domingo, 29 de setembro de 2013

" A sala de espera do analista "

MARTHA MEDEIROS
Sempre que saio da minha consulta no analista, há uma senhora na sala de espera aguardando sua vez. Antes, eu cruzava por ela e fazia um aceno educado com a cabeça. Com o tempo, passei a sorrir e dizer tudo bem?. Em breve, me sentirei tão à vontade que perguntarei : E aí, qual é a sua encrenca? Dificuldade de desapegar, síndrome do pânico, bipolaridade?

                E tudo terminará num bistrô, entre boas risadas.

Obviamente, meu comportamento demonstra um desajuste. Não é por acaso que preciso frequentar um profissional que aperte meus parafusos frouxos.

Já quando sou eu que estou na sala de espera aguardando, a situação se inverte. O paciente anterior sai e nem olha para os lados. Cruza por mim como se eu fosse uma cadeira vazia. Nem uma espichada de olhos, nem um esgar, nem um grunhido. Não existo. Ele passa reto. Sou uma cadeira.

Eu poderia ficar com a autoestima abalada, ele não sabe o risco que está causando. Ou talvez saiba, mas não se importa com o que sinto. Será que ele não se importa com o que sinto? Acho que estou desenvolvendo um complexo de inferioridade. Mais essa agora. Desse jeito, minha alta não virá nunca.

Sempre que entro em uma pequena sala de espera, qualquer que seja, cumprimento quem ali está. Não saio distribuindo beijinhos, mas demonstro educadamente que percebi a presença de outros no recinto. Logo, é natural que eu faça o mesmo numa sala de espera que frequento toda semana à mesma hora, e onde eventualmente vejo as mesmas pessoas saindo ou entrando. Compartilhamos uma rotina, ora.

Só que não é simples assim. Ninguém fica com vergonha de ir ao dermatologista, ao oftalmo ou ao otorrino, mas consultar um analista ainda é algo extremamente íntimo. Os pacientes sentem-se constrangidos ao serem vistos num ambiente onde costumam confessar seus traumas e fraquezas.

Talvez não acreditem na eficiência do revestimento acústico das paredes, desconfiam de que aquela criatura ali na sala de espera escutou os detalhes de suas compulsões sexuais e de suas neuroses cabeludas. Era para ter ficado tudo em segredo, era para ter sido um momento privado, inviolável, confidencial – e é! – porém, em poucos minutos, aquele estranho sentará na mesma poltrona (ou deitará no mesmo divã) e privará dos cuidados do mesmo profissional, imediatamente depois de termos estado ali, e a sensação é de promiscuidade.

                 Queremos acreditar que o terapeuta é só nosso.

Mas não é: o paciente sentado na sala de espera revela que somos apenas mais um, que nossos problemas não são o centro da atenção de quem nos analisa e de que é provável que as paranoias dele sejam mais interessantes do que nossos questionamentos banais. Intolerável. Melhor mesmo fazer de conta que ali fora está apenas mais uma cadeira vazia.

 

" Crise das companhias aéreas afeta conforto de passageiros "

PUBLICIDADE - RICARDO GALLO DE SÃO PAULO

O cenário de prejuízos milionários e corte das despesas por que passam as companhias aéreas atingiu agora o conforto dos passageiros. Para poupar combustível, a TAM --líder de mercado no Brasil-- passou a desligar o ar condicionado que refresca a cabine de passageiros quando o avião está no chão.


Cortar custo é 'lição de casa', afirma associação das aéreas. O equipamento para de funcionar quando o avião deixa o gate (ponte de embarque) e volta a ser ligado após a decolagem, o que pode demorar 15 minutos.

              Quando o avião pousa, o ar é desligado de novo.
A Folha esteve em um voo da TAM há nove dias, entre Congonhas (SP) e Santos Dumont (Rio): quando o ar para, a temperatura sobe e os passageiros passam a mexer nos dutos do teto --pensando ter havido algo errado.

             Ninguém da tripulação informa sobre o desligamento.

Em vigor há nove meses, a medida prevê que o avião fique refrigerado por apenas um dos dois sistema de ar do avião. Mas só 25% do ar que sai desse sistema refresca os passageiros, diz um piloto; o resto vai para a cabine do piloto e do copiloto.

A economia parece pequena, mas é expressiva ao se ter em conta os 800 voos diários da TAM. A empresa teve prejuízo de R$ 1,2 bilhão em 2012.

TEMPERATURA
Com o ar ligado, um avião se mantém com 23ºC. Ciente do desconforto, a TAM manda a tripulação religar o ar se a temperatura chegar a 26ºC. O conforto não é prejudicado, diz a companhia.

A Azul faz algo parecido, mas em menor proporção: desliga um dos sistemas de ar, mas só com o avião parado no gate e com a porta aberta.
O ar não foi o único afetado. Em abril, a TAM retirou os fornos dos aviões que atendem aos voos domésticos e nos internacionais de curta duração. A comida é servida fria --o serviço de bordo mais enxuto é tendência no setor.

Segundo a empresa, a opção por refeições "frias, leves e saudáveis" foi tomada após pesquisas com clientes.
Vice-líder de mercado e também no vermelho (R$ 1,5 bi em 2012), a Gol, com 900 voos diários, não mexeu no ar, mas cortou serviços.
Em junho, a empresa reduziu a água embarcada no banheiro em voos curtos, como a ponte aérea. Em maio, extinguira o serviço de bordo gratuito na maior parte dos voos --a água é de graça e o restante, vendido.
A empresa pagou neste ano bônus aos tripulantes por economia de combustível.

As medidas ocorrem em um cenário em que o combustível, atrelado ao dólar, representa 40% dos gastos.

" A volta dos que não foram "



BRASÍLIA - O Brasil, que se vangloria, com boas razões, dos avanços dos últimos 20, 30 anos, corre o risco de ter, simultaneamente, um preso na Papuda com mandato de deputado, um presidente do Senado que foi enxotado por denúncias e voltou ao cargo, três condenados pelo Supremo mantendo o mandato e um governador que foi destituído, preso e, agora, é de novo candidato.

O tal Natan Donadon foi parar na cadeia por ordem do Supremo e manteve o mandato pelo voto dos colegas da Câmara. O presidente do Senado que saiu e voltou é Renan Calheiros. Os condenados pelo Supremo com mandato, um ou outro com assento na Comissão de Constituição e Justiça, todo mundo sabe quem são.

E quem é o governador do qual tratamos aqui? É o ex-governador José Roberto Arruda, do Distrito Federal, flagrado com a boca na botija no chamado "mensalão do DEM".

Arruda --que, no início, tinha tudo para dar certo-- já era reincidente a essas alturas. Tinha se enlameado no Senado, teve a segunda chance e afundou de vez no governo do DF.

Mas será que afundou de vez mesmo? Ele foi afastado do cargo e preso na mesma Papuda que agora hospeda Donadon, mas acaba de ter as contas do seu governo em 2008 aprovadas pela Câmara Distrital, enquanto a Justiça empurra com a barriga, como faz em geral com poderosos.

Por isso, Arruda já emerge, põe o nariz de fora e fareja a possibilidade de se filiar ao PR para concorrer a qualquer cargo em 2014. Pode? Sei lá. Ele e o presidente do partido no DF acham que sim, alegando que, se todo o mundo pode, por que ele não?

Por falar em "todo o mundo", a revista "Congresso em Foco" acaba de concluir um levantamento mostrando que, de cada dez parlamentares, quatro estão enrolados no Supremo Tribunal Federal --que é o foro privilegiado (bota privilegiado nisso!) dos que têm mandato. São 224 deputados e senadores respondendo a 542 inquéritos e ações penais.

                               É desanimador...

" Punir é crime ? "

                                                                         FERREIRA GULLAR


Para nossos juízes, punir é coisa retrógrada, resquício de um tempo que a modernidade superou

Evitei me manifestar de imediato sobre a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a pertinência dos embargos infringentes.

Evitei, primeiramente, porque, naquele momento, todo mundo tratou de dar sua opinião, fosse contra ou a favor daquela decisão. Como não sou jurista nem pretendo ser mais lúcido que os demais, preferi ler as entrevistas e artigos então publicados, para melhor avaliar não só o acerto da decisão adotada pelo STF, como as possíveis consequências que ela inevitavelmente provocaria no juízo da opinião pública em face de tão importante julgamento.

