Há poucos meses atrás, na Feira do
Livro de Guadalajara, vi uma cena que, de algum modo, diz muito sobre a
literatura e a solidão, essas irmãs siamesas.
A Feira estava cheia de gente, mas não
necessariamente de leitores. Ao visitar o estande de uma editora, vi um escritor
de língua espanhola, sentado diante de uma mesinha, à espera de leitores. Ele
tinha um ar desolado e conversava com uma mulher. Quando eu passava perto dos
dois, ele perguntou à mulher onde estavam os leitores. Ela sorriu e apontou para
uma fila de leitores excitados, que queriam comprar a edição espanhola de
Cinquenta Tons de Cinza, o best-seller do momento.
É improvável que os leitores dessas historinhas
de sexo e violência - ou sexo com violência - leiam romances de Conrad, de
Dostoievski ou de Graciliano Ramos. Quantos se aventuram a ler Coração das
Trevas, Crime e Castigo ou Infância? Para a maioria dos leitores, um livro de
ficção é puro entretenimento, algo que não convida a pensar nas relações
humanas, no jogo social e político, na passagem do tempo e nas contradições e
misérias do nosso tempo, muito menos na linguagem, na forma que forja a
narrativa. Talvez por isso o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez tenha afirmado
que a poesia é a arte da imensa minoria. Isso serve para a literatura e para
todas as artes. Os poucos, mas felizardos espectadores da peça O Idiota,
dirigida por Cibele Forjaz, sabem disso.
Flaubert costumava lamentar a época em que
viveu: a crença entusiasmada e cega no progresso e na ciência, as batalhas
fratricidas na França, a carnificina das guerras imperialistas, e a idiotice e
bestialidade humanas, que ele explorou com ironia em sua obra. Em uma carta de
sua vasta correspondência, escreveu que o ser humano não podia devorar o
universo. Referia-se ao consumismo crescente na segunda metade do século
19.
O que o "Ermitão de Croisset" diria dos dias de
hoje, quando a propaganda insidiosa na tevê não poupa nem as crianças e tudo
gira em torno da vida de celebridades, de uma fulana famosa que teve um bebê, de
sicrano que se separou de beltrana ou traiu uma fulaninha? Qual o interesse em
saber que a princesa da Inglaterra está grávida?
Essas baboseiras são ainda mais graves num país
como o Brasil, cuja modernidade manca ou incompleta exclui milhões de jovens de
uma formação educacional consistente.
No começo da década de 1990, quando eu passava
uma temporada em Saint-Nazaire, um jovem operário entrou no meu apartamento para
consertar o vazamento de uma tubulação. Quando passou pela sala, viu um romance
em cima da mesa e exclamou:
Ah, Stendhal. Li vários livros dele, e o que
mais aprecio é esse mesmo: A Cartuxa de Parma.
E onde você os leu? Quando?
Aqui mesmo, ele disse. Na escola
secundária.
Era uma das escolas públicas daquela pequena
cidade no oeste da França.
Nicolas Sarkozy e outros presidentes
conservadores tentaram prejudicar o ensino de literatura e ciências humanas na
escola pública francesa, mas nenhum deles teve pleno êxito. Aprender a ler e a
pensar criticamente é um dos preceitos de uma sociedade democrática, e esse
mandamento republicano ainda vigora na França. O que os prefeitos e secretários
de Educação dos quase 5.700 municípios brasileiros dizem a esse respeito?
A precariedade da educação pública é um dos
problemas estruturais da América Latina. Até mesmo a Argentina, que já foi uma
exceção honrosa, começa a padecer desse mal.
Comecei essa crônica evocando a solidão de um
escritor em Guadalajara. Melhor assim: a solidão está na origem do romance
moderno, é um de seus pilares constitutivos e faz parte do trabalho da
imaginação do escritor e do leitor.
O tempo se encarrega de apagar todos os
cinquenta tons de cinza, e ainda arrasta para o esquecimento os crepúsculos,
cabanas e toda essa xaropada que finge ser literatura. Enquanto isso, Coração
das Trevas, publicada há mais de um século, é uma das novelas mais lidas por
leitores de língua inglesa.
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*
Escritor.
Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,livros-de-verao-e-literatura-de-verdade-,
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