Farei
uma reflexão sobre o budismo inspirada no texto “Simbolismo Budista” de Daisetz
Suzuki ao interpretar um haiku (haikai) de Basho. Basho é um dos grandes
poetas haiku do Japão setecentista, ele produziu este poema guando “seus olhos
se abriram pela primeira vez para o significado poético e filosófico de haiku”
(Suzuki, 1980, p. 56).
Oh,
velho tanque!
Uma
rã salta para dentro
O
som da água!
O que pensava o velho Basho? Basho teve uma experiência filosófica, de espanto
e perplexidade, uma experiência que está na raiz de todas as grandes filosofias.
A partir de minha própria experiência explicarei a intuição de Basho e tentarei
expor qual o sentido e significado do budismo.
Estava eu num paraíso natural, em plena serra do mar, numa praia deserta. Havia
ali um tanque de água formando uma piscina natural. Estava sentado numa pedra
absorvido pela beleza daquele ambiente. O sol penetrava entre as árvores, a
beleza de tudo era uma promessa de felicidade. Estava tão absorvido, que me
sentia como o próprio tanque ou como uma daquelas pedras submersas na água. A
água era tão límpida e imperturbada, o ambiente era tão calmo e silencioso, que
eu me esqueci de mim mesmo. De repente um peixe pula na superfície da água. O
pulo do peixe criou uma série de pequenas ondas em formas de círculos
concêntricos. Ele produziu um ruído leve. Num ambiente calmo e silencioso, o
ruído mesmo tênue, fez-me despertar de minha meditação. Eu não pensava em nada
de tão absorvido que estava no tanque bordejante de arbustos e plantas
aquáticas. A vida parecia inexistente naquele ambiente. Foi preciso um ruído
de um peixe para mostrar que ali havia dinamismo, força, movimento, vida. O
tanque d’água passou a ter interesse, vitalismo, valor. Senti espanto diante de
tudo aquilo. O meu espanto foi existencial, percebi que realmente existo.
Quando o peixe pulou do tanque, foi o momento de intuição intelectual, de
percepção suprema de que a vida existe e de que eu existo. Antes eu estava tão
absorvido pela contemplação, que não existia diferença entre mim e aquele
ambiente, eu era o tanque e o tanque era eu. Existia uma identificação entre
mim e o tanque. Quando despertei do meu torpor, o tanque passou a ter realidade,
dinamismo. Aí estava todo seu valor. Antes disso não existia nada, não existia
um mundo objetivo. Foi no momento em que eu escutei o ruído do peixe que as
coisas passaram a ter um significado. A realidade não tinha existência até
aquele momento. O peixe pulou da água e o mundo surgiu do Nada – ex nihilo. É o
sentimento de exaltação espiritual. O mundo existe! É um milagre!
Basho teve essa mesma experiência. Sentiu perplexidade diante da existência. Foi
o momento do despertar, ele se assustou e exclamou - Oh, velho tanque! A
experiência de Basho é filosófica, pois ele sentiu espanto, perplexidade, se
maravilhou com a possibilidade de algo existir. É esse sentimento que está na
raiz de toda filosofia.
Segundo Daisetz Suzuki, a filosofia budista nos ensina que tudo é um. Eu o
tanque, as plantas aquáticas, as árvores, a luz do sol, o peixe, somos um. O
todo em um, o um no todo. Quando eu olhei o peixe no tanque, eu era o peixe e
também o tanque. O peixe e o tanque era eu. Mas eu permaneci sendo eu, o peixe o
peixe, o tanque o tanque, as árvores as árvores. Mas todos nós somos uma
totalidade absoluta, uma identidade. O universo inteiro está naquele tanque, ele
representa a totalidade infinita das coisas. Na filosofia budista nada existe
além do tanque d”água, ele é completo em si mesmo. Ele é toda a realidade
cósmica.
"O sofrimento surge,
portanto dos desejos,
afetos e paixões num mundo
inconstante
e instável. Por se
apegar
aos objetos do
mundo,
sendo estes contingentes
e
impermanentes, o homem
só
experimenta o
sofrimento
(Dukka)."
Suzuki explica-nos que para a filosofia budista ser é significar. Tudo o que
existe é um símbolo. “O simbolismo budista declararia, portanto, que tudo é
simbólico, comporta uma significação em si, tem valores próprios, existe por
direito próprio e não aponta para qualquer outra realidade senão a que é
intrínseca a cada coisa” (Suzuki, 1980, p. 60). O peixe, o tanque, as árvores
e eu somos um símbolo. Tudo que existe têm um significado. Tudo é, porque existe
em si mesmo, tem valor em si mesmo e não aponta para uma realidade diferente,
não existe nada fora da própria realidade. As coisas não existem por causa de
Deus. Não existe uma realidade diferente das coisas.
