, ou de louco. Julga comportamentos hostis, que não inspiram nenhuma confiança. Despreza essas demonstrações circenses de disputa. Tente derrubá-la na cama fora do clima sexual, que ela ficará puta da vida.

Odeia quando seu marido se mantém hipnotizado assistindo uma partida da Série C, ou na medida em que inventa de jogar playstation e perde a hora ou ainda começa a jogar bolinha dentro de casa e quebra objetos. Odeia sua birra e manha, seu timbre de desenho animado, suas miradas tristonhas de chantagem.

A mulher jamais vai nos entender. Portanto, você tem que alternar com sabedoria os dois momentos. Este é o ponto delicado: encontrar a medida. Ser os dois ao mesmo tempo sempre, e nunca exageradamente.

Nem ser demais um, nem deixar de ser o outro.

Nem ser pai demais da esposa, nem ser seu filho.

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* Poeta. Escritor.

" Sexo & Mobilidade " << Cláudia Laitano >>


Houve um tempo em que os machos mais afortunados da nossa espécie orgulhavam-se do próprio carro como o pavão alfa da sua cauda multicolorida. O que os fazia estufar o peito convencidos do próprio esplendor era menos a potência motora do acessório – no caso dos pavões, quase nenhuma – do que sua evidente vantagem competitiva nos rituais de acasalamento.

(No esforço para seduzir a fêmea, no entanto, era comum que alguns machos exagerassem um pouco no colorido da penagem, já que um carro daqueles que parecem iluminar a conta bancária do dono como um para-choque de néon tende a despertar em algumas fêmeas a impressão de que o excesso de gorjeio pode querer disfarçar a ausência de outros atributos menos monetizáveis. )

Carros sempre sugeriram poder, força, capacidade de prover a prole – tudo aquilo que, aparentemente, o DNA feminino leva em conta, desde o tempo das savanas, na hora de selecionar um parceiro. Estacionado no local adequado ou encurtando distâncias, o automóvel ultrapassa o caráter meramente simbólico oferecendo também as condições práticas para o acasalamento: privacidade, algum conforto e trilha sonora para completar.

Dos EUA e do Japão, responsáveis pela exportação não apenas de carros, mas de todo um estilo de vida baseado no automóvel, vêm duas notícias que apontam para o primeiro solavanco sério na já centenária associação entre carros potentes e sexo rápido (ou o contrário) – e dos dois como ideais de consumo indiscutíveis da juventude desde a invenção da roda movida a combustão.

Nos EUA, surge o fenômeno do jovem que não pretende ter um carro. Alguns dizem que a Geração Y, atropelada pela crise, consegue comprar, no máximo, duas rodas – e olhe lá. Outros acreditam que, mais do que razões econômicas, o que move os novos hábitos da geração nascida a partir dos anos 80 é uma genuína mudança cultural, já que hoje é possível fazer quase tudo, inclusive trabalhar e conhecer pessoas, sem precisar sair de casa. E como essa geração parece encarar a tarefa de cuidar do planeta com mais seriedade do que seus pais e avós, poluir o ar e entupir as ruas com carros espaçosos e vazios estaria deixando de ser símbolo de status.

Do Japão, veio a notícia mais surpreendente – e uma das mais comentadas na Internet nos últimos dias. Uma reportagem publicada no último domingo no jornal britânico The Guardian, intitulada “Por que os jovens japoneses não querem mais saber de sexo?”, analisa a chamada “síndrome do celibato”. Com uma das mais baixas taxas de natalidade do mundo, o Japão estaria enfrentando uma tendência demográfica inesperada: homens e mulheres com menos de 40 anos, por diferentes motivos, simplesmente estariam perdendo interesse em “relações convencionais” e suas inevitáveis (e imprevisíveis) complicações.

Estaríamos todos prestes a assistir a uma revolução sexual ao contrário? No Brasil, pelo menos, isso soa tão pouco provável quanto o transporte público tornar-se subitamente eficiente. De qualquer forma, a frase “não sei se caso ou compro uma bicicleta” parece finalmente ter ganhado um sentido.

" A classe média vai ao inferno " << Ruth De Aquino >>



As metrópoles se tornaram ambientes hostis a qualquer um que precise se deslocar

 

Era uma vez o sonho de morar na grande cidade. O paraíso das oportunidades, do emprego bem remunerado, do hospital equipado e do acesso mais amplo aos serviços públicos. O centro do lazer cultural e do bem-estar. A promessa da mobilidade social e funcional.

