A vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente,
escondê-las seria esconder nossa maior riqueza
Vinte anos atrás, fui ao casamento de uma
amiga em Saratoga Springs, no norte do Estado de Nova York. Era o fim do
inverno; a cidade ainda não recebera a turma das águas termais, que chega na
primavera, e ainda menos a turma das corridas de cavalos, que acontecem no
verão.
Na noite antes da festa, passeando pela rua
principal (que, se não me engano, chama-se Broadway), entrei numa loja para
fugir do vento. Num canto, estavam os restos dos restos das liquidações de
inverno, descontados até não poder mais: as camisas custavam US$ 5 (R$ 10, mais
ou menos). Adquiri duas camisas idênticas de sarja pesada, de um cinza escuro,
quase preto. Eram as últimas duas no meu tamanho.
Desde então, com o uso, a sarja se tornou mais
macia e a cor desbotou um pouco. Por sorte minha e das camisas, isso aconteceu
ao longo de uma época que me parecia valorizar, digamos assim, as marcas da
experiência. É dessa forma que sempre entendi a moda do brim desbotado, das
bainhas desfeitas e desfiadas ou das calças jeans furadas e rasgadas: a vida
deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las (por exemplo, atrás de
roupas novas) significaria esconder a maior riqueza que acumulamos, a dos
percalços de nossa existência -que eles tenham sido bons ou ruins, tanto
faz.
Um dia, 8 anos atrás, a manga de uma dessas
camisas brigou com a maçaneta de uma porta, e o tecido foi rasgado, na forma de
um sete -de cinco centímetros por oito.
Mandei consertar, sem dissimular o remendo.
Afinal, o mundo me parecia maduro para isso: tanto eu quanto minha camisa (que
se tornou a preferida das duas) podíamos mostrar sem vergonha as marcas dos anos
e das batalhas.
Durante muito tempo, carreguei meu remendo na
manga como o distintivo de uma honrada patente militar. Ou como uma declaração à
la Neruda, feita por mim e por minha camisa: "confesso que eu vivi".
Como disse, minha confiança no espírito dos
tempos era um pouco ingênua, e isso foi revelado nos últimos dias, quando, de
repente, um menino de dez anos apontou o dedo para a manga de minha camisa e
estranhou: "Mas este é um rasgo?".
Pensei que ele estivesse censurando o que
talvez lhe aparecesse como desleixo: por que eu não compraria uma camisa nova e
pararia de impor ao mundo a triste visão de um remendo? Mas logo percebi que ele
estava usando uma calça jeans rasgada com afinco, de modo que era suficiente ele
dobrar levemente as pernas para que seus joelhos estivessem ao ar livre.
Agora, a própria existência de calças rasgadas
e desbotadas para crianças invalida meu entendimento de que os nossos tempos
valorizariam a experiência. Pois, mesmo vivendo intensamente, uma criança não
teria tempo para maltratar sua calça a ponto de lhe imprimir um "look" rasgado
radical.
Conclusão: para o menino, meu rasgo e meu
remendo eram ruins porque eram verdadeiros. Enquanto os rasgos da calça jeans
dele eram bons porque eram de mentira. Ou seja, o que ele aprendera a valorizar
não era a experiência real (pressuposto de eventuais acidentes com suas calças),
mas os rasgos falsos, ou seja, a pura aparência da experiência.
Entendo que adolescentes e pré-adolescentes
tentem aparentar "quilometragem". Alguns, aliás, fazem "besteiras" para acumular
logo experiências que lhes permitam se comparar aos adultos. Outros (hoje mais
numerosos, talvez?) fazem menos besteiras, porque escolhem um atalho (que os
pais, em geral, adoram propor): eles descobrem que arriscar-se a viver é mais
difícil e mais cansativo do que acumular e exibir as falsas aparências da
experiência. Para eles, os rasgos falsos são propriamente melhores do que os
verdadeiros. E brincar é sempre melhor do que viver.
Escrevo esta coluna no dia 31. Estou perto de
Times Square. Ao longo da tarde, periodicamente, ouço uma "hola" das pessoas que
já esperam para o fim do ano. A "hola" corresponde aos momentos em que as redes
de televisão ligam as câmeras. Faz frio e ficar 12 ou 14 horas em Times Square é
chato. À meia-noite, você dará um abraço e um beijo nos amigos que estão com
você, mas isso você poderia ter feito em casa ou numa festa. A razão de estar em
Times Square não é sua experiência, é a aparência de alegria que você talvez
possa mostrar ao mundo, na televisão.
Para todos, os votos de um 2013 com rasgos e
remendos reais, ou seja, de uma vida que não precise ser confundida com um
reality show para convencer aos outros (e à gente) de que ela vale a
pena.
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Psicanalista italiano radicado no Brasil. Escritor.
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