Passada a onda, a sensação que me ficou foi a mesma que, de maneira geral, a nossa Justiça provoca nos cidadãos: a de que este é o país da impunidade. Trata-se de uma sensação hoje tão disseminada na opinião pública que se tornou lugar-comum. Apesar disso, diante desse novo fato que chocou a nação, me pergunto: de onde vem isso? O que conduz a Justiça brasileira a inviabilizar as punições?

Não pretendo ter a última palavra nessa questão, mas a impressão que tenho é de que, para nossos juízes, punir é coisa retrógrada, resquício de um tempo que a modernidade superou. Em suma, punir é atraso --e o Brasil, como se sabe, é um país avançado, moderninho.

Não foi por outro motivo, creio, que certa vez um advogado me disse o seguinte: quando a sociedade condena alguém, quase sempre quer se vingar dele. Essa visão aqui evocada levou um célebre advogado, dos mais prestigiados do país, a propor o fim das prisões.

Pensei que ele estivesse maluco mas, ao falar do assunto com um outro causídico, ouvi dele, para minha surpresa, que aquela era uma questão a ser considerada seriamente. Só falta meter na cadeia os homens de bem e entregar a chave a Fernandinho Beira-Mar.

Seja como for, a verdade é que há alguma coisa errada conosco. Punir não é vingança, mas a medida necessária para fazer valer as normas sociais. Comparei, certa vez, o ato de punir às decisões tomadas por um juiz de futebol. O jogo de futebol, como todo jogo, só existe se se obedecem as normas que o regem: gol com a mão não vale, chutar o adversário é falta e falta na área é pênalti. Se o juiz ignora essas regras e não pune quem as transgride, torna a partida inviável e será certamente vaiado pela torcida adversária. Pois bem, o convívio social, como o jogo de futebol, exige a obediência às regras da sociedade.

Quem rouba, mata ou trafica, por exemplo, está fora das regras, isto é, fora da lei --e por isso tem que ser punido. Punir é condição essencial para tornar viável a vida em sociedade. Se quem viola as normas sociais não é punido, os demais se sentem à vontade para também violar aquelas normas.

É o que, até certo ponto, já está acontecendo no Brasil, particularmente nos diferentes setores da máquina pública, tanto no plano federal, como estadual e municipal. E aí há os que praticam peculato como os que entopem os diferentes setores do governo com a nomeação de parentes e aderentes, sem falar no dinheiro que desviam para financiar o partido e, consequentemente, sua futura campanha eleitoral.

Às vezes os escândalos vêm à tona, a imprensa denuncia as falcatruas, processos são abertos, mas só para constar, porque não dão em nada, já que, neste país avançado, punir é atraso.

Mas um ânimo novo ganhamos todos com o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. Durante meses, todos assistimos pela televisão à exposição dos crimes praticados contra a democracia brasileira e, finalmente, à condenação dos réus. Enfim, ia se fazer justiça.

Mera ilusão. Logo em seguida, passou-se a falar nos embargos declaratórios e nos embargos infringentes. Veja bem, durante a vida inteira ouvi dizer que das decisões do Supremo não cabem recursos.

Ainda bem, pensava eu, pelo menos há um momento em que a condenação é irreversível. Sucede, porém, que com a validação dos embargos infringentes, isso acabou. Nem mesmo as decisões da Suprema Corte, agora, são para valer. Os beneficiados com os tais embargos, que no dia daquela decisão eram 12, já se anuncia que serão 84. Isso, por enquanto.

" Para que serve um filósofo conservador ?

 

Paulo Ghiraldell*
Francis Fukuyama

talvez o problema com o filósofo conservador não esteja exclusivamente nele, mas na maneira que o escutamos ou lemos

Só uma girafa com neurônios avariados diria que não vale a pena tentar mudar o mundo. Não precisamos ir onde Judas perdeu as botas para ficarmos insatisfeitos com o que alguns ainda chamam de “status quo vigente”. Três manchetes jornalísticas desse final de setembro, daqui mesmo do Brasil, podem funcionar como elementos motivadores para reafirmar que mudanças são bem-vindas: analfabetismo volta a crescer, cai a renda da mulher diante do homem, cessa de diminuir a distância entre ricos e pobres. Caso isso ainda não seja convincente, posso jogar na mesa mais uma manchete, do dia 26: Lei Maria da Penha não alterou a violência contra a mulher. São 15 mulheres mortas por dia no Brasil por causa da violência doméstica. Parece que precisamos de mudanças mais profundas, e não aquelas restritas às trocas de nomes no governo.

Não sou uma girafa com neurônios avariados. Não consigo sair por aí gritando “eis aqui eu, um filósofo conservador, eu não quero mudar nada porque tudo vai bem”. É claro que não vou fazer isso. No entanto, sei muito bem que há quem seja conservador e filósofo. Sei também que uma figura desse tipo não diz encontrar a tal girafa no espelho. Ao contrário, não raro os conservadores se descrevem como “corajosos”, “inteligentes” e, mais recentemente, “democratas”. Ora, quem lê um filósofo que se autodenomina um conservador, por exemplo, o britânico Roger Scruton, pode não saber se ele é corajoso, mas não tem como negar que ele é inteligente e que defende sinceramente algum tipo de democracia liberal. Mas, diante disso, não temos como não nos perguntar: como uma pessoa inteligente, olhando para esse mundo aqui que vivemos, pode simplesmente acreditar que a disposição para mudar o mundo é nociva, ou quando menos, simplesmente inútil?

Talvez o problema com o filósofo conservador não esteja exclusivamente nele, mas na maneira que o escutamos ou lemos.

Não raro, um filósofo conservador é bastante verborrágico. Ele tem uma necessidade de estar em todo lugar, fazendo propaganda de seus ideais políticos, mesmo quando diz não gostar de política e de não querer conversar de política. Ele sabe também que entre os não conservadores há os que são profissionais da mudança do mundo, e estes se levam muito a sério. Não é difícil tais profissionais se acreditarem predestinados, com uma missão na Terra. Desse modo, o filósofo conservador não poupa seu discurso de frases de efeito, exageros retóricos e farpas que realmente atingem os mudancistas ou melhoristas ou reformistas ou progressistas ou revolucionários. Ora, essa é a parte pior do conservador, e pode realmente ser deixada de lado, até porque é aquilo que se repete e logo se torna entediante. Em alguns conservadores, chega até a nos fazer crer que ele está se candidatando ao posto da girafa.

Quando nos livramos dessa retórica de disco de vinil riscado do filósofo conservador, aí encontramos o que ler e aproveitar.

Dois filósofos não conservadores, um americano e outro alemão, podem nos ensinar a fazer essa limpeza de terreno: o meu amigo já falecido Richard Rorty e o ativo e interessante Peter Sloterdijk. Eles leem o conservador Francis Fukuyama, em seu “O fim da história” (1992), de uma maneira que não há como não acabar apreciando.

Como se sabe, o livro de Fukuyama é uma análise do chamado “fim do comunismo” por obra do desaparecimento da União Soviética e da reordenação do Leste Europeu, bem como uma dissertação do que seria a situação pós-comunista.

Rorty toma Fukuyama para ironizar os críticos dele. Os críticos vindos da esquerda insistiram em dizer que a história não havia acabado e que seria tolice dizer que o capitalismo tinha vencido e ponto final. Rorty então relê Fukuyama para dizer algo que é mais ou menos o seguinte: caso você ainda esteja junto do projeto da “revolução pelo totalmente outro”, o que Fukuyama está lhe dizendo é que “os eventos de 1989 mostram que você está com falta de sorte”. Ora, quando me veem à mente aquele tipo de esquerdista dogmático, que sempre esteve pronto para dizer a todos nós que a história acabaria por lhe dar razão, não há como não rir desse aproveitamento de Fukuyama por Rorty. Aliás, quando eu li isso, lá no início dos anos de 1990, eu realmente gargalhei.

