segunda-feira, 31 de agosto de 2015

" Antes que se arrebente "



 VINICIUS MOTA

             FOLHA DE SP - 31/08
SÃO PAULO - Há gente experta na política a vaticinar que o Brasil só escapará da encalacrada atual depois de esborrachar-se no muro. Não bastaria antever a aproximação do armagedom para mudar de rota. Seria preciso experimentá-lo.

Souvarine, o sabotador anarquista do "Germinal" de Zola, era um esteta do gênero: "Ateiem fogo aos quatro cantos das cidades, ceifem os povos, arrasem tudo e, quando nada mais sobrar deste mundo podre, talvez surja dele um melhor", dizia e praticava. A proclamação chega a ser esplêndida na literatura. Quando acontece na vida vivida, é apenas desgraça.

É para a desgraça certa que se desenrolam os acontecimentos da política brasileira. Estivesse a crise resumida a quizilas de poder, não haveria razão para desespero, mas ela arrasta para o fogo a segurança material de 200 milhões de almas.

O problema é como restaurar a responsabilidade dos atores políticos no momento em que o príncipe do nosso sistema, o presidente da República, reduziu-se a figura simbólica. A saída mais rápida seria repactuar forças em torno de Dilma Rousseff, o que no entanto tem sido dificultado pela inapetência da presidente e pela sua proximidade dos vetores desagregadores representados por Lula e pelo PT.

Não será possível salvar o governo Dilma, o ex-presidente Lula e o PT. Se a presidente continuar conectada ao seu mentor e ao seu partido, ninguém mais chegará perto dela para negociar saídas. O isolamento ficará tão intenso que a renúncia se tornará um recurso de misericórdia.

Outra opção seria organizar em torno de Michel Temer um governo de fato, fundado na partilha de responsabilidade com grupos dominantes no Congresso. A substância do acordo teria de conter reformas dolorosas nas despesas e nas receitas do Estado, além da "despetização" do Executivo. A um pacto forte assim, Dilma seria obrigada a submeter-se ou cair fora.

" Leniência e " ilicitação " !!!

Artigo Zero Hora


CLÁUDIO BRITO
Jornalista
claudio.brito@rdgaucha.com.br

Sei que não vai mudar nada, sei que é irremediável, sei que é legal, mas isso não me proíbe o protesto. Falo dos acordos de leniência com as empresas envolvidas em fraudes, corrupção, desvios financeiros sem medida e rapina qualificada no dinheiro do povo brasileiro. É condescendência, é permissividade. Está para as pessoas jurídicas como a delação premiada para os criminosos. Lamentável. Funciona do mesmo jeito.

Leniente, permissivo, o Estado negocia com a empresa que abusou, que cometeu ilicitude. Para sobreviver, ela devolve um pedaço do que subtraiu do patrimônio público, ao seu sabor e tanto quanto lhe seja interessante. E sua sobrevivência vai permitir continuar realizando obras públicas. O Estado vai ajudar a empresa que antes o explorou e consumiu irresponsavelmente. Do mar de lama para uma nova licitação.

Melhor dizer que será outra “ilicitação”.

Arlindo Cruz, André Diniz, Leonel e Evandro Bocão escreveram um samba que denominaram “Ilicitação” e que retrata muito bem essas verdades:
“Não me admirei/ quando mais uma vez eu vi na TV/ um parte-reparte, 100 pra mim, 100 pra você/ Ar condicionado, engravatado vai metendo a mão/ Na fila o pobre coitado é quem sofre o efeito da ilicitação.”
Os sambistas descrevem situações que denunciam crimes contra a saúde, segurança e educação, maiores anseios da população. E mostram indignação com a impunidade e a desfaçatez, versejando para indagar: “Como é que pode? Alguém viver e ter prazer em desfrutar da vida sem se arrepender afinal?”
Protesto legítimo, em samba dolente e muito bem feito. Tenho a mesma inquietude, sem a mesma inspiração para a poesia, mas com indignação idêntica. Se o preço da descoberta dos recônditos das organizações criminosas é a leniência, custará muito caro. Nossos prejuízos continuarão irreparáveis. Como pensar diferente? Ter que admitir criminosos negociando com o Estado? Só falta achar bonito e ainda agradecer a colaboração de quem antes surrupiou o que é de toda a sociedade para depois sair disso condecorado.

