quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Especialista explica as funções do sonho< Leandro Telles >

 

Segundo neurologista da Academia Brasileira de Neurologia, do ponto de vista cognitivo, sonhar pode colaborar em ajustes importantes no aprendizado

Especialista explica as funções do sonho Filip Schneider/stock.xchng
O sonho trata-se de uma atividade mental baseada na nossa vivência atual e prévia
Foto: Filip Schneider / stock.xchng
O sonho é um dos eventos biológicos mais fascinantes de que se tem notícia. Enquanto o corpo está lá, inerte e paralisado, a mente vaga por mundos intrigantes, fantásticos, improváveis e livres da contenção sem graça da realidade.

Para uns, o espírito deixa a matéria e vaga por dimensões alternativas, para outros, desejos reprimidos afloram do subconsciente, outros ainda acreditam em um poder premonitório expresso em uma simbologia universal. O que será que a ciência tem a dizer sobre isso?

Confira uma entrevista com o neurologista Leandro Teles, membro da Academia Brasileira de Neurologia, formado e especializado pela Universidade de São Paulo (USP):

Existem pessoas que não sonham?
Leandro Teles:
Todo mundo saudável sonha, é um evento universal e fisiológico. Sonhamos cerca de 4 a 5 vezes por noite (em uma fase do sono chamada de sono-REM), com durações de 5 a 30 minutos — isso significa dizer que sonhamos cerca de 6 anos de nossas vidas. Na segunda metade da noite os sonhos são mais intensos e prolongados. O que ocorre é o rastro de memória de um sonho é muito tênue, por isso esquecemos grande parte do que sonhamos. Para lembrar-se de um sonho precisamos acordar durante ele ou bem próximo dele.

O que ocorre no cérebro durante os sonhos? Você acredita que o espírito sai do corpo e vivencie as experiências dos sonhos?
Teles:
Eu respeito as teorias religiosas e místicas. No entanto, do ponto de vista puramente científico, o sonho é uma criação e uma vivencia puramente cerebral e fisiológica. Quando dormimos ocorre lentificação progressiva da atividade cerebral, redução da percepção do ambiente externo e relaxamento muscular. Eis que, na hora do sono, a atividade cerebral se altera. Surge franca atividade cognitiva, várias áreas e funções se ativam, como a memória, emoções, a criatividade, etc. Os olhos passam a se mover de um lado para o outro, mesmo abaixo das pálpebras. É como se o cérebro despertasse para dentro de si. A despeito dessa franca atividade o corpo mantém-se inerte e paralisado, assim como a franca redução da percepção do ambiente ao seu redor. É um momento fisiológico único, aonde o cérebro fecha suas entradas sensoriais e suas saídas motoras, mas apresenta franca atividade mental.

Qual é a utilidade dos sonhos? Porque sonhamos?
Teles:
O sonho provavelmente apresenta diversas funções. Do ponto de vista cognitivo, imagina-se que ele tenha funções de ajustes importantes no aprendizado. Esquecer aquilo que não importa, consolidar memórias relevantes, organizar os arquivos mentais, etc. Também é um exercício mental de criatividade, confrontação de dilemas conscientes e inconscientes, autoconhecimento, etc. Algumas construções são uma montanha russa emocional, a falta de entrada sensorial e a baixa atividade dos lobos frontais (região da razão e da crítica) torna o enredo por vezes bastante confuso e improvável para a vida real.

O que determina o enredo de nossos sonhos? É possível manipular o conteúdo dos sonhos?
Teles:
O enredo do sonho é fruto de um emaranhado de memórias com intenso componente emocional e fantasioso. Grande parte do que sonhamos a noite refere a coisas que vivenciamos no dia anterior ou nos dias anteriores. O sonho é uma colcha de retalhos com personagens, símbolos, alegorias, ambientes que afloram do nosso arsenal de vivências, mas dispostos de forma meio errática. Podemos misturar pessoas que nunca se encontraram, ambientes distantes em muitos quilômetros, vale pessoas mortas, eventos sobrenaturais, etc. Essa confusão é fruto da falta de filtro frontal (local da crítica, lógica e razão) e da falta do feed back ambiental (uma vez que estamos pouco reativos aos estímulos do meio). Quanto a segunda pergunta, sobre a possibilidade de manipular sonhos, isso é possível sim! Como é fruto de força consciente e inconsciente algumas pessoas consegue estabelecer alguma intervenção no enredo e desenrolar da história. Para tal, é preciso uma certa predisposição genética, treinamento e muita concentração. (mentalizar processos, identificar sinal de sonho, técnicas de recordação, etc..)