A filosofia budista não é uma religião, nem um sistema ético, não é uma crença
ou uma adoração, ela é antes de tudo uma prática voltada para a interioridade
humana. É uma prática de autoconhecimento que busca a libertação. Mas
libertação do quê? Libertação do sofrimento. O sentido mais próximo e imediato
da vida é o sofrimento, pois compreender a vida em sua totalidade é
compreendê-la em meio dor. O filósofo Arthur Schopenhauer, influenciado pelo
budismo, compreendeu muito bem essa verdade. Segundo ele, “se o sentido mais
próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa existência é o maior
contra-senso do mundo. Pois constitui um absurdo supor que a dor infinita,
originária da necessidade essencial à vida, de que o mundo está pleno, é sem
sentido e puramente acidental. Nossa receptividade para a dor é quase infinita,
aquela para o prazer possui limites estreitos. Embora toda infelicidade
individual apareça como exceção, a infelicidade em geral constitui a regra”
(Schopenhauer, 1974, p.122).
O budismo é, portanto, o caminho para a libertação da dor inerente ao mundo,
pois ela desperta o indivíduo para o conhecimento da verdadeira natureza dos
seres e das coisas. O budismo nos leva a ver a realidade como ela é, e não como
parece ser. No universo não há nada permanente, o mundo é contingência, com
isso o homem experimenta uma realidade inconstante que lhe traz inquietação
(Dukka). Da mesma forma, não existe Eu, não existe uma natureza humana acabada,
fixa, permanente. O que existe de fato são sensações, percepções e memória. Eu
tenho a experiência de que tenho um corpo, um cérebro, que sinto esse talher,
sinto certas texturas, tenho a intuição do amarelo, azul, branco, vejo o
horizonte. Tenho muitas impressões, eu vivencio muitas coisas, tenho a impressão
de minhas mãos, meu pés, meu coração, mas quando procuro analisar meu eu, não o
encontro. Sou levado a concluir que não há nenhuma vivência que me demonstre ser
o eu. O eu não corresponde a nenhuma impressão. O eu parece ser uma
ficção.
Para o budismo o eu é uma ilusão da nossa consciência. A consciência nos
possibilita a idéia de um mundo permanente, estável, onde ele possa prever o
curso das coisas e dos acontecimentos. Para que isso seja possível o homem cria
através da linguagem palavras para se comunicar, dando permanência, existência e
realidade a coisas que não existem: Eu, Alma, Deus, Essência, Mal, Bem. Nada
disso existe. O mundo é como é. O homem usa palavras procurando dar sentido ao
mundo. Para o budismo não existe Ser, o mundo é vir-a-ser. A noção de Ser é a
pedra angular que deu origem ao pensamento filosófico ocidental. Para o budismo
este é um falso problema. O que existe de fato é a impermanência de todas as
coisas. Buda nos ensinou que “a natureza de todo o fenômeno, de toda aparência,
é semelhante ao reflexo da lua na água”.
Num mundo onde tudo é impermanente, onde o Eu é uma ficção da nossa consciência,
não podemos nos apegar a nada. A maioria dos homens buscam engrandecer o “Eu”
buscando a fama, a glória, o dinheiro, os prazeres e não percebem que o motivo
de seus sofrimentos está nessa inquietação. O sofrimento surge, portanto dos
desejos, afetos e paixões num mundo inconstante e instável. Por se apegar aos
objetos do mundo, sendo estes contingentes e impermanentes, o homem só
experimenta o sofrimento (Dukka). Dessa forma, é só pela libertação dos desejos
e paixões, ou seja pelo desapego, que atingimos a libertação, a paz, a
quietude. É o que Buda entende por Nirvana. A palavra Nirvana só pode ser
compreendida intuitivamente, como quase tudo no budismo. Se apegar a conceitos é
uma característica do mundo ocidental, algo que é um grave erro, uma vez que os
conceitos servem para dar permanência a algo impermanente. Os orientais são mais
intuitivos, mais poéticos, souberam captar melhor o devir de todas as coisas. Se
tivermos que necessariamente dar uma definição para a palavra Nirvana, devemos
dizer que é a felicidade, a liberdade e a quietude.
Para o budismo, portanto, conhecer significa compreender que tudo no universo
está conectado, que o “eu”, nem os fenômenos possui qualquer autonomia, que tudo
é interdependente, tudo é impermanente. O universo com seu espaços infinitos é
um vazio eterno, assim como toda realidade. O mundo não tem um sentido, todo
sentido está no homem, somente ele pode colocar sentido nas coisas. Como afirmou
buda “somos o que pensamos. Tudo o que somos surge com nossos pensamentos. Com
nossos pensamentos, fazemos o nosso mundo”.
Bibliografia
SCHOPENHAUER,
Arthur. Parerga e Paraliponema. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1974.
SUZUKI, Daisets T. Simbolismo Budista.
In: Revolução na Comunicação, Org. Edmund Carpenter e Marshall Mcluham, Rio de
Janeiro: Zahar, 1980, p. 56-63.
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Professor.
Fonte:
http://filosofonet.wordpress.com/author/filosofonet/