'" E O Carrossel "

Artigo Zero Hora


NELSON JOBIM
Jurista, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal

Os fatos parecem claros.
O vice-presidente Temer, como articulador político, demonstrou, na adversidade e nos limites impostos por esta, capacidade e competência.
Abriu algo desconhecido ao governo: diálogo.
{O governo só exercia, exerce e exercerá(?) o monólogo da certeza sobre tudo, sem se ater a Nietzsche para quem o pior para a verdade não são as mentiras, mas as convicções.}
Temer sempre operou com realismo pragmático (redundância?).
Visou ajustar, primeiro, o apoio da base do governo.
Enfrentou a convulsão política da base para assegurar o enfrentamento da crise econômica e fortalecemento em relação à oposição.
Temer se fortaleceu.
O resultado lhe daria força.
Assustou setores do governo.
Iniciaram uma contraoperação.
Não davam seguimento aos entendimentos realizados pelo vice e por seu operador _ o ministro Eliseu Padilha.
A Casa Civil tardava e o Ministério da Fazenda desconhecia.
Até o chefe de gabinete da presidência, Giles Azevedo, aparece na articulação pararela!!
[Ele faria isso sem a autorização da presidente?]
O vice-presidente, correto, decide distanciar-se da articulação e o ministro Padilha anuncia que seu retorno integral à Secretaria de Aviação Civil.
Após o anúncio de Temer, o governo informa a liberação de recursos para as emendas parlamentares.
E a presidente elogia, de forma compensatória(?), a lealdade de seu vice.
A presidente, então, parece _ nada é certo no corrossel governamental _ se encaminhar para a primeira parte da alternativa 04 (reforma ministerial), que referi no artigo do dia 24.
Anuncia-se a redução de 10 ministérios.
A cúpula do PT, informou a imprensa, sugere o ministro de Defesa _ Jacques Wagner _ para a Chefia a Casa Civil.
Ele é próximo do ex-presidente Lula, que já havia sugerido essa solução.
Essa proximidade, para o núcleo do governo, é uma qualidade ou um problema?
De outra parte, os partidos aliados se ouriçam com a reforma ministerial.
Quais ou qual dos partidos terá sua participação ministerial reduzida?
Pode-se acreditar que redução atingirá o PT ou a quota da presidente?
Se o ministro Mercadante for o negociador da redução, qual será a qualidade do “diálogo/monólogo”?
Enquanto isso, o TSE, após o voto-vista do ministro Gilmar Mendes e das medidas que propôs, avança sobre as contas da campanha presidencial.
E o carrossel gira, sem o vice…

" Privilégios Adquiridos "

Editorial Zero Hora


Neste momento de extrema dificuldade que o país atravessa, um dos grandes desafios dos governantes e legisladores brasileiros é encontrar uma fórmula democrática para reduzir deformações da administração pública sem ferir direitos e garantias constitucionais. Neste contexto, encontram-se não apenas o inchaço da máquina administrativa em níveis insustentáveis, mas também aposentadorias precoces ou com vencimentos integrais e vantagens excessivas conquistadas por parcelas do funcionalismo público, que se constituem em verdadeiros privilégios mas se ocultam sob o disfarce de direito adquirido.
É importante, porém, ressalvar que tais regalias são exceções, se considerados grandes contingentes da base do serviço público que sequer recebem remuneração adequada. O que cabe questionar são os desvios construídos durante décadas de má gestão, leniência e descaso com o dinheiro dos contribuintes.
Não se trata de fazer uso de medidas autoritárias ou inconstitucionais. O Estado democrático de direito fundamenta-se no respeito do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada, mas esses valores também podem ser revisados quando abrigam deformações nocivas à sociedade. Talvez tenha chegado a hora de se mexer no imexível, como dizia o ex-ministro Antônio Rogério Magri, que ocupou exatamente a pasta da Previdência _ área ainda carente de reforma mais ampla para se tornar sustentável em todas as instâncias do poder público.