É possível resolver um problema real dentro de um sonho? Ter uma ideia genial, por exemplo.
Teles:
É possível. O sonho é uma amostra mental totalmente livre e improvável. Esse é um ambiente ótimo para o raciocínio criativo. No meio de muita coisa estranha pode surgir um pensamento que foge ao senso comum, uma solução inédita e absolutamente brilhante. Sonhamos com o que vivemos. Se estivermos imersos em um determinado problema, esse problema será abordado seguramente durante nossas noites, podemos vivenciar a resposta no meio de um sonho ou acordar com a idéia pronta na cabeça. Nosso cérebro trabalhou para isso. Reza a lenda que Paul McCartney ouviu a melodia completa de Yesterday em um sonho, despertou e tirou no piano; Kekulé, um famoso químico Alemão, sonhou como uma cobra mordendo o próprio rabo, no dia seguinte descreveu a estrutura anelar peculiar do benzeno (ganhou o prémio nobel de química). Existem inúmeros outros exemplos de insigths possivelmente apresentados em sonhos

Como podemos lembrar melhor dos nossos sonhos?
Teles:
Primeiramente é fundamental se concentrar antes de dormir e colocar na cabeça que você quer recordar do sono. Depois, você precisa acordar dentro de um sonho ou próximo dele. Se acordar muito após o sonho já era. Se quiser muito recordar vale a pena colocar o despertador para tocar na segunda metade da noite, lá pelas 5 ou 6 da manhã (nesse horário os sonhos são mais vívidos e duradouros). Deixe um papel e uma caneta ao lado da sua cama, ao despertar concentre-se apenas no sonho em curso e anote o máximo de informação para reconstruir o sonho. Estima-se que 50% do enredo se perde em 5 minutos, 90% em 10 minutos após acordado, o sonho deixa apenas uma tênue linha de memória.

É possível sonhar sempre com a mesma coisa?
Teles:
Existem sim alguns sonhos que são recorrentes. Isso é comum quando estamos imersos em alguma atividade mais tensa e estressante, no ano de vestibular, por exemplo. Outra opção são pessoas que passaram por traumas emocionais intensos, como tragédias, violência, acidentes de carro, etc. O estresse pós-traumático por trazer sonhos recorrentes ligados diretamente ou simbolicamente ao trauma ocorrido. Nesses casos pode ser necessária terapia, métodos de controle de sonho e, eventualmente, medicações para inibir o pensamento onírico recorrente.

É possível um estímulo ambiental real intervir em um sonho em andamento?
Teles:
É plenamente possível. Um evento externo relevante pode adentrar um sonho e ser incorporado a ele, chamamos de intrusão. Um ruído de agua corrente pode ser visto em um sonho como uma cachoeira, por exemplo. O toque do despertado pode ser incorporado a um ambiente dentre do sonho. A vontade de fazer xixi na vida real pode levar o sonhador a ir ao banheiro dentro do sono e fazer xixi na cama. São todos exemplos claros de intrusão eventual. Existem muitas tentativas de intrusões programadas o de comunicação entre pessoas, estando uma no mundo real e outra em sono-REM (sonhando). Ainda é um processo rudimentar mas bastante promissor no estudo dos sonhos.

Um sonho pode predizer o futuro?
Teles:
Não existem nenhuma evidência nesse sentido. Obviamente que trata-se de uma atividade mental baseada na nossa vivência atual e prévia (passado e presente). Logo, podem surgir imagens e situações que podem ser reproduzidas no nosso futuro, seja por acaso, seja por projeção racional (prever o futuro com base no presente ou no passado), seja pela crença de que isso vai ocorrer. Se alguém acreditar que sonhar com cobra significa traição, por exemplo, ou que cair o dente significa morte de alguém da família... Isso pode realmente acontecer pois ele já sabe (mesmo que inconscientemente) que está sendo traído ou que alguém está morrendo (por isso sonhou); ou mesmo pode ser uma coincidência (já que não são eventos tão improváveis assim); ou pode ser que alguém descubra uma traição por ter ido atrás dessa "evidência" vista no sonho. Se eu jogo no bicho apenas quando sonho com um número ou um animal, obviamente se um dia eu ganhar será por conta do sonho. Isso não prova uma associação causal inequívoca.

Como evitar os pesadelos?
Teles:
Não existe método totalmente eficaz. Os pesadelos são sonhos com emoções mais negativas, tipo medo, pavor, tristeza, dor, sofrimento, etc. acredita-se que a ativação da amígdala seja menor nesse tipo de sonho. Eles são mais comuns quando estamos emocionalmente abalados, ou com febre, sob efeito de álcool, com o sono muito atrasado, ou em situações como a apneia do sono (muito comum em homens acima do peso). Crianças têm muito mais pesadelos que adultos. Pesadelos recorrentes podem ser frutos de estresse pós-traumático e podem necessitar de intervenção médica. Pensar em coisas boas antes de dormir, rever seus hábitos e medicamentos, ingerir alimentos mais leves, praticar atividade física regular e tratar uma possível apnéia são boas tentativas para se livras desses sonhos indesejados.
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Fonte: ZH on line

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