domingo, 13 de janeiro de 2013

Eu confesso... de Rubem Alves*

 
Eu confesso: se tentasse entrar na universidade via vestibular ou Enem eu não passaria. Meu consolo é saber que eu não estaria sozinho. Teria muitos companheiros. Os reitores de nossas grandes universidades seriam os primeiros. A seguir, respeitáveis professores e pesquisadores. Talvez não passassem nem mesmo em suas próprias disciplinas. É duvidoso que um professor que há anos se dedica a pesquisas de biologia molecular ainda se lembre de como resolver problemas estatísticos de genética. Também os professores dos cursinhos: cada um passaria brilhantemente na disciplina de sua especialidade. Mas é duvidoso que um professor de português consiga resolver problemas de química ou física. Com eles, os professores que elaboram as questões que os alunos terão de responder. Para eles, vale o que foi dito sobre os professores dos cursinhos. Por fim, os diretores das empresas que preparam os vestibulares...

Essa hipótese desaforada poderia ser testada facilmente: bastaria que os personagens acima mencionados se submetessem aos vestibulares e ao Enem. Claro: seria proibido que se preparassem. O objetivo seria testar o que foi realmente aprendido. O que foi realmente aprendido é aquilo que sobreviveu à ação purificadora do esquecimento. O aprendido é aquilo que fica depois que o esquecimento faz o seu trabalho...

Vestibulares e Enem: portas de entrada para as universidades? Seria bom se sua função se limitasse a isso. O sinistro está não no que é dito mas no que permanece não dito. Desde cedo pais e escolas sabem que a escola deve preparar para os vestibulares e Enem. Assim, são eles que determinam os padrões de conhecimento e inteligência a serem cultivados. Mas não existe nada mais contrário à educação que os padrões de conhecimento e inteligência que os vestibulares estabelecem.

Faz tempo o escritor Mário Prata escreveu uma crônica sobre as meninas jogadoras de voleibol. Era uma crônica leve, bem humorada, picante. Era impossível não sorrir ao lê-la. Lida, ficava para sempre na memória pois a memória guarda o que deu prazer. Passados alguns meses ele voltou ao assunto da primeira, numa crônica dirigida, se não me engano, ao senhor ministro da Educação. É que sua primeira crônica fora usada, na íntegra, num exame vestibular. Para um escritor, ter uma crônica transcrita, na íntegra, num exame vestibular, equivale a uma consagração. Mário Prata estava felicíssimo. Exceto por um detalhe: os examinadores, para transformar sua crônica em objeto de exame, prepararam um série de questões sobre a mesma, cada uma delas com várias alternativas. Mário Prata resolveu então brincar de vestibulando. Tentou responder as questões. Não acertou uma!

Se o vestibular fosse para valer, ele teria zerado no texto que ele mesmo escrevera. Ele se dirigiu então ao senhor ministro de Educação comentando esse absurdo. E perguntou se não teria sido muito mais inteligente se os examinadores, gramáticos, tivessem pedido que os moços escrevessem um parágrafo, provocados por seu artigo. Aqueles saberes esotéricos que lhes eram pedidos nunca teriam qualquer uso em suas vidas. Compreende-se que, como resultado do seu preparo para os vestibulares os jovens passem a detestar literatura.

Minha filha queria ser arquiteta. Como não havia outro caminho, matriculou-se num cursinho. Eu a via sofrer tendo de memorizar coisas que não lhe faziam sentido. Fiquei com dó e, por solidariedade, resolvi fazer um sacrifício: passei a estudar com ela. Estudei meiose e mitose, as causas da Guerra dos Cem Anos, cruzamento de coelhos brancos com coelhos pretos... Estudei também, contra a vontade e sem interesse, a necrópsia da língua chamada análise sintática. Não sei para que serve. E dizia à minha filha, à guisa de consolo: “Você tem de aprender essas coisas que você não quer aprender porque a burocracia oficial assim determinou. Mas não se aflija. Passados dois meses quase tudo terá sido esquecido. Só sobrarão os conhecimentos que fazem sentido...” Pergunto a você, meu leitor: de tudo o que você teve de estudar para passar, o que sobrou?
Por que nós, professores universitários, não passaríamos no vestibular? Por termos memória fraca? Não. Por termos memória inteligente. Burras não são as memórias que esquecem mas as memórias que nada esquecem... A memória inteligente esquece o que não faz sentido. A memória viaja leve. Não leva bagagem desnecessária.
E aí eu pergunto: “Se nós, professores já dentro da universidade, não passaríamos nos exames vestibulares, por que é que os jovens que ainda estão fora têm de passar? É irracional. Especialmente em se considerando que irá acontecer com eles aquilo que aconteceu conosco: esquecerão... Haverá uma justificação pedagógica para esse absurdo? Ainda não a encontrei.
 
                                                                  * Educador. Escritor.
                                                   Fonte: Correio Popular on line, 13/01/2013

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