" Economia Brasileira,decaindo gradualmente " Decadente Economia brasileira "

Maior queda desde 2009

Economia brasileira está há cinco trimestres sem crescer

De abril a junho de 2015, a soma das riquezas produzidas pelo Brasil caiu 1,9% em relação a janeiro, fevereiro e março


Economia brasileira está há cinco trimestres sem crescer divulgação/divulgação
Foto: divulgação / divulgação
resultado do Produto Interno Bruto do segundo trimestre de 2015, divulgado nesta sexta-feira pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a economia brasileira está há cinco trimestres sem crescer em relação aos trimestres imediatamente anteriores.
De abril a junho de 2015, a soma das riquezas produzidas pelo Brasil caiu 1,9% em relação a janeiro, fevereiro e março, a maior queda desde o primeiro trimestre de 2009. Nos três primeiros meses deste ano, a economia caiu 0,7% em relação aos últimos meses de 2014.
O segundo semestre do ano passado foi marcado por taxas estáveis. No quarto trimestre, não houve variação do PIB e, no terceiro, a economia variou positivamente 0,1%, o que não é considerado crescimento pelo IBGE.
Já no segundo trimestre de 2014, houve uma queda de 1,1% em relação ao trimestre imediatamente anterior, o último de crescimento da economia brasileira, que subiu 0,7%.
A coordenadora de Contas Nacionais do IBGE, Rebeca de La Rocque Palis, disse que todas as atividades econômicas foram afetadas.
— O PIB é a medida síntese da economia. Existe uma deterioração de praticamente todos os indicadores econômicos — acrescentou.

Segundo Rebeca, "existe uma turbulência política e indicadores econômicos fracos que estão tendo impacto importante sobre praticamente todas as atividades econômicas".
Na comparação com o mesmo período do ano passado, o PIB caiu 2,6%, quinta retração seguida nos números trimestrais e também a mais intensa desde o primeiro trimestre de 2009.

" Esbanjamento na estagnação

EDITORIAL ZERO HORA

Esbanjamento na estagnação Edu Oliveira/Arte ZH
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
Alguns setores dos governos, em todos os níveis, estão alheios à recessão que encolheu a economia brasileira em 1,9% no segundo trimestre. É constrangedor, quando se constata que a crise atinge a todos, que o setor público se apresente como exceção, quando deveria dar o exemplo à sociedade. Dados do IBGE mostram que União, Estados e municípios aumentaram seus gastos em 0,7% entre abril e junho. Parece pouco, mas é muito se o número for confrontado com o tamanho da retração. Não há como considerar razoável, sob quaisquer argumentos, que os governos continuem gastando como se o ambiente fosse de normalidade.
Os gastos são de despesas correntes, de manutenção da máquina pública, que os governos decidiram não controlar como deveriam, apesar dos apelos que a própria União faz pela austeridade. É contraditório que um governo preocupado com o ajuste fiscal, que chega a ameaçar os contribuintes com a possibilidade de aumento de impostos, não reduza suas despesas. Cria-se um cenário conflitante com a realidade das famílias, que reduziram o consumo em 2,1% no segundo trimestre, e das indústrias, que retraíram investimentos em 4,3% no período, enquanto o desemprego continua crescendo.

O governo federal tem atribuído as despesas às dificuldades para aprovar as medidas que determinariam o equilíbrio de arrecadação e despesa. Pode até ser que tal fator contribua para a situação registrada pelo IBGE, mas certamente não é esta a causa determinante do descompasso entre o Brasil que fica mais pobre e governos que continuam gastando como se nada de anormal estivesse acontecendo.

domingo, 30 de agosto de 2015

Fonte : Jornal El País - BRASIL "

Lula confirma seu retorno à arena política: “Voltei a voar outra vez”

Ex-presidente anuncia neste sábado, ao lado de José Mujica, seu retorno à arena política