Sloterdijk toma Fukuyama de um modo mais teórico. Ele nota no livro um dado interessante. Fukuyama disserta sobre a situação pós-comunista como uma situação em que a impessoalidade típica do relato sociológico, que fala em classes e estruturas sociais, cede espaço para narrativas que não podem deixar de notar aspectos “timóticos”, ou seja, aspectos que vem do thymós, aquela parte intermediária da alma platônica, entre o campo da razão e o dos apetites. Essa parte é a responsável pela identidade, em geral embasada na coragem, no orgulho e, portanto, na capacidade de fúria e vingança - a capacidade de ira. Desse modo, Sloterdijk escreve um livro inteiro - “Ira e tempo” (Estação Liberdade, 2012) - segundo uma visão que nota esses sentimentos nem sempre nobres. Ele faz uma história intelectual levando em consideração a inveja e a vingança como motores históricos. Como ele próprio diz, trata-se de uma história antes timótica que erótica. Uma história que vê as motivações humanas como em busca antes de reconhecimento que de prazer ou qualquer outra coisa.
Muitos leram Fukuyama apenas para dizer que se tratava de um conservador a mais. Seria apenas um aproveitador tripudiando sobre o “fim do comunismo” e falando, como um neoarauto da direitista Seleções do Reader´s Digest, que teríamos enfim terminado nossa epopeia na Terra na adoção acrítica do american way of life. Por não verem em Fukuyama uma girafa de neurônios avariados, Rorty e Sloterdijk (1) puderam lê-lo, ainda que criticamente, de modo produtivo para eles próprios e, enfim, para a nossa literatura filosófica.

É assim que temos de ler todo conservador? Não! Mas um conservador filósofo, talvez sim. Não há razão para colocar olhos naquelas partes que qualquer um que não quisesse ser chamado de ranheta e caduco, não insistiria em repetir. Penso que há boas razões para ler um filósofo conservador sem dar muita bola para o que ele fala segundo gostos políticos, e assim ficar mais livre para averiguar o que diz no âmbito propriamente filosófico. Em outras palavras: um filósofo conservador vale ser lido antes como filósofo que como conservador. Desde o colégio, quando o professor de história nos fazia ler Tocqueville, isso já era uma verdade que, depois, na universidade, eu muitos colegas deixamos de lado, para logo em seguida ter de retomar. Caso não tivéssemos retomado, nós é que teríamos nos transformado em girafas com neurônios avariados.
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***Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
(1) Tenho utilizado já há algum tempo, para o meu próprio filosofar, esses dois filósofos. Um dos livros mais recentes em que eles me dão apoio é “A nova filosofia da educação” (Ed. Manole, 2013), junto com a filósofa Susana de Castro, professora na UFRJ.
Na foto: Foto: Francis Fukuyama
Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-09-28/para-que-serve-um-filosofo-conservador.html

sábado, 28 de setembro de 2013

" O sol dos guarda - chuvas "








Tenho uma dor infinita dos guarda-chuvas abandonados pelas calçadas da cidade. Toda vez que nossa urbe incorpora Macondo, onde choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias, os restos mortais dessa família-morcego ficam espalhados pelas ruas e praças, especialmente pelas paradas de ônibus – a roda dos enjeitados da espécie envaretada.

Guarda-chuvas são seres quase animados, alguns até se abrem por conta própria. Funcionam como extensão do corpo, do braço humano. Servem de proteção, abrigo e companhia. Não merecem o tratamento ingrato que muitas pessoas lhes dão. Basta uma varetinha torta, uma ponta de pano solta e lá vai a bengala vestida para o brejo. Sem dó nem piedade.

Sinceramente, acho que os abandonadores deveriam ser punidos. Talvez possam ser enquadrados na legislação que está sendo gestada para reprimir quem joga lixo na rua, com os devidos agravantes para um objeto tão carente de afeto. Ou mesmo no Código Penal, que tem um artigo específico para abandono de incapaz. Um guarda-chuva destrambelhado é incapaz de se erguer sozinho, de abrir as suas asas e sair do lugar em que foi jogado. Mesmo em dias de vento, o máximo que eles conseguem é dar três ou quatro passos, antes de desabarem inertes sob o peso da haste em forma de jota.

Culpa dos fabricantes, argumentarão os infratores, alegando que a qualidade é tão ruim, que os produtos se tornam descartáveis. Culpa dos chineses, dirão alguns mais xenófobos, lembrando que quinquilharias oriundas da Ásia costumam se desmanchar antes de serem usadas. Nada disso, porém, isenta o sujeito da responsabilidade no abandono.



Em compensação, ainda tem neste mundo quem se preocupe com os guarda-chuvas extraviados. Além de remanescentes oficinas de conserto, cada vez mais raras, de vez em quando aparece alguém mais criativo para dar sobrevida às sombrinhas sequeladas. Outro dia, descobri que uma vizinha minha recolhe guarda-chuvas abandonados para transformá-los em bolsas. Retira o pano pacientemente, recorta de acordo com os seus moldes, costura e dá um formato elegante ao novo objeto, que voltará a acompanhar algum dono pelas ruas. Achei a ideia tão boa, que até andei recolhendo algumas peças extraviadas para presenteá-la.

Só pelo prazer de imaginar que aqueles objetos descartados depois de enfrentarem bravamente chuvas e tempestades para proteger seus donos voltarão a viver a glória de um dia de sol, pois até na enfeitiçada Macondo ele voltou a brilhar.



" Mujica ; * humanidade ocupou o templo com o deus mercado "


Destoando dos discursos feitos pelos seus pares durante a 68ª Assembleia Geral da ONU, o presidente uruguaio José Mujica criticou veementemente o consumismo e defendeu que “enquanto o homem recorrer à guerra quando fracassar a política, estaremos na pré-história.

"É através da ciência e não dos bancos que o planeta deve ser governado.

“Pensem que a vida humana é um milagre e nada vale mais que a vida.

E que nosso dever biológico é acima de todas as coisas, impulsionar e multiplicar a vida.

Deveríamos ter um governo para a humanidade que supere o individualismo e crie cabeças políticas”.

O presidente uruguaio Pepe Mujica voltou a surpreender o mundo com o seu discurso desassombrado na última terça-feira na Assembleia Geral das Nações Unidas. Aos jornais uruguaios, Mujica prometera um “discurso exótico” e de fato fugiu do protocolo ao dizer que “tem angústia pelo futuro” e que a nossa        “primeira tarefa é salvar a vida humana”.
“Sou do Sul e carrego inequivocamente milhões de pessoas pobres na América Latina, carrego as culturas originárias esmagadas, o resto do colonialismo nas Malvinas, os bloqueios inúteis a Cuba, carrego a consequência da vigilância eletrônica, que gera desconfiança que nos envenena inutilmente. Carrego a dívida social e a necessidade de defender a Amazônia, nossos rios, de lutar por pátria para todos e que a Colômbia possa encontrar o caminho da paz, com o dever de lutar pela tolerância.”

A humanidade sacrificou os deuses imateriais e ocupou o templo com o “deus mercado, que organiza a economia, a vida e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos a frustração, a pobreza, a autoexclusão”. No mesmo tom, sublinhou o fracasso do modelo adotado no capitalismo: “o certo hoje é que para a sociedade consumir como um americano médio seriam necessários três planetas. A nossa civilização montou um desafio mentiroso”.

Para o chefe de Estado, que já havia surpreendido o mundo com o seu discurso durante a cúpula Rio+20, criamos uma “civilização que é contra os ciclos naturais, uma civilização que é contra a liberdade, que supõe ter tempo para viver, (…) é uma civilização contra o tempo livre, que não se paga, que não se compra e que é o que nos permite ter tempo para viver as relações humanas”, porque “só o amor, a amizade, a solidariedade, e família transcendem”. “Arrasamos as selvas e implantamos selvas de cimento. Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com remédios. E pensamos que somos felizes ao deixar o humano”.

Mujica defendeu a utilidade da produção de recursos no mundo: temos que “mobilizar as grandes economias não para produzir descartáveis com obsolescência programada, mas para criar coisas úteis para a população mundial. Muito melhor do que fazer guerras. Talvez nosso mundo necessite de menos organismos mundiais, destes que organizam fóruns e conferências. E que no melhor dos casos ninguém obedece”. “O que uns chamam de crise ecológica é consequência da ambição humana, este é nosso triunfo e nossa derrota”.

E defendeu que é através da ciência e não dos bancos que o planeta deve ser governado.

Paz e guerra

“A cada 2 minutos gastam-se 2 milhões de dólares em orçamentos militares. As investigações médicas correspondem à quinta parte dos investimentos militares”, criticou o presidente ao sustentar que ainda estamos na pré-história: “enquanto o homem recorrer à guerra quando fracassar a política, estaremos na pré-história”, defendeu o mandatário ao criticar a política da guerra.

