© Bruno Maron, "Erudito".
Segue uma pequena entrevista com o mestre Bruno Maron:
a: vc entrou em cena arrebentando, com sua
pesada bagagem filosófica e seu conhecimento social, político e cultural
extenso. Qual sua formação? Poderia nos dar um pequeno resumo de sua trajetória,
até o momento?
BM: Pra começar vamos corrigir uma coisa que
você disse: pesada bagagem cultural. Minha bagagem cultural cabe num porta-moeda
e olhe lá. Borges dizia que não leu muitos livros, mas
leu várias vezes os mesmos livros. Eu acredito bastante nisso, é muito bom
quando você descobre uma bíblia pessoal e disseca ela sistematicamente ao longo
da vida, amadurecendo junto (amadurecendo junto foi foda, parece coisa do
Charlie Brown Jr.) e colonizando o espírito com determinadas palavras e
conceitos. Portanto, corrigindo: tenho uma cultura modesta. Agora se formos
falar de PSEUDO-ERUDIÇÃO é outra história, daí me considero um dos grandes nomes
do cenário nacional, com minha mania de ler orelha, resenha vagabunda e livros
de fast-filosofia em 90 minutos.
© Bruno Maron, "Caroco".
Quanto à formação: fracasso retumbante. Nunca
deixei que a escola interferisse na minha educação. Fui voyeur de
colégio e faculdade. Fiz design na PUC quando tinha 19, mas sinceramente não
registrei o evento pois atravessava uma espécie de coma existencial, ouvia Rush o dia
inteiro e fiquei sequelado. Acho que muita gente não sabe o que tá acontecendo
com a vida nessa fase crítica, a maioria está vivendo experiências mais intensas
no campo sensorial do que no intelectual. Não me filiei a nenhuma birosca na
época pra socializar, então me virei na intuição emotiva mesmo. É muito difícil,
para mim, respeitar o termo "grade curricular", parece coisa do sistema
penitenciário. Apesar disso, sou entusiasta do ambiente acadêmico que, com todos
os defeitos, ainda é um lugar de efervescência política e cultural que merece
ser cultivado.
© Bruno Maron, "Desabafa".
Mas vou te falar, são sempre as pessoas que
mudam nossa vida, a instituição é o de menos. Tive a sorte de conhecer cabeças
muito interessantes quando trabalhei em jornal, e paulatinamente fui abandonando
o design para embarcar nessa imundície que estou agora: quadrinhos sujos. Também
fiz uma pós-graduação em animação para animar esse bolostrô confuso de "arte"
gráfica. Taí minha equação da anti-vida: quadrinhos, ilustração, animação e
desobediência civil de frango de apartamento.
© Bruno Maron, "Falcon".
a: 'Nunca deixei que a escola interferisse
na minha educação' - esse seria um título perfeito pra nossa entrevista! Costumo
usar imprensa maron quando divulgo seus trabalhos.
Mas com relação a seus estudos e trabalho: qual foi sua experiência
jornalística? Pós-graduação em animação soa bem sério, exige um certo
compromisso, um empenho para com um produto final bem específico: há algo desse
momento que você possa nos mostrar?
© Bruno Maron, "Patrimovel".
BM: Trabalhei em 3 jornais: Globo, Jornal dos Sports e Jornal do Brasil. Era muito ingênuo na época e foi ali que eu aprendi coisas fundamentais, como apreciar um bom desenho. Não tinha referência de quase nada na época, apenas um ranço de quadrinhos de super-herói. Que é muito legal também, mas era a única coisa que eu tinha. O ambiente jornalístico me estimulou a ler, reforçou um hábito. Mas falando de uma paixão jornalística, não posso deixar de mencionar H. L. Mencken, considerado por muitos o maior jornalista americano da primeira metade do séc. XX. O 'Livro dos Insultos' é a fusão perfeita de jornalismo, literatura e humor. Em relação à animação: foi ótimo ter feito essa pós. Hoje faço alguns frilas de videografismo. Infelizmente, até hoje eu só consegui produzir uma animação autoral, Praxedes, que ganhou um prêmio no Festival de Animação Erótica.
Praxedes from Firula on Vimeo.
a: Você diz 'quadrinhos sujos', eu ouço
'artista inconformista'. Esse nicho nos quadrinhos (onde cada estilo é
engavetado), isso te incomoda? (Pessoalmente, ao ver seu trabalho não penso em
quadrinhos sujos, mas numa sociedade imunda!)
BM: Não me incomoda não. Acredito que essa
profusão de nichos emerge de um mundo que atingiu uma dimensão estratosférica.
Tem gosto pra tudo e público pra tudo, isso é positivo, na minha visão.
a: Com relação a seu traço, sua maneira de
desenhar: para mim, que também sou uma colecionadora de
quadrinhos&quadrinistas, seus desenhos desajeitados funcionam como uma
declaração de independência - na minha opinião, uma das coisas mais importantes
que um artista pode e deve criar é exatamente esse senso de liberdade. Você
poderia elaborar um pouco sobre isso? É uma escolha, ou uma espécie de
'inadequação' às normas vigentes?