O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está de volta à arena política. E para anunciar este retorno, nada mais simbólico que se reunir neste sábado em São Bernardo do Campo, seu berço político, com o ex-presidente do Uruguai José Mujica, um dos líderes mais populares da América Latina e do mundo hoje em dia, e falar para uma plateia formada por ministros, deputados, prefeitos, vereadores, lideranças sindicais e simpatizantes. “Fiquei calado durante muito tempo porque tinha que cumprir meu papel de ex-presidente. (…) Mas não me deixam em paz. Só matam um pássaro se ele fica parado. E eu voltei a voar outra vez”.
O anúncio ocorreu um dia depois desinalizar em uma entrevista que poderia voltar a se candidatar em 2018. Durante o discurso deste sábado, que encerrou o seminárioParticipação Cidadã, Gestão Democrática e as Cidades no Século XXI, Lula não chegou a mencionar uma possível candidatura. No entanto, parece ao menos se posicionar como porta-voz de um Governo que tem dificuldades de se comunicar e de um partido desgastado após 12 anos de poder. A presidenta Dilma Rousseff tem menos de 8% de popularidade, segundo as pesquisas, e seu Governo está atolado em uma crise econômica que derrubou 1,9% do PIB no segundo trimestre. Além disso, enfrenta um escândalo de corrupção na Petrobras, investigado pela Operação Lava Jato, e a pressão das ruas e da oposição para sofrer um impeachment.
No entanto, as imagens recentes de um ex-presidente Lula abatido, pedindo para que o Partido dos Trabalhadores fizesse uma autocrítica, parecem ter ficado no passado. Esse papel ficou com"Pepe" Mujica, o carismático ex-presidente do Uruguai venerado em todo o mundo. Mujica fez uma enfática defesa da democracia —"é a melhor porcaria que encontramos"— e da necessidade de partidos políticos para que ela exista. "Eles são a vontade coletiva de grupos humanos de fazer as coisas melhores. Mas também ficam doentes. Temos que lutar por partidos republicanos, onde os dirigentes aprendam a viver como a maioria do país e não como a minoria", discursou. "Não se deve confundir um presidente com um monarca. O cargo não é nada mais que um voto de confiança dos cidadãos. Não há homens imprescindíveis, há causas imprescindíveis".
Sua fala foi toda uma introdução para o ex-presidente Lula. Se Mujica defendeu a necessidade de partidos políticos, Lula saiu em defesa do PT —do seu partido— como há muito tempo não fazia. "A cidadania é um tema que nosso partido tem que ensinar. (...) O PT passa por um momento de criminalização e esse é o momento de levantar a cabeça e voltar à rua como antes", pediu aos presentes, sob fortes aplausos e gritos que pediam sua volta.
Lula e Mujica neste sábado. / NELSON ALMEIDA (AFP)
O retorno de Lula aos holofotes acontece logo após pesquisas de opinião revelarem que se a eleição fosse hoje, o senador Aécio Neves (PSDB) venceria com 19 pontos de vantagem sobre Lula; o senador José Serra com 7 pontos a mais do que o petista; e o governador de São Paulo Geraldo Alckmin com 4 pontos, segundo uma apuração do IBOPE. Mas Lula não se dá por vencido e parece querer dar volta por cima e sair do "volume morto" —expressão usada por ele mesmo há alguns meses. A campanha para as próximas eleições presidenciais, seja lá quando ocorram, parece já ter começado.
“A direita reacionária deste país gosta de dizer que o Lula já era. Como eu tenho as costas largas, vou ver se eles deixam a querida Dilma em paz e voltam a se incomodar comigo”, afirmou. Mais uma vez, tocou na tecla da educação como ponto de partida. "Temos que colocar na ordem do dia a questão da educação nesse país. Quem pode fazer isso é o PT. Temos que voltar a revolucionar a política. O PT é a voz do povo desse país, temos que fazer essa revolução". 
Durante seu discurso, Lula voltou a ser Lula. Ignorou o que estava escrito no papel, improvisou por cerca de uma hora, arrancou gargalhadas e gritos que pediam uma nova candidatura. Se vangloriou do seu Governo e defendeu enfaticamente o seu partido por "comandar os últimos 35 anos de luta popular no Brasil". Além disso, argumentou que o PT fez uma "revolução silenciosa no país" a partir das prefeituras ao fazer o orçamento participativo, o primeiro deles na Administração de Diadema, em 1982. "Pela primeira vez o povo humilde era chamado a discutir cada prioridade do seu bairro. Esse partido mudou a cultura administrativa das cidades desse pais.E isso incomoda muita gente", explicou.
Sobre seu Governo, disse que o seu principal legado foi a relação que estabeleceu com a sociedade e com os movimentos sociais. "Se juntar todos os presidentes do país, antes de mim, eles não fizeram 10% das reuniões que fizemos. Essas reuniões definiram as políticas publicas deste país. Não eram políticas do governo, eram da sociedade. Aquele palácio continuou recebendo empresários e príncipes, mas também passou a receber a sociedade".
Lula ainda citou algumas das conquistas sociais das últimas décadas, como o aumento contínuo do salário mínimo e o fato de que, hoje, mais pessoas podem viajar de avião. E disse que vai passar para a história com o presidente que mais fez universidades. "Pode ser que alguns tenham razão em suas críticas, mas por que todo esse ódio? Será que por que as empregadas domésticas conquistaram mais direitos? Essas pessoas vão às ruas para desfazer as melhorias que fizemos".
Lula promete falar e viajar mais pelo país. Está em campanha outra vez.