A metrópole virou megalópole e, hoje, São Paulo e Rio de Janeiro se tornaram ambientes hostis ao cidadão de qualquer classe social que precise se deslocar da casa para o trabalho. As “viagens” diárias dificultam conciliar família e profissão. Os serviços públicos são muito ruins. E o transporte coletivo – negligenciado por sucessivos governos como “coisa de pobre” – é indigno.

Hoje, mais da metade da população (54%) tem algum carro. O Brasil privilegiou a indústria automobilística, facilitou a compra de veículos, e a classe média aumentou em tamanho e poder de consumo. Todos acreditaram que chegariam ao paraíso. Ficaram presos no congestionamento.

Quem mais fica engarrafada nas ruas é a classe média, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). A pesquisa, com base em dados de 2012, revela que os muito pobres e os muito ricos gastam menos tempo no deslocamento casa-trabalho do que a classe média. Os ricos, porque podem morar perto do trabalho – sem contar os milionários e os governadores, que andam de helicóptero.

Os muito pobres, sem dinheiro para a passagem, tendem a se restringir a trabalhar bem perto de onde moram ou acordam às 4 horas da manhã para evitar congestionamento. Como não se investiu em trem e metrô – muito menos em sistemas inteligentes de transporte –, estouramos os limites da civilidade. E que se lixem os impactos ambientais, a poluição e a rinite.



 
 
 Nesse cenário, qualquer falha, incidente, obra, desastre ou atropelamento transforma o caos “normal” em catástrofe. Tombou a carreta? O ônibus atropelou o ciclista? O trem sofreu pane? O bueiro explodiu? O cano estourou? A linha de nosso reduzido metrô enguiçou? O asfalto cedeu? Os motoristas de ônibus pararam por melhores condições? Pronto, não se chega mais a lugar nenhum. Até os atalhos se tornam sucursais do inferno.

Hordas de passageiros brigam para entrar num vagão, derrubam idosos, não têm cuidado com as crianças e as grávidas. Alguns se transformam em Black Blocs sem máscaras e depredam. Motoristas se fecham e se xingam uns aos outros. Esse cotidiano penoso torna o cidadão ao lado um inimigo, um adversário. É preciso chegar à frente dele, roubar seu lugar.

Vivemos uma situação de guerrilha urbana diária, provocada pela falta crônica de planejamento e a ausência de investimentos públicos em serviços de qualidade. Governos sucessivos erraram nas prioridades e no modelo de desenvolvimento. Somos o país da improvisação e precipitação.

“Investir em transporte de massa, em trem e metrô, criar sistemas articulados e decretar o fim do império do automóvel particular é uma providência imediata”, afirma o urbanista Augusto Ivan, nascido em Minas e radicado no Rio. “Quando surgiu, o automóvel era chamado ‘carro de passeio’. Deveria voltar a ser apenas isso. Só assim mudaremos o cenário pavoroso de congestionamento. Precisamos taxar a circulação de carros em áreas mais conflagradas, a exemplo da Inglaterra, que estipulou uma ‘congestion charge’. É simples: ou paga para circular ou não entra.”

O urbanista e vereador Nabil Bonduki (PT-SP) calcula que, para melhorar minimamente a circulação em São Paulo, “seria preciso retirar 25% dos carros das ruas”. Não dá para fazer isso sem criar um transporte coletivo de qualidade. “Nem falo apenas de unidades de trens, metrôs e ônibus. Mas de um sistema, que inclui até calçadas e iluminação, além de conexão.

Um sistema que a população considere seguro e confortável.” A aglomeração excessiva em cidades segregadas, um fenômeno típico de Terceiro Mundo, obriga a longos deslocamentos. “Da porta para dentro de casa, a classe média melhorou muito de vida. Mas o espaço público não acompanhou a melhoria.”

As grandes cidades brasileiras deixaram de ser cidades há muito tempo, diz o urbanista Luiz Carlos Toledo. “Hoje são conglomerados metropolitanos com problemas estruturais. Nossas grandes cidades estão parando. A ponta do iceberg são os engarrafamentos, mas, como nas montanhas de gelo, o buraco está literalmente mais embaixo, onde passam os canos que nos abastecem de água, retiram o esgoto das nossas casas e recebem as águas pluviais.

Tudo isso, e não só a mobilidade, está indo para o buraco pela cegueira dos governantes, pela ganância dos especuladores e por todos nós, que acreditamos que existirá sempre um jeitinho para corrigir esses problemas, ou tempo para uma mudança de rumos.” É o que diz Toledo – e eu assino embaixo.