Assim, criamos “este processo do qual não podemos sair e causa ódio, fanatismo, desconfiança, novas guerras; eu sei que é fácil poeticamente autocriticarmos. Mas seria possível se firmássemos acordos de política planetária que nos garanta a paz”. Ao invés disso, “bloqueiam os espaços da ONU, que foi criada com um sonho de paz para a humanidade”.

O uruguaio também abordou a debilidade da ONU, que “se burocratiza por falta de poder e autonomia, de reconhecimento e de uma democracia e de um mundo que corresponda à maioria do planeta”.

“Nosso pequeno país tem a maior quantidade de soldados em missões de paz e estamos onde queiram que estejamos, e somos pequenos”.
Dizemos com conhecimento de causa, garantiu o mandatário, que “estes sonhos, estes desafios que estão no horizonte implicam lutar por uma agenda de acordos mundiais para governar nossa história e superar as ameaças à vida”. Para isso é “preciso entender que os indigentes do mundo não são da África, ou da América Latina e sim de toda humanidade que, globalizada, deve se empenhar no desenvolvimento para a vida”.

“Pensem que a vida humana é um milagre e nada vale mais que a vida. E que nosso dever biológico é acima de todas as coisas, impulsionar e multiplicar a vida e entendermos que a espécie somos nós” e concluiu: “a espécie deveria ter um governo para a humanidade que supere o individualismo e crie cabeças políticas”.

Veja o Presidente Uruguaio falando na ONU( em espanhol):
http://www.youtube.com/watch?v=-E6d_kZ-QPY&feature=share&list=PL1XKbDJ7GiOF-ZAnyoNCl_iA3WhHOk43K
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Reportagem por Vanessa Silva - Portal Vermelho
Fone: Carta Maior on line, 27/09/2013

" Mujica "

Claúdia Laitano*
O que Mujica coloca em xeque são os valores da civilização contemporânea: “Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos. Somos felizes longe da convivência humana?
Essa é a pergunta que temos que nos fazer”.

Sou do Sul, venho do Sul. Começa assim, com uma afirmação enfática de identidade que particularmente nos toca, o histórico discurso que o presidente uruguaio José Mujica proferiu na ONU esta semana.
A “esquina do Atlântico e do Prata” que Mujica menciona como coordenada geográfica e mental fica na nossa rua, defronte a nossa casa. Seu “eu sou do Sul”, porém, não é bravata ou fanfarra patriótica, mas apenas um ponto de partida.
Mujica não foi até Nova York para celebrar a nostalgia ou um orgulho provinciano (“não vivo para reverberar memórias”), mas para lembrar que, da periferia de onde ele vem às metrópoles onde se reúnem os grandes líderes mundiais, é do interesse de todos construir para o futuro uma pátria moral que transcenda fronteiras, individualismos e mesmo inclinações políticas.
Foi como embaixador da nação invisível dos homens que colocam a defesa da humanidade como valor acima de todos os outros que Mujica falou terça-feira para o mundo.
E como falou. (O discurso, publicado na íntegra em Zero Hora Online, pode ser visto, também na íntegra, no You Tube.)

Mujica é de uma sabedoria serena e engajada ao mesmo tempo. Defende a tolerância, a sobriedade e a simplicidade que demonstra, na prática, como homem e como político. Fala de amor, amizade, aventura, solidariedade. Elogia a ciência, mas não descarta as utopias. Critica o consumismo e uma vida cotidiana baseada apenas nas regras de mercado. Condena as guerras e a quantidade de dinheiro que se desperdiça com elas.
É um discurso anticapitalista, sem dúvida, mas não apenas. O que Mujica coloca em xeque são os valores da civilização contemporânea: “Enfrentamos o sedentarismo com esteiras, a insônia com comprimidos, a solidão com eletrônicos. Somos felizes longe da convivência humana? Essa é a pergunta que temos que nos fazer”.

Com a autoridade de reconhecido homem de bem, mais do que de grande estadista, Mujica propôs ao mundo uma pausa para refletir sobre quem realmente está no volante do planeta em que estamos todos, mais ou menos passivamente, instalados: “Nem os grandes Estados nem as transnacionais e muito menos o sistema financeiro deveriam governar o mundo humano, mas sim a política entrelaçada com a sabedoria científica. Ali está a fonte”.

Nos últimos dias de setembro, mês em que celebramos a nostalgia de uma glória imaginada e o pensamento mágico de que a identidade é um valor em si mesma, esse belo e inspirador discurso me fez, mais do que nunca, ter orgulho de ser do Sul. Não pela história ou pela geografia, nem mesmo porque este é o canto do mundo em que me tocou viver e amar, mas simplesmente por ter o privilégio de ser vizinha do senhor Mujica e dos seus sonhos, não impossíveis, de fraternidade e humanismo.

Meu Sul é o dele.
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* Escritora. Colunista da ZH
Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4284294.xml&template=3916.dwt&edition=22840&section=70

" Os que fazem a diferença "

 

J.J. Camargo*
É difícil saber quando começamos a gostar de uma pessoa. Não o gostar de querer bem, esse comum que reúne amigos, confraterniza parentes e repele desafetos. Falo do gostar de quem marcou nossas vidas e que, sem ele, pode ser que nem imaginemos como seríamos, mas temos certeza que seríamos outros, e menores. Ivan Faria Correa, cuja morte completou, recentemente, 36 anos, foi esse diferencial para mim. Nunca se preocupou em agradar ninguém. Ele simplesmente era. E sendo, seduzia.

Nosso primeiro encontro foi cruel. Depois de ter visto pela primeira vez um tórax aberto no Pronto Socorro, tinha passado a madrugada em claro na expectativa de que finalmente amanhecesse e eu pudesse contar para o mundo que era isso que ia fazer do resto da minha vida. Transbordando de adrenalina, finalmente cheguei ao Pavilhão e, feito o rapaz novo encantado da canção, e mesmo sabendo que ele costumava rejeitar estagiários, confessei que eu estava decidido a ser cirurgião torácico. Sacudindo a cabeça em aprovação, ele debochou: “Parabéns. Acho que não tens ideia do quanto não sabes nada, mas tenho certeza que chegaste ao melhor lugar para descobrir isso rapidamente”.

Não me cabia responder. O importante é que me aceitara, e o resto a gente resolveria depois. Ao menos ele decidira que haveria depois.

Nos primeiros tempos, deslumbrado com sua técnica prodigiosa, tentava inutilmente copiar todos os gestos, e depois, no convívio de escassos nove anos, foram inesgotáveis lições de como ser e o que evitar.

Passadas três décadas, ainda lembro com saudade da sua filosofia de bar, numa mistura de genialidade e irreverência, e de uma vez, em que ele interrompeu uma entrevista infrutífera com um paciente complicado para me ensinar: “Deste jeito não vais a lugar nenhum. Em conversa de louco tens de ser sempre o mais louco. Se não, ficas numa desvantagem insuportável”.

Tempos depois de sua morte, ao dar alta a um paciente idoso, operado de um câncer, expliquei-lhe que, a partir de então, iríamos revê-lo de seis em seis meses durante dois anos e, anualmente depois disso, em cinco anos. O velho, um fronteirista pachorrento, querendo fazer graça, olhou para a mulher e, com um ar debochado, perguntou: “Pois gostei do seu plano doutor, mas se eu morrer antes, como é que ficamos?”

Com a lembrança do Mestre ressuscitada naquele papo de pátio de hospício, respondi: “Se morrer antes, o senhor quebrou a combinação comigo e, por favor, não me apareça mais aqui”.

Inesquecível a cara dele olhando para a esposa com a expressão: “Meu Deus, ele é muito mais louco do que parecia”.

No mundinho monótono do politicamente correto, em que a criatividade está reprimida e a irreverência, amordaçada, precisamos festejar os que insistem em se rebelar contra o marasmo da mediocridade.