" A Dor do Medo "

                                J.J. Camargo

J.J. Camargo: a dor do medo Ilustração de Edu Oliveira/Agencia RBS
Foto: Ilustração de Edu Oliveira / Agencia RBS
O medo real ou fantasioso é um inimigo antigo e um atormentador atroz, capaz de minar nossas energias, principalmente quando se acompanha de doença ou nos encontra com autoestima em baixa. Mais fácil compreender o medo materializado sob a forma de um rival visível, poderoso e cruel, mas também se sofre — e de verdade — com um inimigo de mentira, produzido por nossa imaginação fragilizada e temerosa.
O medo que atormentou o casal de irmãos solteirões da Casa Tomada, de Cortázar, era imaginário, mas fez com que eles, aprisionados dentro do velho casarão, fossem fechando portas e passagens, sempre afugentados por sons suspeitos e assustadores e que os empurrou para o último aposento da casa e finalmente para a rua, em total desamparo, sem que eles alguma vez tivessem visualizado o terrível inimigo.
A base de assentamento do medo e as suas manifestações, com muita frequência constituem um desafiador enigma diagnóstico. A queixa de dor é provavelmente a via de exteriorização mais utilizada, não só porque seu anúncio impõe uma preocupação automática, mas também porque ela, com sua subjetividade, não pode ser simplesmente desmentida.
Cabe ao médico, com conhecimento técnico e muita delicadeza, qualificá-la e quantificá-la, pois, como se sabe, as dores não são sintomas aleatórios de alarme. Pelo contrário, elas têm padrões de apresentação, instalação e propagação que são altamente característicos de determinadas enfermidades. Por outro lado, as dores desorganizadas e erráticas representam modelos comuns de somatização.
A Jussara veio consultar acompanhada do marido atento e prestativo e de uma linda menina de seis anos, sempre debruçada no colo do pai. Trazia um calhamaço de exames de imagens e uma história de dor torácica que se arrastava por mais de seis meses. Sem nenhuma lesão na coluna e com pulmões normais, começaram as perguntas e com elas uma informação importante: a dor se intensificava muito quando deitava, a ponto de, nas últimas semanas, preferir dormir na poltrona.
As perguntas seguintes pareciam despretensiosas: "Tua única filha? Como foi o parto?" E a resposta reveladora: "Um martírio insuportável. Não sei como não morri!"
Luz amarela! Passamos a falar de outras coisas e depois de uma longa volta, enquanto preenchia os dados no computador, uma pergunta solta para a filha: "E daí, dona lindinha, ainda não pediste um irmãozinho pra mamãe?"
E a resposta previsível: "Eu pedi, mas a mãe disse que nem morta". Bingo.
A consulta seguinte, só com a paciente, foi definitiva. A sua relação emocional com o parto tinha sido duplamente traumática: a sua mãe morrera ao dar à luz sua irmã menor e o nascimento de sua filha tinha sido um suplício. Sem coragem para compartilhar seus medos com o marido obcecado com a ideia de um filho homem, levara a dor para a cama, como um escudo poderoso.
Despir-se do medo, discutindo-o com quem tenha ouvidos amistosos, é uma forma eficiente de minimizar a dor. Qualquer dor.

" Qualidades Da Fé "


Frei Betto* 
 
A fé é a adesão da inteligência ao mistério, a algo ou alguém que se pode sentir sem, no entanto, provar. Não é irracional, é suprarracional. 
 
Em toda relação amorosa a fé é o vínculo que une. Não há equação que convença João de que seu amor por Maria é cientificamente equivocado. Ou vice-versa. Um confia (com fé) no outro.
Marx, Freud e tantos pensadores tentaram nos convencer de que a fé é uma ilusão ou alienação. Projeta-se no Céu o que se desejaria desfrutar na Terra. Nenhum dos dois conheceu a fé libertadora manifestada, hoje, pelo papa Francisco. 

O Iluminismo confinou as convicções na razão e, assim, desencantou o mundo, como frisou Max Weber. "A razão é a imperfeição da inteligência”, proclamava meu confrade Tomás de Aquino. 