" Imprevidência Administrativa " RS Editoriais ZH


EDITORIAIS ZH

IMPREVIDÊNCIA ADMINISTRATIVA

Sempre que uma chuva ou temporal provoca alagamentos numa região altamente urbanizada, como ocorreu ontem na região metropolitana de Porto Alegre, as alegações dos administradores públicos se assemelham: tudo se deve a uma precipitação atípica. Ora, as cidades modernas têm que estar preparadas também para eventos climáticos menos rotineiros.

O planejamento urbano exige isso: sistemas de escoamento eficientes para possibilitar a mobilidade urbana e para preservar a segurança das pessoas. Não foi o que se viu ontem em municípios como Sapucaia do Sul, Esteio, Canoas, Gravataí, Cachoeirinha e parte da Capital. O caos no trânsito, o desespero das pessoas diante do cerco das águas e a descontinuidade em serviços básicos compõem um quadro de absoluta imprevidência administrativa. A prioridade, neste momento, é socorrer quem saiu prejudicado, mas a sociedade não pode perder mais esta oportunidade de debater alternativas concretas de prevenção.

De alguma forma, o colapso registrado agora guarda semelhança com o que ocorreu há pouco mais de um mês em áreas vitais da Região Metropolitana. Em setembro, centenas de residências do bairro Sarandi e até mesmo instalações da Federação das Indústrias (Fiergs), na zona norte da Capital, foram invadidas pelas águas do Arroio Feijó, que também atingiram Alvorada.

Na mesma época, o Arroio Esteio também transbordou, inundando o estacionamento da Expointer, a ponto de dificultar o acesso de visitantes e de prejudicar expositores. Agora, além dos prejuízos diretos a parcelas expressivas da população, o mau tempo afetou parcialmente até mesmo o trensurb, além de paralisar momentaneamente o tráfego de veículos num trecho importante da BR-116, que foi invadida pelas águas, e de afetar a circulação em outras vias da região.

Em vez de responsabilizar apenas o poder público _ que não tem como controlar alterações climáticas, mas deveria planejar melhor o ambiente urbano _, a sociedade precisa refletir sobre qual seria a sua parte na prevenção de fenômenos como inundações. Entre as hipóteses levantadas para o atípico represamento das águas em Sapucaia do Sul, está o acúmulo de detritos provocado pela demolição de residências para a ampliação da ERS-118. Tanto a população, quando não manuseia adequadamente o lixo, por exemplo, quanto o poder público, quando deixa de fazer ou posterga obras como a canalização de mananciais, ou, ainda, tolera a ocupação em áreas de risco, têm sua parte de responsabilidade nesse tipo de ocorrência, que é, em muitos casos, previsível.

O poder público, em todas as instâncias da federação, precisa se mostrar mais preo- cupado com investimentos em infraestrutura capazes de atenuar dramas como o dos alagamentos. Esse interesse será maior se a sociedade se revelar mais consciente em relação à questão, fazendo a sua parte para atenuar o problema e cobrando ações efetivas dos governantes.

" Um engodo "

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Recepção reprovada

O êxito de grandes eventos esportivos mundiais não depende apenas da competência das instituições envolvidas no projeto. O sucesso está também na dependência da capacidade de recepção das cidades e de sua gente. Relatos de participantes do Mundial de Atletismo Master, que reúne cerca de 4 mil atletas de 82 países em Porto Alegre, dão conta de fatos que conspiram contra a reputação da Capital e do Estado e fazem com que se vislumbrem situações constrangedoras mais adiante, quando da Copa do Mundo. A lamentável amostragem de fatos negativos compromete o projeto gaúcho de transmitir hospitalidade aos visitantes no Mundial.

O balanço de deficiências – e, o que é pior, de atitudes condenáveis – apresentado ontem por este jornal exige avaliação urgente das autoridades. O que se tem é um mural que combina desinformação, a esperteza de taxistas e o despreparo da rede comercial. Percebe-se, a partir das manifestações de quem está na Capital para a competição de atletismo, e desconsiderando-se as obras, que Porto Alegre está longe de se considerar pronta para a Copa.