Anos depois, ao ler uma frase atribuída a Bill Gates, descobri que meu mestre não estava sozinho: “Para trabalhar aqui, não é preciso ser louco, mas se for, ajuda!”
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* Médico
Fonte: ZH on line, 28/09/2013

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

" Acaba sendo a pior idade "


Sergio Zacchi/Valor / Sergio Zacchi/Valor
Dez anos depois da instituição do Estatuto do Idoso, o balanço da aplicação da lei continua a ter mais
peso simbólico do que prático

A partir de terça-feira, serão realizados em todo o Brasil eventos com o objetivo de destacar o papel da pessoa idosa na sociedade. Em outubro é assim. Desde 2006, o dia 1º desse mês é dedicado à valorização do idoso. Até então, comemorava-se a data em 27 de setembro. Depois de o Estatuto do Idoso ter se transformado na lei 10.741 nesse dia do ano de 2003, decidiu-se mudar a data nacional e adequar o calendário ao da Organização das Nações Unidas (ONU) que, há 22 anos, instituiu a celebração como um marco internacional em sua política de ações para o envelhecimento. A assinatura do Estatuto encontrou o motivo simbólico para a criação no país do Dia do Idoso. A questão é que, dez anos depois, o balanço da aplicação da lei continua a ter mais peso simbólico do que prático. O debate, entre especialistas no tema, provocado pela efeméride, apesar de divergências de pontos de vista, chega a um conhecido consenso sobre legislação e democracia: a sociedade, muitas vezes, está despreparada para acompanhar no mesmo ritmo o avanço da lei.

Com 118 artigos, o Estatuto do Idoso sempre foi considerado peça sócio-jurídica indispensável na defesa dos direitos da população idosa. A dinâmica demográfica brasileira foi apenas uma das justificativas para a lei 10.741/2003. O país vive um envelhecimento populacional em ritmo acelerado. Em 2001, as pessoas com 60 anos ou mais representavam 9% do total da população. Em 2011, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) constatou um salto para 12,1%, que, em números absolutos, significa aumento de 15,5 milhões para 23,5 milhões de idosos em uma década. As projeções apontam para uma proporção, em 2030, superior a 14% - parâmetro usado pela ONU para definir uma sociedade como envelhecida.

No Disque 100, criado para receber denúncias, os casos de abandono de idosos respondem por 70% dos telefonemas

A necessidade de legislação específica surgiu na onda de uma tendência global de usar a idade cronológica para a concepção de políticas públicas (assim como de direitos e deveres). E ficou estabelecido que, sim, a idade importa - a despeito de comportamentos contemporâneos suscitados por um envelhecimento mais saudável. Outra motivação para a lei, e talvez a principal, foi a incapacidade da sociedade brasileira de cumprir a contento a Constituição de 1988, o que amplia o déficit no atendimento aos direitos da pessoa idosa, distanciando o país da adequação à orientação do Plano de Ação para o Envelhecimento, instituído pela ONU em 2002, do qual o Brasil é signatário. O Estatuto foi um desdobramento da orientação internacional, provocou a instituição da lei do Plano Nacional do Idoso (8.842/1994), e o estabelecimento de diretrizes para a sociedade. No entanto, até agora, os artigos mais lembrados do Estatuto são os contestados. Pouco se fala de artigos amplamente ignorados. "Há um descaso absoluto, mas o maior problema, o porquê de não funcionar, é que tudo no texto é genérico, não tem o como. É uma legislação feita só para apagar incêndio e ainda reforça uma imagem negativa da pessoa idosa", critica a geriatra Karla Cristina Giacomin, presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI) entre 2010 e 2012.

Entre os inúmeros artigos desconhecidos, e desrespeitados, do Estatuto está o de número 15, que prevê a capacitação e a reciclagem de geriatras. Se levado a sério, provavelmente seria um ponto a mais na polêmica do programa Mais Médicos, se atendida a exigência de um especialista em todos os postos de unidade básica de saúde. No parágrafo 3º, a lei proíbe aos planos de saúde "a discriminação do idoso pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade". O artigo 24 obriga "os meios de comunicação a criar e manter espaços ou horários especiais voltados aos idosos, com a finalidade informativa, educacional, artística e cultural sobre o processo de envelhecimento". O artigo 22 inclui o tema nos currículos escolares "em todos os níveis" e o 25 prevê a criação de material didático especial para o idoso que queira estudar. Outros artigos foram aplicados e transformados até em leis específicas, como a prioridade na restituição do imposto de renda, e alguns são observados de forma desigual, conforme o lugar do país.

De acordo com Karla Cristina, um dos maiores problemas para a materialização do que manda o Estatuto é o fato de o poder público dificultar a implementação dos instrumentos de controle da execução da política orçamentária, papel designado pela lei 8.842/1994 (Política Nacional do Idoso) aos Conselhos (federal, estaduais e municipais) dos Direitos do Idoso. Até agora, segundo ela, existem conselhos em menos de 20% dos municípios brasileiros. O número do governo é de 51,5%, percentual alcançado neste ano.
Agência Brasil / Agência Brasil
Karla Cristina Giacomin critica a falta de recursos para os Conselhos e as seguidas trocas de jurisdição
na burocracia federal para aplicação de políticas na área
A quantidade talvez seja menos importante. O problema é a qualidade da atuação desses conselhos. "Eles atuam em condição quase pro-forma: não possuem recursos próprios, para administração autônoma, não deliberam sobre orçamento nem são consultados (como prevê o artigo 8º da lei que instituiu a Política Nacional do Idoso) sobre decisões no setor", diz Karla Cristina. Ela também cita a constante troca de jurisdição na burocracia federal. Em dez anos, a política do idoso passou por cinco ministérios. Ou seja, um novo ministério a cada dois anos. De 1994 a 2003, a coordenação dessa política era do Ministério da Previdência e Assistência Social; de 2003 a 2008, esteve com o da Assistência Social; de 2008 a 2009, com o do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; em 2009, passou para o Ministério da Justiça; em 2010, foi para a Secretaria de Direitos Humanos (que tem status de ministério). "Cada mudança compromete a continuidade e o CNDI é gravemente atingido." Detalhe: no decreto de criação da Secretaria de Direitos Humanos (7.256/2010), a política do idoso não aparece entre as atribuições da pasta. O conselho não possui espaço físico ou corpo técnico, conta apenas com um auxiliar administrativo (cedido pela Secretaria) e a coordenação é feita, na prática, por um funcionário em cargo de confiança. "Como garantir que a orientação da presidência do conselho prevalecerá se o cargo é comissionado e, portanto, de confiança do gestor da pasta?"

Karla Cristina também critica a influência política nos conselhos, nos quais os "representantes" da sociedade civil são indicados por prefeitos, governadores ou secretários. Muitos gestores públicos ocupam a presidência indefinidamente, o que acontece também com os mandatos de conselheiros. "Se as decisões dos conselhos são ignoradas e não resultam em mudanças para os idosos, isso desmobiliza a sociedade civil", afirma Karla Cristina, que representa no CNDI a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.

Outro testemunho, na mesma linha crítica, é do advogado e promotor Alexandre de Oliveira Alcântara, representante da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público no CNDI: "Pude constatar uma espécie de receio ou desconfiança dos poderes executivos em relação à contribuição dos conselhos. Há conselhos sem sede, sem telefone, sem endereço eletrônico institucional".

No decreto que criou a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, a política do idoso não aparece entre
as atribuições da pasta

A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário (PT-RS), aceita parte das críticas e reconhece dificuldades em atender a todas as demandas da Política do Idoso. "O balanço de dez anos é muito positivo em termos de afirmação da lei, de reconhecimento da importância fundamental do idoso e o Estatuto é o instrumento mais importante para as políticas públicas diante do envelhecimento da população brasileira", afirma. Seu maior desafio, ela mesma aponta, é assegurar qualidade de atendimento ao idoso nos serviços públicos de saúde e assistência social e a superação do abandono e da violência. "Precisamos ter a mesma excelência da previdência social pública e, principalmente, da assistência social, que garante um benefício específico ao idoso sem renda. Isso é uma distinção singular do Brasil. A questão do idoso brasileiro não é renda, tem um lastro de seguridade social. O problema é a qualidade dos serviços."

Diante das críticas da ex-presidente do CNDI, a ministra disse ao Valor: "Não conseguimos superar os limites orçamentários. Nosso desafio é grande nesse sentido, ainda que o ministério tenha concentrado esforços no seus desempenho, mas reconheço que a estrutura do CNDI é pequena. É preciso melhorar, para garantir qualidade técnica".

