sábado, 12 de janeiro de 2013

" A M O R " , < Ruth de Aquino >


Um título pode dizer muito ou nada. “Amor” é uma palavra batida e banalizada que ganha uma dimensão épica no filme indicado, na semana passada, a cinco estatuetas do Oscar. Amor, do diretor Michael Haneke, Palma de Ouro em Cannes, retrata um casal de octogenários, Georges e Anne, professores aposentados de música clássica. A história narra nossa impotência diante da doença e da morte.

Em duas horas de cinema ou um ano de vida real, dois atores magistrais, Jean-Louis Trintignant, de 82 anos, e Emmanuelle Riva, de 85 (a belíssima protagonista de Hiroshima meu amor em 1959), nos transformam em passageiros da agonia humana. A agonia diante do sofrimento da pessoa que amamos. O que fazer quando o doente nos faz prometer que nunca mais será hospitalizado? Estamos dispostos a adoecer junto? Será a doença mais forte que o amor?

À exceção de uma cena de concerto, o filme se passa inteiro dentro do apartamento elegante e forrado de livros, com um piano na sala de estar. São idosos com cultura, dinheiro e prestígio. Vivem sós – sem empregados, como é o normal na Europa. O que mais nos encanta, quando Georges e Anne ainda estão sadios, não são as conversas sobre literatura e música, mas os olhares amorosos, os gestos de carinho, a cumplicidade nos atos mais cotidianos, como o café da manhã na cozinha.

A rotina se quebra numa dessas manhãs, quando Anne sofre um AVC, acidente vascular cerebral. De repente, ela olha o vazio, não responde. O casal vai ao hospital, mas nós, espectadores, não. Na cena seguinte, Georges e Anne chegam de volta ao apartamento, ela de cadeira de rodas, com o lado direito paralisado e o orgulho ferido.
 

“Quando adoecemos e ficamos imobilizados, passamos a viver entre quatro paredes. O mundo exterior desaparece”, diz Haneke. Nosso olhar profana a intimidade do casal, da cozinha ao banheiro, do banheiro à sala, da sala ao quarto, do quarto ao corredor.

Será a doença mais forte que o amor? Estamos dispostos a adoecer junto com quem amamos?

Daí em diante, cama e móveis são adaptados às limitações de Anne. E Georges passa a viver em função dela. Ele se debilita aos poucos, até que Anne sofre um novo ataque, enfermeiras vêm e vão, e a música envolvente de Schubert é substituída por gritos dela: “Mal... mal... mal”. Na tradução literal, “dói... dói... dói”. E mais do roteiro não conto ao leitor, embora Haneke antecipe o final na primeira cena. Talvez para não encorajar ilusões.

O casal tem uma única filha, Eva (Isabelle Huppert), que vive no exterior, em Londres, com o marido, ao jeito das famílias contemporâneas globalizadas, em que os velhos vivem muito mais e os filhos, de longe, não conseguem ajudar sem virar suas vidas pelo avesso. Eva, em raras visitas, chega ansiosa, com muitas perguntas e nenhuma solução. “De que nos serve sua inquietação?”, pergunta o pai, friamente.

É um filme duro, e quem conhece a direção de Haneke – A professora de piano, A fita branca, Caché – sabe que esse austríaco nascido na Alemanha não dá brecha para a pieguice. “Quando escolhemos um tema universal, como amor, velhice e morte, há dois grandes perigos: o sentimentalismo e a autocomiseração. Não é por ser sentimental que alguém tem emoções, não se iluda!”, afirmou o diretor.

Segundo as resenhas dos críticos, eu deveria ter chorado ao ver o filme na tarde fria de Paris na semana passada. Deveria, porque todo mundo chora. Talvez devesse ter soluçado, me acabado em lágrimas. Mas não. Meu pai e minha mãe têm 90 anos, estão no Rio.




Meu pai acaba de sair de uma internação no hospital por pneumonia e minha mãe foi diagnosticada há dez anos com Alzheimer. Ela é linda, inteligente e ainda reconhece filhos e netos. Por mais cruel que seja a enfermidade da perda gradual da lucidez, continuam intactos seu instinto maternal e o ciúme que sente de meu pai.

A realidade da minha família é tão mais branda do que vi na tela. Nossos momentos presentes precisam ser celebrados porque não se controla o amanhã. Amor é uma lição de vida, mais que de morte.

Haneke não quis mostrar tudo, muito menos “os horrores e as humilhações” das clínicas de repouso, dos asilos ou das alas geriátricas dos hospitais. “Um filme onde tudo é dito está morto. Devemos nos aproximar ao máximo da complexidade de uma situação e deixar aberta a interpretação, para que o filme não termine na tela, mas na sua cabeça, no seu coração... ou no seu ventre.”

Há quem saia do cinema chocado pelas cenas mais duras do filme. Eu saí envolvida pelas cenas mais ternas. Quando Georges retira do banheiro Anne, já paralisada parcialmente, e a levanta, os corpos enlaçados, em pé, ambos arrastando os pés numa dança trôpega até a cadeira de rodas.

Quando ela interrompe uma refeição e pede com urgência os álbuns de fotos da juventude a dois. Quando Georges vê a miragem de Anne tocando piano, o som de Schubert invade tudo e, repentinamente, ele desliga o aparelho de CD. Triste, simples, real e belo.

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