A cidade não foi preparada como deveria para o evento em realização, no sentido de sensibilizar seus moradores a serem colaborativos com quem procura se ambientar num local totalmente desconhecido. Este é um aspecto importante, que sedes de eventos semelhantes levaram muito a sério, pois a primeira impressão, para quem chega de fora, deve ser a de que está sendo bem acolhido.
Foram observadas deficiências no número de voluntários que dominam línguas. O material de divulgação era incompleto. E, para completar, espertalhões se aproveitaram dos estrangeiros para aplicar tarifas exorbitantes em corridas de táxi, conforme exemplos relatados. Algumas limitações poderão ser corrigidas até domingo, quando se encerra o Mundial. Outras exigirão intervenção decidida de órgãos públicos e entidades que articulam a organização da Copa, para que resultem em mudança de atitude, especialmente no que se refere a questões éticas.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

" José Mujica , um Presidente sem dinheiro " << David Santa Cruz * >>


José Mujica pode se dar o luxo de ficar na tribuna das Nações Unidas para falar da felicidade e do tempo livre, para se declarar social democrata como a maioria dos guerrilheiros que sobreviveram a sua própria utopia e se incorporaram à luta eleitoral.

Quando José Mujica não é um homem de Estado é um sonhador. Chegou ao poder já velho, mas não cansado e sua aposentadoria como guerrilheiro a vive como presidente do Uruguai. Seus discursos nas cúpulas internacionais e na ONU causam turbulência, embora estejam longe de ser incendiários.

Se tivesse tido acesso à tribuna quando era parte dos Tupamaros o tom seria outro, seus discursos seriam como foram os de Che Guevara, quem aos 36 anos, em 11 de dezembro de 1964, como ministro da indústria de Cuba, insistia em plena Nações Unidas na sua disposição a dar a vida para libertar qualquer povo do mundo. Aos seus 78 anos, Mujica afirmou nesse mesmo organismo que “talvez hoje a primeira tarefa seja salvar a vida”.
Entre 1965 e 1966, os jovens anarquistas e socialistas do Uruguai se uniram no Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T), entre os libertários estava Mujica.

Essa guerrilha se inspirou na que Fidel Castro e o próprio Ernesto “Che” Guevara. De modo semelhante aos outros guerrilheiros do continente, os comunistas uruguaios viam na Revolução Cubana a confirmação que era possível derrubar as oligarquias.

Embora o próprio Che fosse incapaz de replicar o triunfo, sua expedição à Angola se transformou na “história de um fracasso” segundo suas próprias memórias e na Bolívia foi morto, não em batalha, mas assassinado por militares que temiam a pressão internacional se o levassem ao julgamento depois de sua captura.

Mas voltemos ao Uruguai, aquele país no oriente sul-americano vivia uma democracia com aspirações autogolpistas que se concretizaram em 1973 e um presidente constitucionalmente eleito foi substituído e uma ditadura militar na qual os civis encabeçavam e legitimavam o governo. Nesse contexto, José Mujica foi ferido com seis tiros e permaneceu preso por 15 anos. Também conheceu a mulher que até hoje é a sua esposa.

O Pepe Mujica aumentou sua fama em 2012 quando o jornal espanhol El Mundo o batizou como presidente mais pobre do mundo.

Até seu sítio, ‘chácara’ dizem no sul, chegaram à mídia como a rede inglesa BBC que procurava o presidente que plantava flores, arrumava ele mesmo seu trator e tinha uma cachorra manca como animal de estimação. Tudo para encontrar a origem de sua pobreza. A resposta é que doa 90% de seu salário às obras sociais. Algo insólito no mundo onde a classe política tende a se enriquecer de maneira desproporcional comparada com a administração pública, mesmo em épocas de crises e desemprego, embora custe o sangue e a fome do povo.

Seu aspecto bonachão ajuda, suas vestes simples o enaltecem. Que somente tenha um Volkswagen sedan 1987 – aqueles que no México chamam de “vochos” e o resto do mundo fuscas – e que o use para ir ao trabalho como presidente o completa com uma congruência irrebatível no senso comum: “é o melhor presidente do mundo” disseram os integrantes de rock Aerosmith, que foram conhecê-lo e lhe deram uma guitarra autografada.

Mas José Mujica não gosta desse mote. Disse que não é o mais pobre do mundo, que pobres são aqueles que precisam muito para viver, e ele é um camponês que tem o suficiente. Um dono de chácara (floricultor) segundo a própria pagina da presidência uruguaia. Seus detratores o tacham de radical e populista, de ser um demagogo e que criar um personagem: o Pepe. Embora os próprios uruguaios atestem que em encontros pessoais e histórias de rua indicam o contrário. Em Valizas, uma das praias mais badaladas do Uruguai, escutei da bocade um engenheiro agrônomo dizer que, antes de chegar à presidência, Mujica ia comprar plantas e semente para sua chácara e sempre as comprava um pouco da empresa onde ele trabalhava e outro tanto da concorrência, assim que na opinião do agrônomo era equitativo na medida do possível.