Maria do Rosário lembra que a decisão orçamentária "é mais ampla, depende de outros ministérios", da área econômica sobretudo, e a pasta foi pressionada para reduzir gastos, ainda que numa situação de demanda crescente de serviços. A ministra cita os dados do serviço "Disque 100", que atende às denúncias ou reivindicações da população idosa. Em 2011, primeiro ano de funcionamento, foram 7.160 atendimentos. Em 2012, o número triplicou, para 21.404. As denúncias de abandono de idosos respondem por 70% dos telefonemas e os abusos financeiros, por 40%. Resta o problema, não equacionado, de dar consequência aos telefonemas. Maria do Rosário afirma que a secretaria está empenhada em formar promotores, defensores e delegados especializados em questões de interesse do idoso, para encaminhar as denúncias e aparelhar as delegacias do idoso no país.
Agência Brasil / Agência Brasil
Maria do Rosário vê balanço "muito positivo" em termos de afirmação da lei, mas o maior desafio, ela mesma aponta,
é assegurar qualidade de atendimento ao idoso nos serviços públicos de saúde,
assistência social e a superação do abandono e da violência
A contenção de gastos vem adiando a criação da subsecretaria dedicada ao idoso. No organograma da secretaria existem três subsecretarias: Pessoa com Deficiência, Criança e Defesa e Promoção dos Direitos Humanos. A Política Nacional do Idoso está nesta última. No entanto, como a ministra também reconhece, a inexistência de uma subsecretaria específica dificulta a articulação supraministerial dos temas relacionados ao idoso, que são, em sua maioria, interdisciplinares. Em quase todos os países com população envelhecida, principalmente os europeus, há um ministério para o tema. Nesses países, o maior dos desafios é a questão da formação de cuidadores profissionais. O assunto já fez surgir até uma nova área de estudo na França e nos Estados Unidos: a economia do cuidado ("economy of care"), expressão criada pela socióloga Viviana Zelizer, da Princeton University. Nos Estados Unidos, segundo o instituto de pesquisa IBIS World, esse setor movimenta US$ 120,6 bilhões, e cresce 3,6% ao ano, muito em decorrência dos 5 milhões de americanos com Alzheimer, o mesmo número que, calcula-se, deverá ser encontrado no Brasil em 2050.

Até 2008, o assunto dos cuidadores estava com o Ministério da Saúde. A pasta lançou o Programa Nacional de Formação de Cuidadores de Idosos por meio das 36 escolas técnicas do Sistema Único de Saúde (SUS). A meta anunciada pelo governo era ambiciosa: certificar 65 mil cuidadores até 2011. Em outubro daquele ano, o número de certificados era inferior a 1.500. O governo federal havia transferido o programa para o âmbito municipal. No entanto, os prefeitos protelam a criação de cursos em suas cidades, pois temem que o segundo passo deva ser a abertura de concursos para contratar esses profissionais qualificados, o que sobrecarregaria a folha de pagamento do funcionalismo.

Na prática, a formação de cuidadores, atualmente, está entregue às leis de mercado. O projeto de lei sobre o reconhecimento da profissão está parado na Câmara dos Deputados. "A formação de cuidadores deve ser de atribuição do Ministério da Educação", diz Maria do Rosário. "Aliás, consideramos que já é, pois [aquela pasta] tem a rede, tanto em nível médio como superior. É o MEC que deve regulamentar os cursos e formar os profissionais." O MEC informa que há cursos federais em todo o país, com cerca de 10 mil alunos matriculados. O problema é que sobram vagas e o número de formados está longe de atender à demanda.

"Há um descaso absoluto, mas o maior problema,
o porquê de não funcionar, é que tudo no texto é genérico,
não tem o como"

Uma das formas de mitigar o descumprimento do Estatuto do Idoso é a ampliação dos recursos financeiros para aplicação em políticas públicas. Esses recursos, segundo prevê o PNI há quase 20 anos, deveriam sair do Fundo Nacional do Idoso, em caráter complementar ao orçamento público. Em 2012, segundo a ONG Contas Abertas, a União desembolsou pouco mais de R$ 2 milhões (cerca de 8%) do total de R$ 24,4 milhões de recursos disponíveis e autorizados para ações relativas aos idosos. Depois de quase duas décadas para sair do papel, no entanto, o fundo ainda tem poucos recursos. Suas fontes de receita são o orçamento da União, contribuições de instituições internacionais, doações de pessoas físicas e jurídicas, com desconto de imposto de renda, e aplicações de multas por desrespeito ao Estatuto do Idoso. Em 2012, porém, primeiro ano de captação, depois de longa tramitação burocrática, o fundo recebeu parcos R$ 188 mil reais de doações. Este ano, entraram R$ 2,21 milhões de doações e mais R$ 1,4 milhão do Tesouro Nacional. Boa parte desse dinheiro servirá para custear o 9º Encontro Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, em dezembro. A questão dos recursos passa ainda pela implementação dos fundos estaduais e municipais. O grande problema é que a eficácia dos gastos é proporcional à independência política dos conselhos. É comum o CNDI receber denúncias sobre prefeitos que querem tomar a gestão dos fundos para si, sem interveniência dos conselhos municipais.

A demora em efetivar a mais importante lei de proteção da pessoa idosa esbarra, dez anos depois, em uma polêmica sobre o próprio conceito do sujeito-alvo do legislador. Quando o então deputado Paulo Paim (PT-RS), hoje senador, apresentou em 1997 o projeto de lei que deu origem ao Estatuto, o idoso tinha um perfil bastante diferente. A lei considera idosa a pessoa com mais de 60 anos - de acordo com parâmetro da ONU para os países pobres (em outros países, o marco é de 65 anos). Ocorre que, no entendimento de estudiosos do envelhecimento e de alguns legisladores brasileiros, o Estatuto deveria alterar a idade legal para 65 anos. No Congresso Nacional, há projetos de lei em defesa da mudança, amplamente combatida pelo CNDI e outras entidades e instituições ligadas aos idosos.

"Não se justifica a existência de preconceitos,
nem de privilégios para os idosos, pois eles
não vivem isolados na sociedade"

Com um texto dedicado à efeméride, "Estatuto do Idoso: Avanço e Contradições", a economista Ana Amélia Camarano, do Ipea, uma das maiores autoridades na pesquisa sobre o tema, surpreendeu o meio acadêmico e despertou amplo debate ao questionar se a definição de população idosa estaria ultrapassada. Ela destaca a heterogeneidade da população idosa (maior do que em todas as outras faixas etárias) e os critérios biológicos inseridos no conceito de idoso. "Às novas demandas trazidas pelo processo de envelhecimento somam-se as necessidades sociais básicas não resolvidas, como educação, saúde e segurança para o conjunto da população. As políticas para a população idosa devem promover a solidariedade entre as gerações. Isso significa equilibrar as prioridades das ações para os idosos com as de outros grupos populacionais", escreveu.

Embora concorde com a necessidade de leis e políticas específicas para cada idade, Ana Amélia diz que esse "reconhecimento não justifica a existência de preconceitos, nem de privilégios para os idosos, pois eles não vivem isolados na sociedade". A economista aponta contradições no Estatuto e em outras leis brasileiras em relação à idade. Ora são 60 anos, ora 65. A idade mínima para aposentadoria é de 65 anos para homens e 60 para mulheres, o benefício assistencial por idade requer 65 anos, o transporte gratuito idem (quando ela escreveu seu artigo, antes da lei, recentemente aprovada, que reduziu o piso para 60 anos). "Não existe um divisor de águas claro entre as várias fases da vida."
                                    
Esse debate, que aqui está apenas no começo, ocorre em todos os países em processo de envelhecimento. O Brasil vem discutindo o tema do envelhecimento com lentes fiscalistas, centradas obsessivamente na questão previdenciária, mas, aos poucos, outras questões são suscitadas pela dinâmica demográfica.
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Reportagem Por Jorge Felix | Para o Valor, de São Paulo
Fonte: Valor Econômico on line, 27/09/2013

" O Fascínio discreto de Pôncio Pilatos "


Giorgio Agamben*

O texto que antecipamos abaixo é retirado da conferência que o filósofo italiano Giorgio Agamben proferirá neste sábado no evento Torino Spiritualità, por ocasião do lançamento do seu livro Pilato e Gesù (Ed. Nottetempo, 68 páginas). A nona edição do Torino Spiritualità é dedicada este ano ao tema
"O valor da escolha".

Por que Pilatos? Por que esse homem, o prefeito da Judeia entre os anos 26 e 36, se impôs com tanta urgência à minha atenção, quase me obrigando a refletir e a escrever sobre ele, sem me dar descanso, até que, interrompendo a escrita de uma obra em andamento, levei a termo, em três meses frenéticos, o livreto sobre o qual vim falar a vocês?