Há muitas qualidades de fé. Paulo Patarra, militante comunista e meu chefe na revista Realidade, se queixava de que Deus não o havia provido de fé. Professava o salmo às avessas. 

Alberto Schweitzer, ao duvidar da divindade de Jesus, abraçou radicalmente a ética do Nazareno e abandonou a filosofia, a teologia e a música para cuidar, na África, de doentes pobres. 

Jung, na contramão de Freud, afirmava "não preciso acreditar. Eu sei.” Ecoou a profissão de fé de Jó, o mais enigmático crente de toda a Bíblia: "Antes eu só te conhecia de ouvir falar, mas agora meus olhos te viram.” 

Jó foi desafiado a mostrar sua fé em um Deus que o privava do que ele mais amava. Mergulhou na "noite escura”, mais tarde cantada por João da Cruz. E confiou (com fé), até que a aurora irrompeu. 

O amálgama entre Ocidente e Cristianismo banalizou a opção de fé. Rara a Igreja que proporciona a seus fiéis educação da fé conforme as idades infantil, jovem e adulta. Muitos cristãos adultos vestem a calça curta da fé. Guardam a mesma fé da catequese infantil. 

Outros abdicam do senso crítico para aderir, como cordeiros a serem tosquiados, à palavra do bispo ou pastor. Confundem autoridade e verdade. 

É triste constatar que muitos políticos corruptos, e profissionais indiferentes aos direitos dos pobres, são ex-alunos de colégios e Universidades católicos. É de se perguntar: escolas confessionais ou meras empresas de formação de mão de obra qualificada para o mercado? Qual a qualidade da evangelização feita por instituições cristãs? 

Fé em Jesus é fácil. Embora poucos se interessem em estudar os Evangelhos e o contexto em que viveu Jesus para melhor entender a sua proposta. 

O desafio é ter a fé de Jesus. Fé que identificava Deus como Pai amoroso, reconhecia-O na face dos pobres, denunciava fundamentalistas e opressores, centralizava-se na justiça e no amor.
Será que nós, cristãos, cremos no mesmo Deus de Jesus?
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* Frei Betto é escritor, autor de "Um Deus muito humano – um novo olhar sobre Jesus” (Fontanar), entre outros livros.
Fonte: Adital 28/08/2015

" As Vozes "



INFORME ESPECIAL | Tulio Milman





No começo, me senti como se estivesse traindo uma tradição quase sagrada. Verdade da infância: é falta de educação cantar à mesa. Sempre fomos muito musicais, mas não entre garfadas de arroz e mordidas no bife.


Cresci, virei pai. Então, um dia, minha primeira filha, já com dois anos, começou a cantar no meio de um almoço. A voz lá de dentro me alertou: “Cantar à mesa é falta de educação”. Cheguei a abrir a boca.

Mas optei pela subversão. E disse: “Aqui em casa, sempre pode cantar à mesa”. Todos concordaram. Até hoje é assim. Alguém engata uma música. Qualquer música. Rihanna, Moraes Moreira, Oswaldo Montenegro, Foo Fighters, Dona Aranha, Anitta. Quem sabe a letra segue.

Minha ruptura não foi adolescente. Não tem mais graça nem sentido desafiar autoridade ou tradição só para ter certeza de que eu sou eu mesmo.

No átimo que antecedeu a pequena revolução, pensei que a tristeza chega sem pedir licença. E, se ficar triste não é falta de educação, ficar feliz também não pode ser. Cantemos.

Sempre ouvi, dos professores e dos pais, que a hora do tema é uma hora de silêncio e concentração. Que é preciso um lugar isolado do mundo para estudar.

Quando minha filha mais velha era bem pequena, seguíamos essa regra. Que não é errada e nem merece ser totalmente desprezada. Mas aí, um dia, olhando o mundo em volta, vi que os desafios mudaram.

Fui visitar, alguns anos atrás, o templo budista de Três Coroas. Nosso guia falava alto. Vi algumas pessoas meditando e perguntei: “Não estamos atrapalhando?”. O guia, sereno e seguro, explicou: “O desafio deles é meditar até no meio do caos”.

Quem tem filhos sabe. Numa tela, eles conversam com os amigos. Na outra, assistem a alguma série de TV. A música nos fones. Um livro aberto na frente. Um caderno na outra mão.