Em sua chácara há apenas dois policiais vigiando, nada a ver com o oneroso e vergonhoso grupo de militares. Ali vive como sua esposa, a também ex-guerrilheira e agora senadora Lucía Topolansky, a mesma que continua sendo líder do congresso e seu marido o presidente do Uruguai. Uma história que pareceria um conto de fadas mas sem príncipes nem princesas, mas sim como calabouços, torturas e perseguições para ambos. Um par de fugas de filmes e logo uma vida no campo. Atualmente os jornalistas que têm visitado o escritório de Topolansky percebem que ali há três fotos: a do Che, do Pepe e de Gardel.

O segundo fato que levou esse homem humilde ao status de astro do rock foi sua proposta de legalizar a maconha no país. Se conseguisse, seria o primeiro na América, mas sobretudo o início de mudança do paradigma no combate às drogas que deixa milhares de mortos somente na Colômbia e México e que pouco a pouco se expande ao Peru, Bolívia e o fator que aumenta a violência na paupérrima América Central. A oposição acusa dizendo que essa medida é uma distração para não falar da crescente insegurança no Uruguai, a inflação e os demais males de todos os países do mundo. Pode-se afirmar que com pouco mais de três milhões de habitantes é um ator minúsculo do sul, dentro do contexto internacional. Rodeado, como se fosse pouco, de dois gigantes regionais: Argentina e Brasil, o resto é o Atlântico.

Por isso, José Mujica pode se dar o luxo de ficar na tribuna das Nações Unidas para falar da felicidade e do tempo livre, para se declarar social democrata como a maioria dos guerrilheiros que sobreviveram a sua própria utopia e se incorporaram à luta eleitoral. Ficar ali em pé e lhes dizer não serve muito, pois “nosso mundo precisa menos organismos mundiais de toda laia, que organizam fóruns e conferências que só ajudam os hotéis e as companhias aéreas”.

E como exemplo de que os organismos internacionais refletem os interesses daqueles que criticaram, Uruguai contribui com 14% das forças armadas para as missões de paz, apenas 2500 soldados. Nada se pensamos que EUA tem 33 mil no Japão, mas muito se consideramos as dimensões do país sul-americano, “há anos, sempre estamos nos lugares que nos pedem, entretanto, onde se decide e repartem os recursos não existimos nem para o café”, replicava Pepe diante a uma casa quase vazia, na qual horas antes se juntavam pessoas para ser testemunhas de como o presidente Barack Obama declarava a inexistência ou morte do imperialismo norte-americano. Apesar disso, ainda houve suficiente espaço na imprensa para o discurso “filosófico” de Mujica.

Em geral, os estudiosos das relações internacionais afirmam que basear a análise a partir de indivíduos é um erro, dizem-nos que tampouco importam os princípios ideológicos, mas sim as consequências morais de seus atos. Que pouco há que notar como governo, senão no tipo de governo que exercem, colocando as democracias acima de toda outra forma de governo. Entretanto, às vezes aparecem personagens cuja particularidade rompe qualquer esquema. Esse é o caso de José Mujica, o presidente do Uruguai, que quando não era um sonhador, tem que atuar como homem de Estado que considera a presidenta da Argentina, Cristina Kirschner, uma velha teimosa e difícil de negociar.; que se nega a entorpecer suas relações com a União Europeia para defender a dignidade de Evo Morales após ser preso na França de maneira ilegal ou que busca acordos bilaterais extra Mercosul, porque afinal, como todo homem de estado, sua obrigação é velar primeiro pelos interesses de seu povo.

Sobre seu passado é limpo, o dia que lhe perguntaram s havia matado alguém respondeu: tenho má pontaria. Tem dito que seus erros são filhos do tempo que lhe coube viver, como tal assume que às vezes um ex-guerrilheiro também sonha e lhe dá vontade de gritar: “Que tenha a força de quando bebíamos tanta utopia”.
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* David Santa Cruz é jornalista mexicano, tem colaborado com mais de 20 meios de comunicação em diversos países. Trabalhou como jornalista da edição Internacional da AméricaEconomia. Hoje estuda mestrado em Estudos Internacionais na UDT, na Argentina.
Fonte: http://americaeconomiabrasil.com.br/23/10/2103