Talvez com a mesma força ele se impôs a Bulgakov, forçando-o a inserir na sua obra-prima, sem razão aparente, o estupendo capítulo sobre Pôncio Pilatos, que não é Bulgakov, mas o próprio Satanás a narrar. Certamente, o seu nome, Pôncio Pilatos (talvez o homem com a lança, pila, ou, mais provavelmente, com o barretinho em formato de cone que os romanos chamavam de pilleus) é o único nome, além do de Jesus e de Maria, que aparece no credo em que os cristãos compendiam, há dois milênios, a sua fé: "padeceu sob Pôncio Pilatos".

Por que Pilatos? Para provar, disse-se com razão, o caráter histórico da paixão de Jesus, que ocorreu naquele certo dia, sob Pôncio Pilatos, justamente. Mas por que nomear justamente ele, um obscuro vigário e não, segundo o costume romano, o imperador Tibério? Porque, se responderá, ele não é somente um nome, é um personagem de carne e osso, talvez o único verdadeiro personagem dos Evangelhos. Os outros ou são figuras já de algum modo sacras, como João Batista e os Apóstolos, ou saem apenas por um momento da multidão anônima que circunda Jesus, para servir de exemplo, como o bom samaritano, ou da profecia, como Lázaro, que ressurge da morte.

Mas, na narrativa dos Evangelhos e principalmente em João, ele, Pilatos, é algo menos e, ao mesmo tempo, muito mais: um homem do qual conhecemos as hesitações, o medo, o ressentimento, o sarcasmo, as suscetibilidades, a hipocrisia (como quando se lava as mãos para se purificar do sangue de um justo).

É, enfim, o autor de frases memoráveis, como a famigerada réplica a Jesus que quer testemunhar a verdade: "O que é a verdade?". Ou como o lema com o qual silencia os judeus que lhe pedem para mudar a inscrição sobre a cruz: "O que escrevi, escrevi". É ele, por fim, que, pouco antes de entregar Jesus ao suplício, pronuncia as palavras fatídicas: "Ecce homo, eis o homem!".


As razões pelo interesse certamente não faltavam, se Nietzsche pôde escrever que Pilatos "é a única figura dos Evangelhos que merece respeito". No entanto, não era isso que me levava a reler os textos, a espiar cada gesto seu, a pesar cada palavra sua. Parecia-me, de fato, que no encontro (fugaz: durou cerca de seis horas, desde o início da manhã até a hora sexta) entre Pilatos e Jesus estava em questão um evento enorme e inédito, que naquelas seis horas, para além do drama da paixão e da redenção, sobre o qual tanto se refletiu e não se deixa de refletir, talvez tenha se consumado também outro evento, não menos decisivo, e que, para mim, se tratava de entender precisamente isso.

O que acontece entre esses dois homens que estão um na frente do outro e se falam no pretório de Jerusalém? Um, o vigário de César, que o quadro de Ticiano no museu de St. Louis mostra ricamente vestido, com a cabeça coberta por um chapéu cravejado de pedras preciosas e com as mãos aneladas (imagem acima), está investido de todos os poderes mundanos ("Tu não sabes", diz a Jesus, "que tenho o poder de te libertar e de te crucificar?"), o outro inerme, que Ticiano retrata nu e com as mãos amarradas e que, mesmo assim, declara ao prefeito: "O meu reino não é deste mundo".

Quando Jesus é levado diante de Pilatos, já foi dito, dois mundos estão imediata e irreconciliavelmente de frente, o dos fatos e o da verdade. Mas não é suficiente: nesse pretório de província, cujo improvável local os arqueólogos acreditaram ter identificado, quem se enfrenta não são somente os fatos e a verdade: aqui, como nunca em outro lugar na história do mundo, a eternidade cruzou a história em um ponto exemplar, o temporal foi atravessado pelo eterno.

Importava-me entender isso, esse grito e essa recíproca perfuração entre os dois mundos era o quebra-cabeça que eu senti que devia resolver.

Mas a esse enigma logo se sobrepunha outro, ainda mais tenaz, mais obscuro, e, nele, o próprio Pilatos era o elemento decisivo, em todos os sentidos. Por que o cruzamento entre os dois mundos, o humano e o divino, o histórico e o que não tem história, tem a forma de um processo?
Dei-me conta, lentamente, mas com clareza cada vez mais crescente, que esse, e não outro, era o problema com o qual eu tinha que me deparar, com o qual, "no pavimento de pedra que em hebraico se diz Gabatá", tiveram que se deparar, em última análise, cada um a seu modo, tanto Pilatos, o juiz, quanto Jesus, o acusado.

O encontro entre o divino e o humano tem a forma de um processo, de uma krisis (krisis em grego significa o juízo em um processo). Mas justamente aqui as coisas se complicavam de modo inextrincável. Porque, enquanto eu analisava o texto do Evangelho de João, tornava-se cada vez mais evidente para mim que, no término da sexta hora, o juiz não tinha pronunciado um juízo, tinha simplesmente "entregue" Jesus – assim dizem concordemente os evangelistas – aos sinedritas e aos carnífices. Durante toda a duração do processo, Pilatos, aliás, só tinha tergiversado, tentando primeiro se declarar incompetente e remeter o juízo a Herodes, propondo depois uma anistia para a Páscoa, finalmente fazendo com que o acusado fosse flagelado para isentá-lo da acusação maior.

Mas quando todo expediente, toda tergiversação resultara vã, ele não pronuncia o
juízo, limita-se a "entregar" Jesus. Houve um processo – ou, ao menos, um simulacro de processo: mas ele não concluiu com um juízo. Ainda mais enigmático se tornava o meu problema. O que é, de fato, um processo sem juízo? E o que é uma pena – neste caso, a crucificação – que não deriva de um juízo?
Pilatos, o obscuro procurador da Judeia, que devia agir como juiz em um processo, se recusa a julgar o acusado; Jesus, cujo reino não é deste mundo, aceita se submeter ao juízo de um juiz, Pilatos, que se recusa a julgá-lo.

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* Filósofo italiano.
O artigo foi publicado no jornal La Stampa, 25-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Fonte: IHU on line, 27/09/2013

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

" Partidos Demais "

EDITORIAIS ZH

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou nesta semana a criação de mais dois partidos políticos, elevando o espectro nacional de siglas para 32. O total pode aumentar até o dia 5 de outubro próximo, data limite para filiação de candidatos que querem participar das eleições do próximo ano. Entre os casos pendentes de aprovação, está a Rede Sustentabilidade, da possível candidata à Presidência da República Marina Silva. A questão é que, ao invés de contribuir para reforçar a diversidade da democracia brasileira, um número tão excessivo de legendas, na maioria das vezes, serve mais para atender aos interesses de projetos pessoais de políticos e para confundir os eleitores.

As recentes manifestações de rua no país ajudaram em muito a escancarar a descrença da sociedade de maneira geral em relação a seus representantes, tanto em postos no Executivo quanto no Legislativo. Os próprios partidos se encarregam de reforçar uma imagem pouco construtiva entre os eleitores toda vez que seus integrantes se envolvem em denúncias de corrupção.

Uma das agremiações recém aprovadas – a tempo, portanto, de lançar candidatos pela sigla em 2014 – já surge sob denúncias de fraudes no recolhimento de assinaturas necessárias para sua legalização. O fato de nem a pressão popular assegurar maior preocupação com questões éticas entre líderes políticos contribui para aumentar ainda mais a falta de confiança dos eleitores na capacidade das legendas fornecerem respostas à sociedade.

A questão é que, no Brasil, além de surgirem em grande parte por motivações pessoais, legendas políticas se limitam muitas vezes a perseguir objetivos particulares. Entre os reais interesses, destacam-se, no caso, as verbas dos fundos partidários e facilidades exclusivas de políticos, como a de arranjar emprego para correligionários, incluindo amigos e familiares.

A eliminação desse tipo de prática só seria possível com uma profunda mudança cultural, a ser perseguida de forma contínua, durante muito tempo. O país, porém, poderia encurtar o caminho se seus representantes no Congresso entendessem a importância de uma reforma política ampla, preocupada em assegurar o surgimento e a continuidade de partidos mais compromissados com conteú- dos programáticos e menos preocupados com técnicas de marketing.