Estudar e fazer tema não são mais tarefas isoladas do mundo. O importante é fazer bem feito. E se isso for na sala, no quarto ou no parque, tanto faz. Se houver música ou WhatsApp com os amigos, ok. Porque a vida é assim. Multifocal, multitela, multitudo.

Casa dos pais: uns dizem que a gente sempre volta, outros que a gente nunca sai de verdade. São essas vozes que nos guiam tantas vezes, mesmo que a gente não saiba. E, se uma delas me dizia que é feio cantar à mesa e que lugar de estudar é no quarto, uma outra, mais suave, me acolhia: “Pode questionar, pode questionar”.

Essa é a regra de ouro. E, no fundo, eu sei. Todas essas vozes são a mesma voz.

" Cuidado com os Ubers "








Sou usuário do Uber, aqui em Boston. Hesitei ao fazer essa confissão. Temo que, ao chegar ao Brasil, seja espancado por taxistas em fúria. Justo eu, tão amigo dos taxistas.

Duvida? Pergunte ao Mauro, do Taxitramas. Ao Jeferson, do aeroporto. Ao Luiz Carlos, da Azenha.

Já escrevi muito sobre taxistas. Até os 40 anos, só andava de táxi. Não tinha carro. Lembro de uma vez em que entrei num táxi no ponto da Botafogo e senti um cheiro estranho. Fiquei farejando o ar. Era um odor poderoso. Denso. Que se sentia na boca e provocava certa náusea.

– O que há com teu carro? – perguntei ao motorista.

– Não é o carro – ele respondeu. – Sou eu – e abriu a boca e mostrou a língua vermelha, onde duas elipses brancas dançavam em bolhas de saliva. – Mastigo alho todos os dias – ajuntou, com orgulho, e explicou: – Pra evitar gripe.

Ao fim da angustiante corrida, tive de ser sincero: – Não leva a mal, mas é melhor ficar gripado.

Outro taxista que conheci, bom sujeito, certo dia, ao me acomodar no banco do carona de seu carro, a primeira coisa que ele disse, antes mesmo de me cumprimentar ou de perguntar para onde queria ir, foi: – Minha mulher me traiu.

Aquela informação desferida assim de inopino, feroz e veloz feito um tapa, me deixou perplexo. O que dizer para um homem que lhe atira um peso desses no colo? Durante todo o trajeto, ele descreveu os pormenores do caso. Tratava-se de um clássico: ele a flagrou se refocilando na cama com um amigo.

De alguma forma, aquilo me comoveu: afinal, o taxista confiara em mim. Só que, no dia seguinte, um colega veio contar:

– Sabe que hoje entrei num táxi e o motorista saiu me dizendo que é corno?

Seria o meu corno? Era. Nos dias subsequentes, várias pessoas me relataram que elas também serviram como confessoras do taxista traído, o que me deixou um pouco decepcionado com minha capacidade de despertar confiança nas pessoas.

Mas essas são apenas histórias curiosas. O que importa é que sou amigo dos taxistas, e já fui salvo por alguns deles. É uma categoria que aprecio. Quando me valho do serviço do Uber, e o faço com frequência, não é por desgostar dos taxistas. É porque a corrida em geral é mais barata, porque os carros são melhores e, o que mais me interessa, quando chamo um motorista, ele chega antes que eu possa dizer Cucamonga.

Além do Uber, existe outro serviço semelhante por aqui, o Lyft. O nome da empresa é uma brincadeira com um dos termos em inglês para “carona”: lift. Sem ipsilone.

Essa história de economia compartilhada está se espraiando devido às facilidades da internet. Por exemplo: em algumas cidades americanas, cozinheiros amadores anunciam, por meio de sites, que vão preparar um jantar. Os candidatos a comensais conferem o horário, o preço e o cardápio. Se gostarem, se inscrevem. O jantar é servido na casa do cozinheiro. É o Uber dos restaurantes.

Nós, jornalistas, também temos nossos Ubers. Algumas lideranças da categoria lutam para que o diploma universitário seja obrigatório para o exercício da profissão. Perda de tempo. A sua faxineira, se quiser, faz agora mesmo um jornal na internet. Para isso, só precisa de um celular e de um laptop. Ou, pensando bem, só de um celular.

Não há como refrear o movimento natural das pessoas de ganhar a vida fazendo o que querem ou o que gostam de fazer. Teremos todos de nos adaptar. Os Ubers vêm aí.