Estamos dando pouca atenção a isso, mas há no Brasil uma
crescente intolerância ao Estado laico e à existência de uma cultura religiosa
plural
Caso 1. Há lugares (Rio de Janeiro à
frente) que mantém aulas de religião na escola pública, inclusive exigindo que o
professor seja antes um devoto que autenticamente um estudioso do assunto.
Caso 2. Após o início da novela "Salve Jorge",
a Rede Globo já teve de vir oficialmente explicar para grupos evangélicos que a
novela não faz a apologia de nenhum santo católico ou afro-brasileiro.
Sinal dos tempos. Estamos vivendo no Brasil, em
matéria de religião, uma situação que não deveríamos viver de modo algum. A
ampliação de novos grupos religiosos e o recrudescimento de velhos grupos abre o
nosso país para questões até pouco tempo estranhas. Duas delas: a questão da
religião diante do Estado (caso 1) e a da religião diante da cultura (caso
2).
Quanto à primeira questão, notamos os grupos
que não entendem que o Brasil é uma sociedade plurirreligiosa e que o Estado é
laico. O Estado é neutro quanto à religião exatamente para garantir que
indivíduos e grupos adotem e expressem as crenças que escolherem.
Por isso mesmo caberia ao Estado, talvez,
incentivar na escola pública a história das religiões, mas não a aula de
religião (ainda que plural) ministrada por um militante de igreja. Há vários
editais, inclusive no Estado do Rio, em que se pede do professor que irá
ministrar aulas de religião uma carta de uma "autoridade competente" em
religião. Ou seja, o professor tem de vir indicado por um pastor, padre ou coisa
do tipo. Isso é inadmissível.
Quanto à segunda questão, vemos os grupos
religiosos se indispondo contra várias práticas das quais os seus fiéis não
deveriam ser privados.
O Estado laico, garantindo neutralidade, e uma
cultura plural criam manifestações artísticas de várias ordens e, assim, criam
elementos que permitem que todos nós possamos usufruir dessas manifestações
apenas como arte, não necessariamente como religião.
A Bíblia ou o Corão podem ser lidos sem que com
isso o leitor seja um devoto ou queira se tornar devoto. Ter curiosidade por
religião e ler seus documentos é antes de tudo saber usufruir da cultura.
Assim, de modo similar, se a TV viesse a
apresentar uma telenovela religiosa -como já fez várias vezes-, isso não deveria
ser motivo para que qualquer grupo de religião distinta emergisse pedindo de
seus fieis o boicote ao canal em questão.
Ou seja, aquele líder religioso que pede
boicote não está infringindo a lei, mas está desrespeitando, certamente, a
inteligência de seus fiéis.
Voltando ao primeiro caso e articulando-o ao
segundo. Permitir que uma escola pública tenha aula de religião ministrada por
um devoto, e não por um historiador das religiões (ou alguém com formação
equivalente), é exatamente retirar da escola a capacidade ser o elemento que
iria, em uma situação normal, ensinar aos estudantes esta verdade: não há
cabimento em alguém implicar com uma novela de TV por motivos religiosos.
Nossas autoridades legais e a maior parte dos
intelectuais estão fazendo vista grossa sobre essas duas questões. Tudo está
indo bem no Brasil, uma vez que estamos podendo consumir. Caminhamos para
lugares escuros em leis e em cultura, e estamos quietos porque também temos
podido ir aos shoppings.
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