A proliferação de partidos sem qualquer significado e de baixa representatividade está na raiz da corrupção, pois muitas dessas agremiações são constituídas apenas para receber recursos do Fundo Partidário e para negociar apoio e espaço no rádio e na televisão. A permissividade dos próprios tribunais eleitorais, que desconsideram suspeitas de fraudes, gera esse falso pluripartidarismo, que só degrada o processo político-eleitoral no país.

" O Dilema da Inclusão "

                                                         ARTIGOS - Ana Affonso* 
 



A política de educação inclusiva adotada pelo Ministério da Educação orienta os sistemas de ensino para a garantia do ingresso dos estudantes com surdez nas escolas regulares, mediante a oferta da educação bilíngue, dos serviços de tradução e de interpretação de libras/língua portuguesa e do ensino de libras.

Ocorre que, ao enfrentar a discriminação, corre-se o risco de incidir em outro tipo de violência: a negação das diferenças, prejudicando a riqueza inerente a cada cultura e pessoa. É isso que a comunidade surda brasileira, composta por surdos, familiares, profissionais de diferentes áreas, pesquisadores e simpatizantes surdos e não surdos, com o apoio da comunidade surda internacional, aponta como equívoco da atual política federal.

A luta é contra o fechamento de escolas de surdos e pela ampliação da rede de educação bilíngue no país. Lembramos desta luta na semana em que é comemorado o Dia Nacional do Surdo, em 26 de setembro, e no momento em que debatemos o tema na Assembleia Legislativa. Segundo o censo do IBGE de 2010, cerca 5% da população brasileira apresenta deficiência auditiva, sendo cerca de 2 milhões de pessoas com deficiência considerada severa e 344,2 mil pessoas surdas.

As pessoas surdas não precisam apenas de educação especial inclusiva. Elas necessitam, sobretudo, de educação bilíngue que leve em conta sua cultura e identidade na comunidade escolar. Isso requer a interação com professores sinalizadores fluentes e em meio a uma comunidade linguística sinalizadora, que inclui colegas sinalizadores. A inclusão de alunos surdos em escolas da rede de ensino regular limita essa possibilidade, favorecendo a interação com colegas e professores ouvintes, mas, por outro lado, fragilizando sua própria cultura e identidade.

O Ministério da Educação está trabalhando para a superação da discriminação na educação, mediante a política de inclusão com garantia de apoio pedagógico de acordo com as necessidades de cada um. Melhor seria se essa medida não fosse uma obrigatoriedade, garantindo o direito fundamental à liberdade individual, sem prejudicar o direito à educação para todos e todas e, muito menos, a inclusão social. A luta da comunidade surda também é pelo combate à discriminação, mas mediante o reforço da identidade cultural das pessoas com surdez.

*Deputada estadual (PT), presidente da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia Legislativa do RS

" A lição interessante do Marxismo "

Paulo Ghiraldelli Jr*
http://ghiraldelli.pro.br/wp-content/uploads/2013/09/karl-marx.jpg
Em 1989, com a Queda do Muro de Berlim, houve quem escreveu que após vinte ou trinta anos poderíamos ler Marx de um modo melhor, mais filosófico que político.
Bem, o tempo realmente passou e o comunismo como política não existe mais. No entanto, o marxismo como filosofia,
é alguma coisa útil hoje?
A lição filosófica de Marx não deve ser avaliada como verdadeira ou falsa. Ela não deixa de ser inteligente e criativa e, de certo modo, convincente. É difícil ser filósofo e não reconhecer esses seus dotes. Qual e essa lição?

Marx resolveu olhar para os produtos que vão para o mercado, que se transformam em mercadoria, como que deixando de ter um valor segundo o uso, e adquirindo um valor típico de mercadoria, ou seja, o valor pelo qual se pode trocá-los. Uma vez tendo valor de troca, ou seja, valor em geral, ele seria trocado não por outro produto, mas por dinheiro. Este nada seria senão um elemento de equalização para a facilitação do trânsito das mercadorias. Sendo um número, imporia sua condição de abstração a todos os produtos, a todas as mercadorias. Ora, uma vez que na sociedade tudo pode ser mercadoria, ou seja, tudo pode ser trocado por dinheiro, por uma abstração, teríamos então uma sociedade em que nada mais teria rosto próprio. Todos os rostos se igualariam uma vez igualados ao número, ao elemento abstrato. O reino da abstração daria suas ordens para tudo à medida que tudo que conhecemos pode ser posto no mercado e trocado por dinheiro. A mercadorização do mundo geraria pessoas incapazes de distinguir qualquer coisa pelos antigos valores universais platônicos, como o Belo, o Verdadeiro e o Bem. Os universais desapareceriam subsumidos por um só universal: a abstração enquanto abstração, o rosto sem qualquer formado do número que se ergue ao lado do cifrão.

Analisado isso, Marx postulou que quando a globalização da sociedade de mercado avançasse por todos os poros da sociedade mundial, teríamos o império dessa abstração comando nossas mentes e, de quebra, nossos corações. Seríamos incapazes de olhar para qualquer coisa de modo a enxerga-la sob outra marca que não a marca da abstração, ou seja, o rosto sem rosto, o rosto sem rugas, sem marcas do tempo ou espaço. O rosto sem geografia e história. Os rostos, de tudo e de todos, nada seriam senão rostos de manequins de vitrine ou, pior ainda, apenas uma massa cinzenta incapaz de promover qualquer imaginação.

Não à toa, portanto, poderíamos trocar, não só no trabalho, mas também no amor, mulheres e homens por outros homens e mulheres com facilidade. Mas isso num primeiro passo. Em um segundo passo poderíamos trocar no trabalho esses humanos por robôs, e no amor, pelas bonecas e bonecos acoplados ou não a vibradores.

Haveria uma alteração profunda na capacidade nossa de apreciar coisas e amar pessoas. Apreciamos coisas e amamos pessoas por suas características específicas. Todavia, se tudo e todos não são assim mais mostrados, mas se transformam em dinheiro e este em possibilidade de exibição, temos aí uma “sociedade do espetáculo” – tudo é feito apenas para ser mostrado para o outro. Mas para impressioná-lo não no sentido de despertar nele a velha inveja ou o carcomido ciúme, mas a submissão. Desse modo, não importa que eu tenha uma bolsa feia e inútil, o que importa é que ela seja de uma grife que me faz ser notado como alguém que transita no mercado com desenvoltura, alguém com poder de fazer e acontecer. Pois quem compra uma bolsa daquela marca tem dinheiro para comprar homens, mulheres, políticos, capangas armas e pastores. Trata-se de participar de uma sociedade do espetáculo que não gera narcisistas, como alguns teóricos afoitos vomitam por aí, mas que gera agentes intimidadores que se acham, por sua vez, também intimidados por outros mais intimidadores ainda.

Quando olhamos para o mundo que nos cerca, quando andamos nos shoppings e vemos a TV, quando notamos tudo que é o mundo contemporâneo por olhadelas rápidas na Internet, é difícil não valorizar esses brilhantes insights de Marx. Só então, podemos ver o quanto Marx é atual.

Todavia, se o marxismo realmente é atual, então também ele se torna um elemento a mais na sociedade do espetáculo nesse sentido. Deixo de usar do marxismo para entender a sociedade, e ele próprio, como teoria, passa a ser um dote que apresento no contexto intelectual em que vivo para me mostrar senhor do mercado educacional ou editorial ou mesmo midiático. Pude ter uma educação que me permite dissertar sobre Marx, e desse modo, também eu tenho lá algum poder, e capacidade intimidar e ser intimidado – é o que faço com o meu marxismo. É o que posso estar fazendo agora, neste momento, e poder confessar isso não diminui o efeito perverso, de certo modo até o amplia! Mostro-me como tendo um plus poder ao ser capaz de falar do marxismo criticamente, diferente dos que não poderiam agir assim.

Isso torna o marxismo, nesses aspectos filosóficos, algo bem plausível, pois ele se confirma no momento mesmo que perco a minha consciência crítica na posse do próprio marxismo, como ele disse que ocorreria comigo, nesse mundo em que estou entrando desde meados do século XIX.
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* Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ – http://ghiraldelli.pro.br Autor do recente Filosofia política para educadores (Editora Manole).
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/a-licao-interessante-do-marxismo/25/09/2013