© Bruno Maron, "Tolos".
BM: O meu traço é o resultado de um exame de
consciência que fiz um pouco mais velho, quando conheci o trabalho de alguns
grandes artistas. Cito aqui os 4 maiores artistas gráficos do Brasil, na minha
opinião: Lula, Cavalcante, Zimbres e
Jaca. Quando vi o grau de liberdade
encapsulado na arte desses caras, eu tive um piripaque. Especialmente o Zimbres,
que tem um domínio da "precariedade elegante", que faz um acordo discordante das
faculdades pictóricas como se fosse a coisa mais natural do mundo. Mas é
importante frisar uma coisa: liberdade não é esse clichê evasivo do "se
expressar, estou me expressando", essa legitimação da emoção e consequentemente
uma sacralização dos registros insondáveis da subjetividade. Arte é a conjugação
da experiência afetiva com indagações intelectuais. Tem estratégia envolvida, é
um consórcio entre razão e sensibilidade. Eu não tenho esse poder de manipulação
que esses caras têm, meu desenho é assumidamente tosco, mas tento, na medida do
possível, torná-lo palatável com as poucas referências técnicas que eu tenho
nessa cabeça quadrada que deus me deu.
© Bruno Maron, "Zaratrusta".
a: Acho interessante e coerente que seu
traço tenha se liberado das subliminares regras 'mundiais' dos cartoons e
charges (esse sendo, na minha opinião, o nome perfeito para o que vocês artistas
dos quadrinhos fazem, por causa do sentido imediato e fulminante que dá a seus
trabalhos), tendo em vista as influências que você menciona: dos quatro
cartunistas, pelo menos dois deles são grandes caricaturistas, de uma outra
geração, e zimbres é artista plástico. mas quando vejo seu trabalho, me vem à
mente um outro pensador brasileiro: millôr fernandes. O mesmo distanciamento
cínico carregado de erudição, o imaginário livre, a mão trêmula e o coração
sangrando. Você concorda com essas minhas divagações?
© Bruno Maron, "Delivery".
BM: O Millôr é um assombro, nunca li nada igual
na minha vida. Ele é um daqueles caras que tem a capacidade de desconfigurar a
pulsação de qualquer espírito precarizado. Eu tô no banco de reservas pra ser
estagiário de um compensado de quinta categoria de Millôr Fernandes. Caso consiga algo perto
disso, missão cumprida!
a: Você trabalha no papel? Qual é o seu
processo de criação? Como você chega às suas idéias?
BM: Eu vou anotando uma porrada de besteira nos
moleskines, a maioria das coisas que eu anoto são dos meus amigos, que são 100
vezes mais engraçados que eu. Por enquanto ninguém pediu nota fiscal paulista
das piadas, então continuo vampirizando com cinismo. Depois passo para arquivo
de computador separando por temas e deixo um banco de ideias. Quando consigo
articular uma, duas, três ideias soltas, já vislumbro uma HQ. Desenho no lápis,
escaneio e pinto no photoshop. O Arnaldo Branco disse uma grande verdade, o
baldinho do photoshop salvou a vida de muita gente, inclusive a minha. Eu jamais
faria quadrinhos se não existisse: baldinho do photoshop, internet banda larga,
Rush e pau pequeno.
© Bruno Maron, "Adulto".
a: Eu acho que a internet e o photoshop
mudaram a vida de todos os artistas do mundo! Quanto ao rush, sou fã do zeppelin
;) Agora, sobre pau pequeno: suas charges lidam muito com a questão do poder e
de seu mal uso (político, social, cultural). Há uma frustração sempre presente
no seu trabalho, relacionada a esse abuso. Por que esse assunto te ocupa?
BM: Porque o poder é "root of all evil" mesmo.
Tem uma frase que gosto: "As riquezas deste mundo pertencem, com efeito, àqueles
que têm a ousadia de proclamar-se seus donos." A truculência de uma velhacaria
caucasóide ainda vigora em todos os estatutos da ordem pré-estabelecida que
movem o planeta. No Brasil, uma oligarquia cínica montou um estrutura de
perpetuação do poder através da fusão auspiciosa de cargos políticos com meios
de comunicação de massa. Não acredito em grandes mudanças coletivas, apenas em
pequenos ajustes subjetivos. Antônio Cândido, na abertura da FLIP de 2011,
foi brilhante: Sou a favor da autarquia, quero aprender a mandar em mim para não
ter que mandar nos outros. Autonomia, diligência, emancipação existencial frente
à necessidade de ser tutelado por órgãos institucionais. Mas veja bem, não prego
anarquia nem revolução armada. Acho que autoridade é importante numa certa
medida, mas os critérios que validam a figura de autoridade precisam ser
examinados, reinventados. Saramago matou a charada: "Gostar é
provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar."
Acho que ele apontou com uma acuidade formidável a pequenez do ser humano.
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